A partir do evento da facada do então candidato Jair Bolsonaro, o pesquisador observa como a comunicação em rede tem imposto um novo paradigma comunicacional que nem sempre pode ser associado à informação
A pandemia gerada pela covid-19 nos empurrou para um tempo em que a maioria das relações se resigna à mediação da Internet, especialmente das redes sociais. Se já vivíamos esse processo, agora ele foi acelerado. O sociólogo Otávio Vinhas tem se dedicado a estudar esse processo e constata: “a digitalização das relações sociais promove a emergência de um novo paradigma comunicacional. Trata-se de um processo no qual o surgimento de novos meios de comunicação é acompanhado por transformações socioculturais na sociedade”.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, o pesquisador destaca suas análises acerca do tema a partir da pesquisa que fez das repercussões no Twitter do episódio em que o então candidato à presidência Jair Bolsonaro é esfaqueado. “Pude verificar como, por um lado, a facada em Jair Bolsonaro foi significada como uma ‘farsa’ ou ‘atentado fake’ enquanto, por outro, a facada foi construída como uma ‘tentativa de homicídio’”, destaca. Para ele, isso também revela que “o paradigma comunicacional de uma sociedade digitalizada envolve o desenvolvimento contínuo de formas capazes de, sistematicamente, selecionar e estabilizar sentidos frente ao fluxo humanamente imensurável das comunicações produzidas na internet”.
Como bem pontua Vinhas, não se trata de considerar que o mundo virtual se sobrepõe ao não virtual. “O nosso momento atual reflete muito bem como, mesmo durante uma pandemia, as ruas não perderam a sua relevância prática e simbólica, apesar de estarem profundamente interconectadas com as redes sociais”, completa. É, na verdade, preciso perceber como esses mundos se sobrepõem e como, a partir desse atrito, se constituem e se colocam em circulação narrativas que podem informar ou desinformar. “Trata-se de um contexto caracterizado pela pós-verdade, onde qualquer enunciado pode ser contraditado a um custo muito baixo.
Para exemplificar, temos visto durante essa pandemia que sentidos construídos em correntes de WhatsApp têm concorrido em termos de atenção e aceitação com as informações divulgadas de pesquisas científicas”, analisa. E, por fim, observa que “o momento atual tem mostrado que, mais do que nunca, estamos desafiados a entender que a forma como nos comunicamos está diretamente ligada à sobrevivência da sociedade”.
Otávio Iost Vinhas (Foto: Arquivo pessoal)
Otávio Iost Vinhas é mestre em Sociologia pela Universidade Federal de Pelotas - UFPel, com a dissertação intitulada “O(s) sentido(s) da ‘facada’ em Jair Bolsonaro: uma análise de redes culturais online à luz da Teoria dos Sistemas de Niklas Luhmann” (2019). Possui graduação em Direito pela Universidade Católica de Pelotas - UCPel. Também é pesquisador do Grupo de Pesquisa em Mídia, Discurso e Análise de Redes Sociais - Midiars.
IHU On-Line – As redes sociais se constituem como ‘O Palco’ para as disputas narrativas no século XXI?
Otávio Vinhas – Sim, é uma tendência que já podemos assumir que está consolidada. Autores como o sociólogo espanhol Manuel Castells relatam que, pelo menos desde os eventos da Primavera Árabe, há praticamente dez anos, a internet já havia passado a desempenhar uma função central na construção de narrativas e na organização de mobilizações sociais. Evidentemente que, no Brasil, esse cenário passou a ganhar visibilidade e contornos particulares a partir das Jornadas de Junho de 2013, quando as redes sociais, além de haverem sido intensamente utilizadas como meios de convocação e divulgação dos atos que ocorriam nas ruas, também constituíram “locais” próprios para os quais se estendiam as manifestações. Hoje, temos um cenário ainda mais complexo, em que mesmo as nossas formas de perceber e de observar o mundo à nossa volta são organizadas através do intercâmbio constante entre o online e o offline, não havendo como traçar uma distinção clara sobre o que é “real” e o que é “virtual”.
Dessa forma, vejo ser necessário ter em mente que as redes sociais não se configuram como uma dimensão isolada do mundo físico. Diferentemente disso, em maior ou menor grau, aspectos concernentes à realidade offline também desempenham uma função importante para a formação das redes online. Normalmente, quando falamos em redes sociais, nos referimos às interações na internet mediadas por plataformas digitais (Facebook, Twitter, YouTube, WhatsApp…). Na prática, é preciso levar em conta que o mundo que nos é apresentado através das interfaces dessas plataformas é construído a partir de informações diversas, incluindo dados correspondentes à nossa realidade física. Isso pode ser exemplificado quando abro um grupo de WhatsApp que possui somente pessoas da minha vizinhança ou quando recebo na timeline do Facebook um conteúdo patrocinado de um estabelecimento da minha cidade.
