Por: Patricia Fachin | Tradução: Henrique Denis Lucas | 31 Agosto 2018
“O país está completamente no fundo do poço”. É assim que o jesuíta venezuelano Pedro Trigo resume a situação política, social e econômica de seu país. Segundo ele, a “ditadura de métodos totalitários” que se vive no país tem origem no governo Chávez, que “exigiu obediência não deliberada às suas propostas e à sua pessoa”, e que “pensava que o socialismo do século XXI fosse um socialismo rentista, já que acreditava que a renda do petróleo pudesse substituir o trabalho produtivo”.
Na atual conjuntura política, relata, “a fome cresceu porque as empresas embargadas e depois usurpadas pelo governo tiveram que fechar ou então operam com prejuízos”. Ao invés de estimular a produção, critica, o governo a impossibilita “com a exigência de que as vendas sejam feitas a preços inferiores aos custos, a preços de custos ou com uma margem de lucro muito menor do que a inflação, o que não permite a reposição de estoques. Além disso, o governo rouba mercadorias, produtos do campo e gado, e permite que isso seja feito em grande escala”. A consequência, frisa, é que “no país, cada dia se produz menos. E o governo não tem capacidade de importação, porque terminou com a indústria petrolífera e não tem moeda estrangeira para importar”.
Trigo também comenta a situação da saúde da população venezuelana, as migrações de seus conterrâneos para outros países e a falta de uma terceira via na política para mudar o quadro atual. “Para nós, tem que haver uma democracia real em que os cidadãos possam deliberar, e os grupos e organizações do terceiro setor tenham um papel significativo. Uma democracia em que as empresas garantam seus direitos, mas também seja exigido por lei que cumpram suas responsabilidades sociais – que é algo que não tem nada a ver com propaganda corporativa –, e na qual o Estado seja o mais independente possível do governo, tendo meritocracia e responsabilidade pública e penal, se encarregando das empresas básicas, tanto as de recursos quanto as de serviços”, conclui.
Pedro Trigo | Foto: Radio Fé y Alegria
Pedro Trigo é teólogo espanhol, nacionalizado venezuelano. Leciona na Faculdade de Teologia da Universidade Católica Andrés Bello, em Caracas. É pesquisador do Centro Gumilla para estudos sociopolíticos da Companhia de Jesus.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Atualmente, qual é a situação geral da Venezuela, segundo seu ponto de vista?
Pedro Trigo - Vivemos em uma ditadura de métodos totalitários, pois Chávez tentou modificar todas as instituições, estruturas e pessoas, porque acreditava que tudo andava mal e que ele poderia nos trazer muita felicidade. No entanto, como ele pressupunha ser o único a ter conhecimento dos problemas e como solucioná-los, exigiu obediência não deliberada às suas propostas e à sua pessoa, e aquele que não obedecesse seria considerado um traidor da pátria. Ele era, então, um totalitário. Mas o seu totalitarismo fracassou, pois ele pensava que o socialismo do século XXI fosse um socialismo rentista, já que acreditava que a renda do petróleo pudesse substituir o trabalho produtivo.
Ele não percebeu que, além do fato de que essa renda não supria nem de longe as necessidades da nação, o trabalho não é apenas um meio de subsistência, mas um modo de vida que qualifica a pessoa, socializa-a e a torna útil. Viver sem trabalhar é ser um eterno adolescente, um parasita. Ele deu direitos, não deveres. Foi um totalitarismo fracassado. Agora não se pretende mudar nada, apenas aferrar-se ao poder: é uma ditadura. Mas os métodos continuam sendo totalitários. Aliás, cada vez mais se agrava a substituição da realidade pelo discurso apodítico, a acusação àqueles que não acatam o discurso sobre inimigos da pátria, a perseguição à dissidência, a tortura e, além disso, a incompetência. Por esses motivos, o país está completamente no fundo do poço. Custará muito levantá-lo.
IHU On-Line - Algumas notícias relatam que a fome aumentou muito na Venezuela. Que informações têm sobre isso? Além da fome, a pobreza, em geral, também cresceu?
Pedro Trigo - A fome cresceu porque as empresas embargadas e depois usurpadas pelo governo tiveram que fechar ou então operam com prejuízos. Ao invés de estimular a produção, ela é impossibilitada com a exigência de que as vendas sejam feitas a preços inferiores aos custos, a preços de custos ou com uma margem de lucro muito menor do que a inflação, o que não permite a reposição de estoques. Além disso, o governo rouba mercadorias, produtos do campo e gado, e permite que isso seja feito em grande escala. No país, cada dia se produz menos. E o governo não tem capacidade de importação, porque terminou com a indústria petrolífera e não tem moeda estrangeira para importar. É por isso que no interior paga-se com dinheiro inorgânico. Se há cada vez menos produtos e mais dinheiro, é óbvio que os produtos têm uma valorização contínua e que as pessoas não têm dinheiro para comprá-los, quando eles existem. É por isso que todos os dias há mais fome.
