19 Julho 2019
Presidente não recorreu da sentença que considera seu agressor inimputável por problemas psicológicos nem comentou encerramento do processo contra ele. Um segundo inquérito policial ainda investiga a possível participação de terceiros no ataque.
A reportagem é de Beatriz Jucá, publicada por El País, 18-07-2019.
Era plena campanha de uma das eleições mais polarizadas do Brasil. Há pouco mais de dez meses, o presidente Jair Bolsonaro caminhava pelas ruas da cidade mineira de Juiz de Fora, acompanhado por centenas de apoiadores aos gritos de "mito!", quando sofreu um ataque que quase lhe custou a vida. Adélio Bispo de Oliveira cravou uma faca no abdômen do então candidato, segundo ele mesmo justificou às autoridades policiais, por motivos políticos e religiosos. Acreditava que Bolsonaro fazia parte de uma conspiração maçônica que incluía "o extermínio dos militantes dos partidos de esquerda e minorias" e que ele havia sido escolhido por Deus para salvar o país, conforme consta em documentos anexados ao processo. Laudos médicos particulares e judiciais apontam que o responsável pelo crime tinha problemas psicológicos, uma versão que o presidente nunca comprou. "Sabe por que a jogadinha de ser maluco? É que daqui para frente, se ele resolver fazer delação premiada, não vale mais porque ele é maluco", disse em ao vivo, no Facebook.
Desde o ataque, Bolsonaro passou a defender veementemente a tese de que Adélio seria apenas um instrumento de uma suposta tentativa de assassinato planejada por opositores políticos. Chegou a se irritar com as investigações sobre o crime — praticado durante um ato de campanha e, por isso, amplamente documentado em vídeos e fotografias — e até acusou a Polícia Federal de tentar "abafar o caso". "Parece que a PF age em parte como uma defesa do criminoso. Não quero que inventem o responsável, mas quero que apurem o caso", afirmou em uma entrevista semanas depois do atentado. Em fevereiro, a PF apontou que Adélio teria agido só. Meses depois, Bolsonaro mandou reforçar as investigações.
No último mês de junho, a Justiça considerou Adélio inimputável por apresentar problemas psicológicos. Bolsonaro não gostou da decisão. Indignado, prometeu que iria "até as últimas consequências" para que o grave ataque contra ele não ficasse impune. Também chegou a dizer que seria importante evitar que o caso transitasse em julgado para que Adélio tivesse a "oportunidade de falar" quem encomendou sua morte. Nesta semana, porém, a 3ª Vara Federal de Juiz de Fora encerrou o caso porque não recebeu recursos nem do Ministério Público Federal (MPF) nem dos advogados do presidente, que atuavam como assistentes de acusação.
Apesar de ter feito duras críticas às investigações e de ter endossado uma narrativa de conspiração em torno do caso ao longo dos últimos meses, Bolsonaro decidiu silenciar sobre o fim do processo e não explicar por que não recorreu, mesmo tendo criticado o reconhecimento da insanidade mental de seu agressor pela Justiça. No Twitter, onde o presidente costuma ser bastante atuante, a última manifestação sobre o caso aconteceu no dia 11 de junho. Bolsonaro postou um vídeo em que o advogado de Adélio, Zanone Manuel de Oliveira Júnior, se recusa a revelar quem o contratou.
A tese do presidente é de que o responsável pelo pagamento dos honorários indicaria os supostos mandantes do crime contra ele. O mistério em torno disso e o fato de Adélio ter sido filiado ao PSOL durante seis anos (2008-2017) são os principais fatores que alimentam a narrativa do presidente sobre o crime —enquanto, do lado oposto da polarização política, há até um documentário apócrifo no YouTube que garante que o ataque nem sequer ocorreu. O partido, inclusive, costuma ser relacionado ao caso frequentemente tanto pelo presidente quanto pelos seus filhos em suas postagens nas redes sociais. Em referência ao clamor na Internet para apurar os mandantes do assassinato da vereadora Marielle Franco, chegaram a criar a hashtag Quem mandou matar Bolsonaro. Cinco dias após o encerramento do processo, porém, ainda impera o silêncio no clã bolsonarista.
A ausência de reação causou estranhamento até mesmo junto a correligionários, como por exemplo o deputado federal Alexandre Frota. No Twitter, o parlamentar, que já vinha fazendo pequenas críticas ao Governo, reclamou que o caso da facada ficaria impune. "A facada vai ficar por isso mesmo. Nem o esfaqueado se interessa em punição, justiça ou dar continuidade ao processo do suposto crime. Esse é o Brasil estranho", publicou.