Em razão disso, ao se entender as redes sociais como “O Palco” ou como “as arenas” para as disputas narrativas do século XXI, evidentemente que não se está pensando que a internet se sobrepôs à “velha” realidade. Trata-se de uma questão bastante complexa, na qual sinto que ainda temos muito a avançar no sentido de compreender como estamos construindo a nossa realidade através da interpenetração entre fronteiras cada vez mais difíceis de serem distinguidas umas das outras. Nesse sentido, o nosso momento atual reflete muito bem como, mesmo durante uma pandemia, as ruas não perderam a sua relevância prática e simbólica, apesar de estarem profundamente interconectadas com as redes sociais.
IHU On-Line – Você analisou as disputas de sentidos referentes ao episódio da facada do então candidato à presidência Jair Bolsonaro no Twitter. O que mais o surpreendeu nessa investigação?
Otávio Vinhas – Foi observar que, inicialmente, as interações sobre a facada no Twitter foram heterogêneas e, ao longo do tempo, passaram a formar uma dinâmica de polarização, constituindo duas narrativas conflitantes em relação ao que havia acontecido. Embora essa possa ser uma tendência que atualmente seja esperada, isso demonstrou que a polarização política não se trata de uma característica estática ou necessária nas redes sociais, mas de uma estrutura contingente na qual a complexidade de um certo evento foi sintetizada em duas “verdades” opostas. Nisso, pude verificar como, por um lado, a facada em Jair Bolsonaro foi significada como uma “farsa” ou “atentado fake” enquanto, por outro, a facada foi construída como uma “tentativa de homicídio”.
Na pesquisa, essa constatação se deu a partir da coleta de um total de 43.413 tweets que mencionaram o termo “facada” em três momentos distintos:
1) no dia da facada;
2) no dia da posse presidencial;
3) no período em que Bolsonaro esteve hospitalizado para retirar a bolsa de colostomia. O foco da investigação consistiu em analisar e descrever, comparativamente, os sentidos construídos sobre a facada em cada um desses contextos.
Os resultados da pesquisa destacam que, através da aplicação de métricas de redes sociais aos tweets, observou-se que no dia da facada emergiram quatro narrativas (expostas a partir de clusters/agrupamentos) heterogêneas sobre o evento, enquanto no período em que Bolsonaro esteve hospitalizado verificaram-se apenas duas narrativas, posicionadas em oposição uma à outra. Entendeu-se que, inicialmente, a complexidade relativa à ocorrência súbita da facada gerou uma instabilidade na sociedade, uma vez que as redes sociais, ao se dispersarem em quatro sentidos distintos, passaram a indicar uma estrutura de desorganização em relação ao significado da facada.
Em contraste, o último momento da análise indicou que a complexidade dessa desorganização inicial passou a ser sintetizada e ordenada sob uma dinâmica diferencial, guiada por expectativas normativas (contrafáticas) fundadas em valores. Por outras palavras, verificou-se que, no Twitter, a construção de sentidos sobre a facada passou a ser sintetizada/organizada em duas perspectivas, a partir de expectativas sobre ser “contra” ou “a favor” de Jair Bolsonaro, em que a “verdade” de um lado foi construída radicalmente em oposição à do outro.
IHU On-Line – Em sua pesquisa, sinaliza que a comunicação da sociedade contemporânea vem sofrendo uma instabilidade. A digitalização das relações sociais é a principal causa dessa instabilidade?
Otávio Vinhas – Exatamente. Com base no direcionamento teórico adotado na pesquisa, entendo que a digitalização das relações sociais promove a emergência de um novo paradigma comunicacional. Trata-se de um processo no qual, de acordo com o sociólogo alemão Niklas Luhmann, o surgimento de novos meios de comunicação é acompanhado por transformações socioculturais na sociedade. Na sua obra, ele relata que os adventos da escrita, da imprensa e das mídias de massa propiciaram um aumento de complexidade na comunicação, estimulando a sociedade a desenvolver novas maneiras de construir sentidos e reproduzir memórias, isto é, de se (auto)organizar. Sob essa lógica, o paradigma comunicacional de uma sociedade digitalizada envolve o desenvolvimento contínuo de formas capazes de, sistematicamente, selecionar e estabilizar sentidos frente ao fluxo humanamente imensurável das comunicações produzidas na internet.
