10 Agosto 2017
"O perigo da criação dos robôs sapiens é a humanidade perder sua posição privilegiada de único “animal racional” do Planeta (e quem sabe do Universo). O pesadelo humano seria os robôs inteligentes, com capacidade de autoprogramação e autoconhecimento se rebelar contra os seus criadores e repetir a insubordinação de Lúcifer e Prometeu" escreve José Eustáquio Diniz Alves, doutor em demografia e professor titular do mestrado e doutorado em População, Território e Estatísticas Públicas da Escola Nacional de Ciências Estatísticas – ENCE/IBGE, em artigo publicado por EcoDebate, 09-08-2017.
Segundo ele, citando Auguste Comte, "a humanidade teve que passar por vários estágios até evoluir para formas superiores de conhecimento. No primeiro, o teológico, os fenômenos seriam explicados pela interferência das ações divinas; no segundo, o metafísico, prevaleceria a reflexão sobre o significado abstrato das coisas; no terceiro, estado positivo, as explicações sobre o mundo natural e social seriam frutos da observação dos fenômenos reais e da dedução das leis universais da natureza, por meio do método racional e científico. A Revolução 4.0 vai possibilitar a passagem do fogo prometeico (conhecimento) para as máquinas?"
“Sábio é aquele que conhece os limites da própria ignorância” Sócrates
O segredo das revoluções industriais da modernidade é o aumento da produtividade, isto é, o aumento da unidade produzida por trabalhador ou o aumento do Produto Interno Bruto (PIB) por habitante. Entre 1776 e 2014 o crescimento da população mundial foi de quase 9 vezes (de cerca de 850 milhões para 7,3 bilhões de habitantes), enquanto o crescimento do PIB global ficou em torno de 120 vezes, segundo cálculos de Angus Maddison. O banquete cresceu mais do que o número de comensais. O aumento da renda per capita foi de, aproximadamente, 13 vezes.
Ou seja, sem considerar as desigualdades históricas da renda e da propriedade, cada habitante do Planeta tinha, em média, em 2014, um pedaço do PIB 13 vezes maior do que o habitante de 1776. Isto só foi possível por que a produtividade da população aumentou 1,9% ao ano, em média, no período de 238 anos. Mas o crescimento da produtividade não foi uniforme, pois houve períodos de baixa – como entre as duas grandes guerras entre 1914 e 1945 – e houve a época de maior prosperidade da história humana, que foi entre 1945 e 1973, período conhecido como os “30 anos de ouro” do desenvolvimento global.
Nos últimos 70 anos, as melhorias na qualidade de vida da população mundial foram impressionantes, quaisquer que sejam os indicadores utilizados: tais como esperança de vida ao nascer, mortalidade infantil, redução da fome e da desnutrição, redução do analfabetismo, percentagem de jovens cursando o segundo grau, garantia da moradia, padrão de consumo, acesso à informação, dentre outros.
Contudo, a produtividade caiu na década de 1980, voltou a subir ligeiramente na década de 1990, declinou novamente nos anos 2000 e atingiu os níveis mais baixos a partir da crise financeira global de 2008. O gráfico acima, de artigo do economista e editor Martin Wolf (21/07/2017) e com base nos trabalhos de Robert Gordon, mostra que a produtividade total dos Estados Unidos (EUA), entre 2004 e 2014 é a mais baixa desde o final do século XIX.
Olhando apenas pelo lado dos seres humanos (e sem considerar o empobrecimento do meio ambiente) as três primeiras revoluções urbano-industriais foram um sucesso. O desenvolvimento econômico e social ocorreu de forma desigual e combinada, mas trouxe muita abundância nas economias avançadas e conseguiu reduzir a pobreza extrema e a fome, pelo menos, para os níveis propostos nos Objetivos do Desenvolvimento do Milênio. Contudo, nota-se uma estagnação na última década, justamente quando se anuncia uma nova Era de progresso científico e tecnológico.
Até agora, a 4ª Revolução Industrial tem feito muito barulho por quase nada. A produtividade está estacionada em níveis baixos, enquanto crescem os sinais de descontentamento. O gráfico abaixo mostra que, mesmo nas economias mais desenvolvidas, a proporção de famílias com renda real estagnada ou em queda, entre 2005 e 2012-14, atinge quase 100% na Itália, cerca de 80% nos EUA e mais de 60% na média das 25 economias mais avançadas.