Para dar um exemplo, nenhuma comunidade jesuíta ganha o suficiente para comprar alimentos e isso que não temos mulher nem filhos, e a maioria de nós é profissional. Com isso, podemos entender que uma família popular, em muitos casos, atinge a pobreza crítica, pois mais de 50% não come o mínimo necessário para sobrevivência e até 84% do que comemos não tem valor nutricional suficiente.
IHU On-Line - No Brasil há notícias de que os venezuelanos também enfrentam problemas de escassez de medicamentos, que os problemas de saúde estão aumentando e que há um surto de sarampo no país. Pode nos dar um relato sobre esse quadro?
Pedro Trigo - Conheço muitas pessoas que morreram porque precisavam de uma medicação vitalícia e não a conseguiram. Aqueles que têm medicamentos são uma minoria. Além do mais, não há implementos médicos nos hospitais. Por exemplo, uma cirurgiã que conheço teve de operar, sem anestesia, a mão de um paciente, para que o órgão não secasse. Soube que ela sofreu tanto quanto o paciente. O ressurgimento de doenças infecciosas que haviam sido erradicadas deve-se à falta de saneamento básico e à diminuição das defesas nos organismos.
IHU On-Line - Como a população em geral reage à crise na Venezuela e se organiza neste momento difícil? Surgiram novas organizações e movimentos populares a partir da atual crise?
Pedro Trigo - Sim, surgiram muitas organizações, tanto em defesa dos direitos humanos, quanto para fornecer alimentos e remédios. As primeiras são assediadas pelo governo e só subsistem por conta da tenacidade de seus membros que se comprometem com as organizações e realmente entregam suas vidas a elas. As relacionadas a medicamentos são apropriadas pelo governo, que trata de distribuir esses medicamentos a suas redes clientelistas. As entidades relacionadas à alimentação são, sobretudo, da Igreja e estão cada vez mais disseminadas, embora haja muita colaboração de pessoas, instituições e até empresas.
IHU On-Line - Como a Igreja tem se posicionado em relação ao governo de Maduro e à atual crise?
Pedro Trigo - Houve um tempo, no início da era Chávez, em que a instituição eclesiástica utilizava uma linguagem muito parecida à da oposição, de maneira que o governo poderia desqualificar suas indicações identificando-as com posições partidárias. Acredito que isso ocorria porque, na verdade, o grupo de referência desses bispos era formado pela classe média que representava a oposição, incluindo seus porta-vozes. No entanto, caso tenha permanecido algo disso, agora o maior peso se encontra na referência ao evangelho e no sentimento do povo. Por isso, a instituição eclesiástica é a maior autoridade sobre o sentir dos venezuelanos: podemos dizer que ela se expressa para toda a igreja, para a imensa maioria dos católicos e, inclusive, para a maioria da população.
IHU On-Line - Qual é a atual situação de Leopoldo López, o líder da oposição?
Pedro Trigo - Não concordo com a sua atuação, que representa o sentimento da maioria da classe média e alta, mas não o sentimento do povo. Mas estou menos de acordo com a forma de proceder do governo em relação a ele. Sua prisão, tanto o fato dele estar preso quanto a forma como isso ocorreu, é absolutamente injusta. Ele deveria ser libertado.
IHU On-Line - Que políticos e partidos se apresentaram como oposição ao governo de Maduro?
Pedro Trigo - Os tradicionais, que estão em crise porque, por deixarem de fazer a mediação entre classes e por sua ineficiência e corrupção, foram os responsáveis pela ascensão de Chávez ao poder, da mesma forma que os novos partidos Primeiro Justiça e o Vontade Popular. Além deles, há um grupo que ainda se considera chavista, mas que faz oposição frontal ao governo de Maduro.
IHU On-Line - Existe uma terceira via que confronte o governo de Maduro e a oposição?
Pedro Trigo - O que vocês estão chamando de terceira via, para nós é a alternativa ao vigente. Não é uma outra perspectiva polarizada sobre a mesma coisa, que é a proposta da oposição, e que por esse motivo não traz uma superação, mas teria como efeito perpetuar o chavismo. É óbvio que este outro polo (uma democracia liberal, meramente formal, com predominância absoluta das corporações globalizadas e dos grandes financiadores) piorará o destino do povo. Para nós, tem que haver uma democracia real em que os cidadãos possam deliberar, e os grupos e organizações do terceiro setor tenham um papel significativo. Uma democracia em que as empresas garantam seus direitos, mas também seja exigido por lei que cumpram suas responsabilidades sociais – que é algo que não tem nada a ver com propaganda corporativa –, e na qual o Estado seja o mais independente possível do governo, tendo meritocracia e responsabilidade pública e penal, se encarregando das empresas básicas, tanto as de recursos quanto as de serviços.