Em razão de estar passando por esse processo — que ainda é bastante incipiente, aliás —, a sociedade vivencia uma instabilidade comunicacional. Nesse sentido, uma das principais mudanças na comunicação que observamos nos últimos tempos, a partir das redes sociais, diz respeito a uma maior descentralização no processo de produção, de legitimação e de difusão de mensagens e notícias. Conceitualmente, é cada vez mais pertinente pensar que, geralmente, a comunicação não se trata de uma transferência direta de informação, mas de uma operação improvável, na qual qualquer pessoa ou grupo pode receber uma mensagem e interpretá-la de modo relativamente aleatório.
Esse aspecto ganha maior força se considerarmos que, segundo a lógica das redes sociais, são as nossas interações que selecionam e passam adiante o que faz e o que não faz sentido, não havendo um sistema mais ou menos centralizado de confiança, em que instituições são encarregadas de verificar o que é informativo e o que não é.
Quando pensamos, por exemplo, sobre o que constitui o fenômeno atual da desinformação, não nos referimos tão somente a ações de causa (espalhamento) e efeito (manipulação), mas a todo um contexto sociotécnico mais abrangente. Tal como vem apontando a pesquisadora e antropóloga Letícia Cesarino, trata-se de um contexto caracterizado pela pós-verdade, onde “qualquer enunciado pode ser contraditado a um custo muito baixo”. Para exemplificar, temos visto durante essa pandemia que sentidos construídos em correntes de WhatsApp têm concorrido em termos de atenção e aceitação com as informações divulgadas de pesquisas científicas. Em consideração a isso, a problemática sobre a desinformação indica que o aumento de instabilidade no processo comunicativo também envolve a atual forma irrefletida pela qual se dão muitas das interações nas redes, em que os afetos e os contextos de produção e observação não são considerados frente a um momento de saturação informacional.
IHU On-Line – Pelas análises das disputas discursivas a partir do episódio da facada, já era possível supor a verdadeira guerra polarizada que tomaria conta do Brasil nos meses seguintes?
Otávio Vinhas – Creio que supor era possível, mas confesso que, a partir do que observei no episódio da facada, não é algo que havia deduzido à época. O último momento analisado na pesquisa compreende o período em que Bolsonaro esteve hospitalizado em janeiro de 2019, isto é, logo no início do seu mandato. Aquele ainda poderia ser considerado um momento no qual o contexto das eleições ainda não havia terminado.
Talvez outros trabalhos, mais focados em analisar as estruturas de polarização, a partir das relações formadas entre os atores da nossa política, pudessem ter deduzido a continuidade dessa guerra polarizada com maior precisão. No Midiars — grupo de pesquisa do qual faço parte — temos pesquisas mostrando que a nossa polarização segue uma tendência assimétrica. Nesse caso, observou-se que, em uma extremidade, os grupos favoráveis a Bolsonaro eram bastante densos e homogêneos, formando conexões quase que exclusivamente com outros atores que também compartilhavam das mesmas opiniões. Enquanto isso, em todo o restante da rede, havia uma heterogeneidade de atores, dentre os quais estavam presentes a imprensa e representantes de diferentes partidos políticos. Assim, as pesquisas focadas nesse aspecto puderam apontar melhor se havia uma tendência de continuidade ou mesmo de intensificação da polarização no nosso cenário político.
IHU On-Line – O Twitter é o meio preferido para que o presidente Jair Bolsonaro propague seus discursos. Por que se dá essa preferência? O quanto dessas dinâmicas empregadas por ele no Twitter teriam sucesso em outras redes?
Otávio Vinhas – Talvez, para o público em geral, a visibilidade de Bolsonaro seja maior no Twitter, mas não acredito que seja a plataforma da sua preferência, assim como é a de Donald Trump. Embora não acompanhe assiduamente todos perfis do Bolsonaro nas redes sociais, me parece que o Facebook desempenha uma função relevante no que diz respeito ao engajamento dos seus apoiadores, até porque é nessa plataforma que há uma dedicação pessoal maior do próprio Bolsonaro, vide as lives que realiza semanalmente.