Sem recursos que contestassem a sentença, o processo contra Adélio Bispo foi definitivamente finalizado — ou transitado em julgado, no vocabulário jurídico. Ele já não pode mais ser condenado pelo crime praticado contra o presidente Bolsonaro, mas ainda está em curso uma investigação sobre a possível participação de terceiros. Na sentença de Adélio, o juiz federal Bruno Savino reconhece que ele planejou o crime, chegando a fotografar os locais que seriam visitados por Bolsonaro previamente, mas entende que o réu não pode ser responsabilizado por seus atos pela comprovação de insanidade mental. Adélio seguirá, então, internado por tempo indeterminado na Penitenciária Federal de Segurança Máxima de Campo Grande (MS) e deverá ser reexaminado por psiquiatras e psicólogos em um prazo de três anos, quando terá sua periculosidade reavaliada.
A sentença foi proferida no último dia 14 de junho. Três dias depois, o Ministério Público Federal foi intimado, mas não apresentou recurso. "Não havia o que pleitear em recurso nem sobre o que recorrer", explica o procurador Marcelo Medina, responsável pelo caso. Ele lembra que, antes da sentença na ação penal, a Justiça já havia reconhecido a insanidade mental e a consequente inimputabilidade do Adélio. "Então, na ação penal, só havia dois caminhos: a sentença absolutória, caso se entendesse que Adélio não praticou o fato, e a absolutória imprópria, com a aplicação de medida de segurança. Um terceiro caminho não seria possível juridicamente", argumenta.
No dia 28 de junho, o presidente também foi intimado, mas igualmente não apresentou recurso, apesar de Bolsonaro haver dito que iria até as últimas consequências. O EL PAÍS procurou o escritório de advocacia Moraes Pitombo, que representa o presidente no caso, mas não obteve retorno. Ao jornal Estado de São Paulo, o escritório enviou uma nota na qual informa que mudou de estratégia: “Os advogados do sr. presidente preferiram adotar nova estratégia jurídica, em razão da persecução penal evidenciar que o condenado se apresentou como instrumento, ou parte de uma engrenagem, para a prática do grave crime”. O Planalto também não comentou a mudança de estratégia.
O MPF e os advogados do presidente não discutiram a possibilidade de questionar a sentença. Segundo o procurador Marcelo Medina, não seria tecnicamente cabível agora um recurso. "Ele teria que ter sido interposto lá atrás, contra a decisão que reconheceu a inimputabilidade de Adélio. Só que essa decisão também estava calcada em laudos periciais e provas. Não havia nada a defender no recurso", explica.
O processo que foi encerrado trata apenas da atuação de Adélio no atentado contra Jair Bolsonaro. Uma eventual existência de coautores no crime continua sendo investigada em outro inquérito da Polícia Federal, que nos últimos dez meses ouviu mais de 100 pessoas que tiverem contato com Adélio. Um deles é o advogado Zanone Oliveira, que prestou novamente depoimento à PF na última segunda-feira (15) para esclarecer informações sobre o pagamento de despesas de uma viagem que fez a Campo Grande, onde seu cliente Adélio está detido. Alguns desses gastos teriam sido custeados por emissoras de televisão.
No depoimento, Zanone manteve a versão de que uma pessoa que frequentava a mesma igreja de Adélio em Montes Claros pagou 5.000 reais para que ele assumisse a defesa, mas desapareceu após a intensa repercussão do caso. Disse ainda que não revela o nome desta pessoa por questões de segurança e que não tem mais contato com ela. E que decidiu seguir o trabalho mesmo sem pagamento. As investigações policiais devem continuar até o fim de agosto, mas podem ser prorrogadas por mais 90 dias caso o Ministério Público Federal julgue necessário.
Segundo o procurador Marcelo Medina, diversas medidas têm sido adotadas com autorização judicial no curso do inquérito, mas todas elas estão sob sigilo. "Elas se destinam a identificar quais são os interlocutores com quem Adélio manteve contato antes do ataque e a verificar dados sobre vida financeira dele. Todas essas questões não podem ser publicizadas porque envolvem quebra de sigilo bancário e telefônico", explica.
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O inesperado silêncio de Bolsonaro sobre o encerramento do caso Adélio - Instituto Humanitas Unisinos - IHU