Nós do Centro Gumilla promovemos fortemente essa alternativa e a propomos detalhadamente a diversos grupos, assim como para a opinião pública. No entanto, infelizmente, não existe um grupo político que apoie essa alternativa. Por isso insistimos que é preciso reinventar as esquerdas na América Latina (e no mundo), pois elas fracassaram, mas são indispensáveis.
IHU On-Line - Como avalia e a que atribui a vitória de Maduro na última eleição? O que ela representa? Trata-se de uma desilusão da população com a política ou uma vitória do atual presidente?
Pedro Trigo - Como vinha ocorrendo nas últimas eleições, houve muita trapaça. No entanto, a oposição também é responsável por isso ao se abster. A última eleição para governador no Estado de Bolívar – considerado o estado mais estratégico, pois ali se encontra o Arco Mineiro do Orinoco, que gera recursos financeiros para o governo –, foi vencida pelo candidato opositor, Andrés Velázquez, e o governo, como se não bastassem as trapaças, fraudou a contagem de votos.
Arco Mineiro do Orinoco (Fonteo: Infográfico CCS | comunicasul.blogspot.com)
IHU On-Line - Qual é o significado da criação da nova moeda venezuelana? Ela contribui de alguma forma para minimizar os problemas econômicos, como a hiperinflação, e os problemas políticos?
Pedro Trigo - O bolívar tinha tão pouco valor que era indispensável tirar-lhe muitos zeros. Mas essa medida só tem sentido se for o elo final de uma mudança política que aumente a produtividade e a produção, através de um forte apoio à iniciativa privada com responsabilidade social e o saneamento das empresas estatais, para acabar com a emissão de dinheiro inorgânico. Como nenhuma dessas medidas está sendo tomada, é de se esperar que seja preciso tirar mais cinco zeros novamente, antes que a moeda complete um ano.
IHU On-Line - Quais são as principais diferenças e semelhanças entre o governo Chávez e o atual governo de Maduro?
Pedro Trigo - A diferença fundamental é que Chávez era um líder carismático, na caracterização de Max Weber. Ele era um encantador de serpentes. Ele não apenas eletrizava as massas, mas também neutralizava seus opositores intelectuais quando falava com eles. Não creio que tenha existido alguém como ele. Ele supera Evita Perón e Velasco Ibarra. Por isso, o slogan "Eu sou Chávez", "Somos todos Chávez", foi aceito calorosamente por muitos como se fosse uma grande aquisição pessoal. No entanto, não percebemos que se eu sou Chávez, não sou eu mesmo, e se somos todos Chávez, o país perde sua subjetividade. Essa é a principal diferença: o encanto se desvaneceu. Só restam aqueles que não querem olhar a realidade para não perder a ilusão. É muito triste, mas também é possível viver de ilusões. Isso acontece com grande parte da esquerda latino-americana, em relação ao chavismo.
IHU On-Line - Algumas notícias informam que 2,3 milhões de venezuelanos deixaram seu país desde o início da crise. Que informações o senhor tem sobre o fenômeno migratório?
Pedro Trigo - Todas as famílias que conheço possuem no mínimo um membro fora do país e, muitas vezes, quase todos. Os números que tenho em mãos não chegam a três milhões, mas acredito que sejam mais de quatro. Por isso é urgente divulgar que nós que permanecemos não somos poucos. É absolutamente compreensível a saída para poder continuar um tratamento médico do qual sua vida dependa. Mas também é compreensível que os jovens não enxerguem nenhum futuro, especialmente casais jovens que não vislumbram formas de criar seus filhos pequenos aqui. O desespero é muito grande. Temos de agradecer tanta solidariedade.
IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?
Pedro Trigo - Sim. Da mesma forma que ninguém imaginou que cairíamos tão baixo, tampouco esperávamos que tantos venezuelanos, ao vencer o mal com a força do bem, tenham se tornado pessoas de excepcional consistência, verdadeiros heróis anônimos, capazes de viver e não apenas sobreviver, experienciando a polifonia da vida, convivendo e compartilhando do pouco que têm em sua pobreza. Conheço muitas pessoas assim que me alimentam e aos quais eu, que não sou tão humano quanto eles, ajudo. Nesse sentido, podemos dizer que onde há muito pecado, há a superação da graça. É uma época de desumanidade por parte do governo e daqueles que se aproveitam da situação. Mas também é um tempo de graça.
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A Venezuela chegou ao fundo do poço. É preciso uma democracia real. Entrevista especial com Pedro Trigo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU