30 Julho 2020
“Não é necessário conhecer a terminologia marxista "exército industrial de reserva" para saber que a existência de uma população de trabalhadores excedentes na periferia global é necessária para manter os salários baixos no centro. A educação que as empresas do Vale do Silício promovem tenta formar os trabalhadores do futuro, que deverão formar essa massa, e os adapta, desde o primeiro dia de aula, à condição de precários eternos”, escreve Ekaitz Cancela, jornalista e escritor, em artigo publicado por La Marea, 28-07-2020. A tradução é do Cepat.
Em uma das passagens de O Capital, ao explicar que jornada de trabalho nasce como resultado de uma luta entre capitalistas contra operários, Karl Marx utiliza o seguinte exemplo para descrever as táticas dos primeiros: “[…] Na Alemanha, as crianças são educadas desde o berço no trabalho, mesmo que seja em uma ínfima proporção”.
Hoje, a técnica não apenas contribui para absorver o conflito do lado dos proprietários da mais-valia, como também os métodos neotayloristas da fábrica digital foram extrapolados para as aulas virtuais. De dispositivos inteligentes com aplicativos recreativos instalados até câmeras e microfones que reconhecem as experiências sensoriais dos alunos, as tecnologias educacionais convertem cada indivíduo em um número que um algoritmo utiliza para prever e determinar seu futuro trabalho em função de qual área pode ser mais produtivo. Também colocam para competir entre si os menores, antes mesmo de aprenderem sobre a existência dos mercados.
Nesse contexto, precisamos entender as perguntas de uma das revistas mais importantes sobre a EdTech quando começava o surto de coronavírus: “Lutando contra a falta de professores e as salas de aula superlotadas?” E também suas respostas. "Considere distribuir um Chromebook para as crianças”. Em 2018, essa tecnologia de propriedade do Google representava 60% de todos os computadores portáteis e tablets adquiridos para salas de aula dos Estados Unidos, em comparação com os 5%, em 2012. A Microsoft ocupava o segundo lugar neste ranking, com 22% dos dispositivos, seguido pela Apple, com 18%.
Na Espanha, o governo basco anunciou, no ano passado, uma concessão que incentiva a aquisição desses dispositivos para uso no ensino fundamental, ensino médio obrigatório e bacharelado. E embora a associação Xnet tenha convencido a Generalidade da Catalunha a restringir o Google em escolas e institutos, o Departamento de Educação das Ilhas Baleares gastou 850.000 euros em 3.000 dispositivos desse tipo, aludindo à situação excepcional causada pela Covid-19. Agora, o governo da Espanha anunciou um plano de 260 milhões de euros para digitalizar a educação, que inclui a compra de 500.000 dispositivos.
As empresas do Vale do Silício conquistam o quintal das escolas, as infraestruturas digitais nas quais são construídas (servidores e nuvem) e, em seguida, desenvolvem aplicativos que funcionam apenas com suas tecnologias. Por exemplo, a empresa fundada por Bill Gates vende licenças para o plano Microsoft 365 Education, convida os alunos a "melhorar suas carreiras" com os recursos de aprendizagem do Azure for Education e prega que o tablet Surface ajuda a "preparar as salas de aula para o amanhã".
Ao abarcar o software, o hardware e os serviços baseados em nuvem da EdTech, a Microsoft é tão poderosa que muitas escolas terceirizam o gerenciamento de serviços em seus servidores. Conforme denunciado pela Iniciativa EHU ez dago salgai!, a Universidade do País Basco entregou à Microsoft o gerenciamento de mensagens de e-mail.
A concorrência no mercado é como uma guerra, e a estratégia de negócios do Google no mercado educacional é uma das mais selvagens de todas. Em troca dos dados de professores e alunos, esta empresa oferece serviços gratuitos de software educacional, como o G Suite for Education, kits de cursos de todos os tipos e serviços para centros educacionais por meio do Google Cloud Platform. Nesse contexto, as universidades têm a liberdade de escolher entre a Microsoft ou o Google. Alguns anos atrás, a Universidade Carlos III de Madri optou por este último para gerenciar sua correspondência digital.
Por fim, embora a Amazon tenha ousado entrar nesse mercado há apenas cinco anos, por meio de seu ramo de computação em nuvem, o Amazon Web Service oferece o serviço Educate. "O setor EdTech oferece oportunidades empolgantes para ajudar as crianças a serem bem-sucedidas na era digital, independentemente de sua formação", disse Doug Gurr, gerente da empresa no Reino Unido. Para isso, lançou uma série de conteúdo educacional gratuito para famílias, um programa de programação virtual para estudantes de 12 a 17 anos, chamado Amazon Future Engineer, e doou dispositivos gratuitos para ajudar crianças de contextos desfavorecidos.
Ao mesmo tempo, ostenta que a interface de voz fornecida pela Alexa simplifica a maneira como os alunos se inscrevem em seus cursos, ajuda os pais a permanecerem conectados ao que seus filhos estão aprendendo na escola e facilita para os educadores e educadoras economizarem tempo ao acessar informações importantes.
Por sua vez, os dados extraídos pela assistente virtual permitiram à empresa melhorar suas ferramentas de aprendizagem automática (machine learning, em inglês) e garantir que o setor público utilize a rapidez que essas tecnologias permitem para equipar os alunos com as habilidades e experiência que precisam "para ter sucesso".
Como evidencia essa empresa, os alunos começam a dar seus primeiros passos como trabalhadores que aprendem as habilidades necessárias para o futuro mercado digital, através de interfaces projetadas sob medida na Califórnia, mas também como consumidores dos serviços e produtos das empresas que o controlam. Assim, esse círculo vicioso alimenta o poder privado, implantado por meio de vigilância, extração de dados e uso de dados para direcionar os usuários rumo às metas de rentabilidade dos capitalistas individuais. Mesmo antes dos três anos de idade, os trabalhadores perdem a batalha!