O baixo crescimento atual só não está pior porque os governos assumiram dívidas monstruosas depois da crise de 2008. Em vez de uma grande decolagem o que pode ocorrer ainda esse ano, ou no ano que vem, é uma grande aterrissagem forçada e uma nova crise financeira de grandes proporções.
Por isto, cabem as perguntas: será que a economia internacional está condenada à nova crise e à “estagnação secular” ou a 4ª Revolução Industrial vai aumentar a produtividade e criar um mundo de abundância e de felicidade? Será que os robôs e a Inteligência Artificial (IA) vão revolucionar o processo produtivo, ampliar o leque de bens e serviços e transformar para melhor as formas de convívio social ou vão aumentar as desigualdades e favorecer a uma elite?
A Revolução 4.0 tem sido questionada em algumas de suas maiores promessas tecnológicas. Duas personalidades mundiais têm alertado para os perigos da união entre robôs e IA: o empreendedor (de nacionalidade sul-africana), Elon Musk, e o físico inglês, Stephen Hawking. Ambos consideram que a Inteligência Artificial sem controle é uma ameaça ao processo civilizatório e poderia significar o fim da raça humana. Eles consideram que os humanos, limitados, física e biologicamente, não teriam condições de competir com robôs inteligentes e autônomos que poderiam ser reprogramar e atingir níveis inimagináveis de inteligência.
Os robôs invasivos já são realidade na área militar, no telemarketing e na propagação de notícias falsas (“fake news”). Artigo de Helton Gomes (27/07/2017) mostra que cientistas já usam Inteligência Artificial para colocar palavras na boca de alguém. Pesquisadores da Universidade de Washington (EUA) criaram um vídeo falso de Obama, em projeto patrocinado por Samsung, Google, Facebook e Intel, com algoritmo que manipula palavras da própria pessoa em contextos diferentes para criar situação embaraçosa. O robô cibernético cria uma imagem que tenha a cara do sujeito, se expresse como ele, fale como ele, mas seja totalmente falsa.
Por conta de tudo isto, um número muito grande de estudiosos da ciência e tecnologia assinaram uma carta aberta pedindo que os governos mundiais proíbam o desenvolvimento de “armas autônomas ofensivas” para impedir uma “corrida armamentista militar de Inteligência Artificial”. A carta apresentada na Conferência Conjunta Internacional sobre Inteligência Artificial (IJCAI, sigla em inglês), ocorrida em Buenos Aires, em 2015, foi assinada por Stephen Hawking, Elon Musk, Noam Chomsky, além de dezenas de outros pesquisadores de robótica e IA (ver link no final).
Recentemente, Musk foi criticado e criticou o CEO do Facebook, Mark Zuckerberg, que tem uma visão mais condescendente com a IA do que outros. Os críticos dizem que parece que ele tem intenção de utilizar a Inteligência Artificial para aumentar o seu poder corporativo digital sobre grande parte do mundo. (Brown, 25/07/2017 e Newitz, 25/07/2017). As disputas atuais pelo desenvolvimento da Inteligência Artificial refletem, de certa forma, a luta histórica pela apropriação do saber e a disputa pelo controle da autoinstrução. O Facebook já lançou o “ChatBot”, ou robô de conversação, que é uma tecnologia capaz de simular diálogos com seres humanos por meio de uma série de comando pré-definidos, mas que com a IA vai ter usos mais ampliados.
A luta pelo conhecimento faz parte da história da humanidade e compõe as páginas mais impactantes da mitologia e da religião. Na representação grega, Prometeu enganou os deuses do Olimpo e roubou o fogo da sabedoria para repassar aos humanos. Como castigo, Zeus condenou Prometeu a viver acorrentado a uma rocha, enquanto uma águia comia repetidamente o seu fígado, que se regenerava diariamente. Embora castigado, Prometeu serviu de inspiração para a rebeldia humana e para o desejo de conhecer os segredos do mundo e dominar as leis da natureza. Desta forma, as revoluções industriais são devedoras da ousadia de Prometeu.
