23 Junho 2020
“O dilema entre a institucionalização precária da velhice e a dificuldade das famílias urbanas atuais em assumir os deveres filiais de outrora é um dos grandes desafios de nossa espécie. Porque se não nos responsabilizamos pelos velhos, muitas pessoas, quando ainda não forem tão velhas, se preocuparão mais em preparar sua velhice que pelo bem-estar de seus descendentes. E sem cultura de solidariedade aos que nos geraram e aos que geraremos, as bases da reprodução da espécie são minadas”, escreve Manuel Castells, sociólogo espanhol, em artigo publicado por La Vanguardia, 20-06-2020. A tradução é do Cepat.
As espécies se reproduzem na medida em que os membros de uma geração cuidam da sobrevivência de seus sucessores. E também de seus antecessores, porque quando não é assim, rompe-se o vínculo cultural e material da solidariedade. E mais, a sucessão solidária de gerações é o que permite a transmissão de experiências, culturas e instituições. Caso esse equilíbrio sofra perturbação, coloca-se em questão a sobrevivência da espécie.
Visto assim, poderíamos ser pessimistas com o futuro dos humanos. Porque, por um lado, a incapacidade de nossas sociedades para conservar a habitabilidade do planeta azul, ameaçada pela mudança climática e a rápida deterioração do meio ambiente, equivale, como há tempo destacou a comunidade científica, a não se preocupar com nossos netos e com os netos de nossos netos. Não é uma questão ideológica, a menos que neguemos a evidência científica, como fazem Trump, Bolsonaro e outros crânios. Trata-se do sangue de nosso sangue.
Muitos pensam que depois de nós, o dilúvio. E esse dilúvio esta chegando, sob formas diversas e insuspeitas. Porque sempre há pretextos para priorizar a “economia” como se só houvesse uma maneira de produzir e consumir. O certo é que existe um tímido despertar para a consciência ecológica. Cúpulas da mudança climática de Paris e de Madri, Agenda 2030, transição ecológica, economia circular e outros indícios que alguns governos buscam traduzir em políticas concretas, mas que colidem com o emaranhado de interesses que sempre pedem mais tempo e mais subsídios para assumir a necessária mudança. Ao mesmo tempo em que proliferam retóricos acontecimentos geralmente organizados em descumprimento do que se prega.
Enquanto que, por outro lado, começa a se romper o cuidado com os velhos em sociedades cada vez mais envelhecidas, com quase 20% da população atual na Espanha e nosso entorno de maiores de 65 anos, com previsão de chegar a 30%, em 2068.
A pandemia que ainda estamos sofrendo evidenciou em todo o mundo a crise de nossos sistema de cuidados. O alarme se centrou no abandono das residências de idosos, onde, em nosso caso [Espanha], ocorreram 72% das mortes por Covid-19 oficialmente contabilizadas, com porcentagens similares na França, Inglaterra e Itália.
Seja pela rapacidade dos fundos abutres que dominaram o lucrativo mercado das residências privatizadas ou por cortes de gastos sociais, durante a gestão da crise de 2008, ou pela lassidão burocrática de algumas administrações públicas, a tragédia evidenciou o abandono de milhares de nossos velhos. Mas a população em residências representa somente 4% da população maior de 65 anos. E os outros?
Felizmente, os 65 já não são uma condenação à dependência em nossas sociedades, ainda que sim, frequentemente, à estreiteza e inclusive a pobreza para muitos, tendo em conta a falta de solidariedade manifestada nas restrições às aposentadorias até recentemente. De modo que 32,6% dos idosos ainda vivem em sua casa, em casal, e outros 30% vivem sós, às vezes ajudados pela família, às vezes sustentados por cuidadores e muitas vezes deixados a sua sorte. E o resto, em outras situações. Aí estão incluídos os 4% em residências.
A questão é que o aumento da expectativa de vida (atualmente 86 anos para as mulheres, 80 para os homens) aumenta os grupos de idade mais avançada, sendo assim, a capacidade física e psicológica diminui significativamente, a partir dos 80, atualmente mais de 6% da população. Até agora, ainda restam na sociedade espanhola, diferente de outros países, vestígios de solidariedade familiar que permitem que essa parcela da população que já não vive em sua casa possa ainda se apoiar na estrutura familiar. Essencialmente, nas mulheres, que além de cuidar dos filhos, do marido, do lar e de trabalhar fora de casa, precisa se responsabilizar também pelo cuidado dos pais de um e outro membro do casal, assim como de familiares desvalidos. Mesmo com o apoio dos esquemas de subsídio à dependência, a situação se torna insustentável, na medida em que se aumenta o número de velhos em idades mais avançadas.
Esse é o mercado em rápida expansão detectado pelos fundos de investimento especulativos para que a minoria de famílias, ou de velhos com poupanças, que possa se permitir, entre no sistema de residências. Mesmo com o descontentamento majoritário dos velhos que resistem até a sua última energia a que sejam isolados, por mais visitas que lhes prometam e por mais paliativos de comodidade com os quais as residências privadas sejam enfeitadas. Até que em muitas a dura realidade se impõe. E chegam as proteções para que não caiam da cama à noite e saturem ainda mais um pessoal sobrecarregado, que não tem culpa de uma situação extrema.
O dilema entre a institucionalização precária da velhice e a dificuldade das famílias urbanas atuais em assumir os deveres filiais de outrora é um dos grandes desafios de nossa espécie. Porque se não nos responsabilizamos pelos velhos, muitas pessoas, quando ainda não forem tão velhas, se preocuparão mais em preparar sua velhice que pelo bem-estar de seus descendentes. E sem cultura de solidariedade aos que nos geraram e aos que geraremos, as bases da reprodução da espécie são minadas.
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Gerações. Artigo de Manuel Castells - Instituto Humanitas Unisinos - IHU