Embora, é claro, essa não seja a única consequência derivada da interferência privada na educação pública. De fato, a história da vigilância estudantil nos Estados Unidos é especialmente problemática. Segundo revela o trabalho dos acadêmicos Priscilla M. Regan e Jolene Jesse: "O acompanhamento dos alunos, nos anos 1950, resultou em salas de aula segregadas por raça, etnia, gênero e classe".
De fato, como Shea Swauger explicou em uma palestra recente, "a tecnologia vendida como inovação na EdTech se originou nas prisões e continua com essa tendência na atualidade". Startups como a própria OnGuard nasceram para normalizar casos como do Huntsville City Schools, um distrito escolar do Alabama que pagou mais de 150.000 dólares a um ex-agente do FBI para implementar um programa de monitoramento de mídia social que terminou com a expulsão de 14 estudantes, dos quais 12 eram afro-americanos.
"A educação a distância significa que os distritos precisarão de ajuda para monitorar de perto os alunos e protegê-los no ambiente digital", disse uma porta-voz da Gaggle Safety Management, empresa que assinou uma parceria com a Microsoft para monitorar a atividade dos alunos e alertar os funcionários quando necessário. Do mesmo modo que a cultura de militarização pode discriminar de acordo com raça ou etnia, a governança neoliberal facilitada pelas tecnologias educacionais pode naturalizar outros vieses que surgem ao categorizar os sujeitos como adequados ou insuficientes para um trabalho baseado em padrões de análise de dados.
Nesse sentido, os professores Jun Yu Icon e Nick Couldry apontam que a “datificação da educação” implica “a criação de um ecossistema de extração de dados em que as empresas ganham dinheiro projetando perfis e criando previsões personalizadas sobre o progresso futuro dos estudantes”.
Essas últimas linhas devem ser lidas no contexto em que The Washington Post (seu proprietário é Jeff Bezos, fundador da Amazon) cunhou, sem nenhum escrúpulo, como WallStreetificação da educação, ou seja, acordos financeiros de um tipo diferente, como o Bônus de impacto social (SIB, sigla em inglês), Pagar segundo o êxito (PFS) e o Financiamento baseado em resultados (RBF). Sob esse tipo de financeirização da educação desde tenra idade, o aprendizado se torna um jogo econômico, que suaviza a doutrina da competição.
Como é incorporado na prática? A jornalista Laura Galaup publicou há mais de um ano que a Conferência de Reitores das Universidades Espanholas (CRUE) lançou um aplicativo acadêmico que oferece ao Banco Santander uma maneira exclusiva de “obter dados pessoais e acadêmicos de alunos e professores para criar perfis e oferecer serviços financeiros individualizados ”.
É o neoliberalismo em sua expressão mais pura: instituições públicas, Estado e sociedade se retiram para dar lugar a instituições criadas ad hoc com o objetivo de que os sujeitos venham ao mercado para obter respostas para seus problemas. Obviamente, essa prática geralmente é apresentada como mais alinhada aos interesses dos alunos, especialmente na educação infantil. Uma das divisões no negócio da Microsoft EdTech é a computação pessoal, onde oferece plataformas de aprendizagem por meio de jogos para o XBox.
Por sua vez, o Google Home anunciou recentemente que disponibilizaria mais de 50 novos jogos para crianças através do Family Li. O Gidi Mobile, que recebeu um milhão de dólares do Google, possui 500.000 usuários que usam diretamente produtos de e-learning gamificados. O Google também introduziu um assistente de voz focado em brincar com crianças chamado Diya, como parte de seu novo aplicativo educacional para Android Read Along. Como se isso não bastasse, o Facebook Innovate vende "produtos de ponta que transformam lições em experiências imersivas", usando os óculos de realidade virtual Occulus.
Todas essas tecnologias representam a taylorização da educação, pois são equivalentes às pulseiras inteligentes usadas pelos trabalhadores nos armazéns de logística da Amazon e aos aplicativos que controlam os entregadores nas plataformas de entrega em domicílio. Como destacavam os professores Emiliano Grimaldi e Stephen J. Ball, “o neoliberalismo convida as pessoas a serem flexíveis, responsáveis e autogerenciadas em diferentes áreas da vida. E, ao mesmo tempo, estabelece relações numéricas entre o aluno e o professor”.
Agora, como diferentes intelectuais destacam, não há dúvida de que esta última figura será excluída devido à mediação algorítmica entre estudantes e plataformas digitais. Ao orientar automaticamente os alunos em direção a uma profissão com base nos dados coletados durante a vida, as hierarquias sociais parecerão naturais ou simplesmente desaparecerão da imaginação coletiva. Se uma família não puder levar seus filhos para a escola com os recursos para adquirir o software necessário para implementar a educação do futuro, será difícil para eles acessar um emprego bem remunerado. Essa desigualdade entre classes se tornará ainda mais visível em lares onde não existem dispositivos tecnológicos para todos os membros da família.
Não é necessário conhecer a terminologia marxista "exército industrial de reserva" para saber que a existência de uma população de trabalhadores excedentes na periferia global é necessária para manter os salários baixos no centro. A educação que as empresas do Vale do Silício promovem tenta formar os trabalhadores do futuro, que deverão formar essa massa, e os adapta, desde o primeiro dia de aula, à condição de precários eternos.
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A escola inteligente do Vale do Silício: assim se desenha os trabalhadores do futuro. Artigo de Ekaitz Cancela - Instituto Humanitas Unisinos - IHU