A luta pelo controle do conhecimento não é menos dramática na narrativa judaico-cristã. Segundo John Milton, no excepcional poema épico, “Paraíso Perdido”, de 1667, Lúcifer (o portador da luz) liderou uma rebelião pela posse do conhecimento e do poder da criação, recusando a se submeter a Deus e ao seu Filho, alegando que os anjos foram autogerados e que não reconheciam o poder Divino Monárquico. É famosa a sua frase: “Melhor reinar no Inferno do que obedecer no Céu”.
No comando do inferno e com o nome de Satanás, Lúcifer e os demônios (anjos caídos) decidem corromper a mais nova espécie do Jardim do Éden. Adão, criado à imagem de Deus, e sua esposa Eva, constituíam uma espécie superior em relação as demais criaturas do Paraíso. Satanás, incapaz de vencer as Hostes Celestiais, resolve, então, seduzir Eva e, por meio dela, fazer Adão comer o fruto da Árvore do conhecimento. Desta forma, Adão e Eva são expulsos do Paraíso por terem ousado provar o conhecimento da Árvore proibida.
Portanto, o desejo de controlar o conhecimento é a força que explica o desenrolar das tragédias de Prometeu e de Adão e Eva. Na interpretação de Auguste Comte, a humanidade teve que passar por vários estágios até evoluir para formas superiores de conhecimento. No primeiro, o teológico, os fenômenos seriam explicados pela interferência das ações divinas; no segundo, o metafísico, prevaleceria a reflexão sobre o significado abstrato das coisas; no terceiro, estado positivo, as explicações sobre o mundo natural e social seriam frutos da observação dos fenômenos reais e da dedução das leis universais da natureza, por meio do método racional e científico. A Revolução 4.0 vai possibilitar a passagem do fogo prometeico (conhecimento) para as máquinas?
O positivismo de Auguste Comte (“Amor, Ordem e Progresso”) se tornou uma ideologia que serviu ao processo de acumulação de capital e é um dos componentes do sucesso das sucessivas Revoluções Industriais. Como mostraram os dados apresentados anteriormente, o sucesso do progresso econômico nos últimos 240 anos foi gigantesco, embora ele tenha sido erguido sobre uma base natural cada vez mais desrespeitada e empobrecida.
A Revolução 4.0 surge com a promessa de radicalizar os ganhos da ciência e da tecnologia. Na concepção de Klaus Schwab as inovações em curso incluem, veículos elétricos e autônomos, internet das coisas, impressão 3D, nanotecnologia, biotecnologia, armazenamento de energia, computação quântica, robótica e inteligência artificial. Tudo isto realizado de maneira mais acelerada, mais profunda, com maior impacto e com maior interação entre os domínios físicos, digitais e biológicos.
A união entre Robôs e a Inteligência Artificial promete ser a ponta de lança da Revolução 4.0. Os robôs inteligentes fariam todo o trabalho e ainda seriam responsáveis por novas invenções e descobertas. Segundo Ray Kurzweil, no livro “The Singularity is Near” (2005), o mundo se aproxima da Singularidade tecnológica, o que seria um crescimento exponencial do conhecimento e um desenvolvimento desenfreado da superinteligência artificial.
Os cérebros cibernéticos dos robôs (redes neurais artificiais) estariam mais bem preparados para essa nova Era da inteligência sem limites. A referência é o “Teste de Turing” (capacidade de uma máquina exibir comportamento inteligente equivalente a um ser humano). Na escola dos robôs inteligentes seria ensinado a aprendizagem profunda (“Deep Learning”) ou aprendizagem estruturada profunda, baseada em um conjunto de algoritmos para modelar o Big Data por meio de equações matemáticas e transformações lineares e não lineares. Robôs com memória ilimitada e capacidade cognitiva se tornariam quase uma nova “raça”: seriam os robôs sapiens!
O perigo da criação dos robôs sapiens é a humanidade perder sua posição privilegiada de único “animal racional” do Planeta (e quem sabe do Universo). O pesadelo humano seria os robôs inteligentes, com capacidade de autoprogramação e autoconhecimento se rebelar contra os seus criadores e repetir a insubordinação de Lúcifer e Prometeu.