A estratégia do presidente para propagar os seus discursos se dá a partir de todo um ecossistema informacional próprio, em que praticamente todas as plataformas digitais mais utilizadas desempenham uma função importante. Falando com base naquilo que venho observando ultimamente, há uma forte sinergia entre as declarações de Bolsonaro, as redes orgânicas de apoiadores — formadas principalmente no WhatsApp — e práticas coordenadas de produção de conteúdo e de espalhamento de (des)informação.
Dentro dessa dinâmica, entendo que a construção do discurso bolsonarista não se dá pelo sucesso em apenas uma plataforma específica, mas na relação complementar desempenhada entre, por exemplo, declarações falsas ou distorcidas, mensagens amplamente compartilhadas em grupos de WhatsApp, canais de YouTube patrocinados ou partidarizados e hashtags artificialmente impulsionadas no Twitter.
IHU On-Line – Como analisa a relação entre fake news e redes sociais? Sem as redes, a potência e impacto das fake news seriam menores?
Otávio Vinhas – Primeiramente, acredito que, para pensar sobre essa questão, é importante deixar claro que a internet e as redes sociais não são a causa do fenômeno da desinformação ou disso que muito tem se chamado de “fake news”. Penso que é importante enfatizar esse ponto principalmente neste momento em que diversos projetos de lei formulados às pressas estão tramitando no Congresso Nacional. Conforme diversos especialistas no assunto têm afirmado, uma eventual aprovação de um desses PLs colocaria a liberdade e a privacidade na internet em risco no Brasil.
O conceito mais correto para falarmos sobre isso seria “desinformação” ao invés de “fake news”. Aliás, prefiro não me referir a fake news quando não se trata de um tipo bastante específico, visto que este é um termo que foi popularizado por políticos que visavam atacar jornalistas. Desse modo, a ideia de desinformação aborda de modo mais abrangente as práticas e as técnicas de produzir e espalhar ideias notadamente falsas sobre a realidade.
Conforme descrevi em relação à instabilidade gerada pela digitalização da comunicação, a desinformação possui maior probabilidade de ser propagada em contextos de desorganização informacional. Na ótica atual da pós-verdade, a tendência muitas vezes é de que a internet e as redes sociais sejam percebidas como meios catalisadores de desinformação, mas não estou exatamente convencido de que há uma relação direta de causa implicada. Embora sejam formadas, de fato, redes orgânicas de “contágio” de informações notadamente inverossímeis, normalmente a emergência dessas redes está associada a situações em que estão envolvidos interesses e disputas políticas, econômicas e até mesmo geopolíticas, vide a influência russa nas eleições de 2016 nos Estados Unidos e o que foi divulgado até o momento sobre as investigações no inquérito das fake news no STF. Dito isso, penso que o foco do debate deveria ser menos direcionado à estrutura das redes e mais à conjuntura política e social de cada contexto.
Isso, evidentemente, não exclui a necessidade de seguirmos avançando em diversos debates que buscam a construção de uma internet mais livre, segura e plural, em pautas como: a transparência e a abertura das plataformas digitais, o estabelecimento multissetorial de medidas de combate e/ou mitigação na internet de práticas lesivas à democracia e a redução das desigualdades sociais em todas as suas naturezas.
IHU On-Line – Vivemos um contexto de pandemia, da necessidade de distanciamento social, e as redes – mesmo a internet em geral – têm funcionado como uma forma de aproximação. Como este momento deve impactar os usos, as relações e os discursos nas redes?
Otávio Vinhas – O momento atual de pandemia tem impactado as relações sociais de modo bastante profundo e variado em todas as esferas da sociedade. Diversos pesquisadores vêm relatando as mudanças que estão ocorrendo, que vão desde os vínculos de trabalho até as relações amorosas. Nisso, acredito que é praticamente impossível apontar como estaremos nos próximos 3, 6 ou 12 meses, principalmente aqui no Brasil, em que o caos é instigado como estratégia política de governo, conforme temos visto no caso em relação aos dados da covid-19 no país.
Os discursos nas redes não poderiam deixar de ser influenciados por isso, principalmente se levarmos em conta a ansiedade que atinge boa parte de nós, em maior ou menor grau. Em paralelo à pandemia, a própria Organização Mundial da Saúde - OMS considera haver uma “infodemia”, prejudicando não só a eficácia de medidas de combate, mas dificultando a formação de consensos sobre como a sociedade deve reagir. O momento atual tem mostrado que, mais do que nunca, estamos desafiados a entender que a forma como nos comunicamos está diretamente ligada à sobrevivência da sociedade.