Se os robôs sapiens (com capacidade cognitiva) ficarem mais efetivos do que os humanos, a humanidade se tornaria uma casta inferior. Diversos críticos, como Francis Fukuyama, expressam preocupação com o fato de o desenvolvimento tecnológico desenfreado poder minar a dignidade humana.
A revolução digital, a Internet das Coisas e o Big Data prometem grandes benefícios universais e um aprofundamento dos ideais iluministas, mas podem funcionar como o Big Brother do romance, 1984, de George Orwell. Em vez de ampliar a chama do fogo prometeico e expandir a liberdade e o autodomínio, pode haver, simplesmente dependência e escravidão digital e social.
Segundo o grande filósofo alemão Immanuel Kant (1985): “A ilustração é a saída do ser humano de sua menoridade, da qual é o próprio culpado. A menoridade é a incapacidade de se servir de seu entendimento sem a direção de outrem. A pessoa é culpada por essa menoridade quando sua causa não reside numa deficiência intelectual, mas na falta de decisão e de coragem de usar a razão sem a tutela alheia. Sapere aude! Ousa servir-te de tua razão! Eis a divisa do Iluminismo”.
No mundo regido pela robótica e a Inteligência Artificial a sabedoria humana estará aquém da capacidade de resposta da rede neural digital. Parafraseando Kant: “Sapere aude robôs sapiens! Eis a divisa da Inteligência Artificial”.
Assim, a Revolução 4.0, os Robôs e a Inteligência Artificial podem não entregar tudo que prometem e podem fracassar, ao não conseguir elevar a produtividade total da economia, gerando apenas mais desigualdade de renda, mais exclusão social e mais controle por parte das grandes corporações. Porém, até mesmo o sucesso da Inteligência Artificial, na perspectiva da Revolução 4.0, pode significar um reverso para a humanidade, pois poderia impor diversos dilemas éticos de difícil resolução, além de tornar a inteligência humana uma coisa limitada, deficiente e ultrapassada.
De fato, o mundo passa por mudanças disruptivas e a involução relativa dos seres humanos não está descartada. A questão é saber se os benefícios vão superar os custos, se a maioria da população vai ser beneficiada e quem vai pagar a conta pelas mudanças aceleradas que vão mexer com os padrões de produção e consumo e o modo de vida de toda a população mundial. Também não está claro até que ponto tudo isto vai afetar o meio ambiente.
No pior cenário, a Revolução 4.0 pode ser um fracasso e pode não cumprir suas promessas de garantir autonomia e uma saudável qualidade de vida humana e ambiental. No pior dos piores cenários seria a indústria de guerra construir robôs sapiens assassinos para viabilizar as vitórias militares e a dominação dos fortes contra os fracos.
No caso de “sucesso” dos autômatos sapiens, o poder irrestrito da robótica com a Inteligência Artificial poderia vir não para o bem e para a libertação, mas para o mal (guerras, escravidão digital, etc.) e como heteronomia e servidão voluntária. Ao fim e ao cabo, a 4ª Revolução Industrial, em vez de aumentar o farto repasto para os bilhões de humanos, pode, simplesmente, estar alimentando o germe de uma ameaça à própria existência da humanidade.
ALVES, JED. Inteligência artificial: ameaça à civilização, Colabora, RJ, 02/08/2017
KANT, E. Que és la ilustración? In: ÍMAZ, Eugenio (Org.) Filosofia de la historia. México: Fondo de Cultura Económica, 1985. p. 25-38.
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Ray Kurzweil, The Singularity is Near, Penguin Group, 2005
Mike Brown. Elon Musk Slams Mark Zuckerberg’s ‘Limited’ Understanding of A.I., Inverse, 25/07/2017
Annalee Newitz. Zuckerberg and Musk are both wrong about AI, 25/07/2017
Ian Bogost. Why Zuckerberg and Musk Are Fighting About the Robot Future, The Atlantic, 27/07/2017
AUTONOMOUS WEAPONS: AN OPEN LETTER FROM AI & ROBOTICS RESEARCHERS, 28/07/2015
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A Revolução 4.0, a Inteligência Artificial e os Robôs sapiens - Instituto Humanitas Unisinos - IHU