26 Março 2015
"A influência humana no sistema climático é clara e quanto maiores forem os impactos antrópicos, maiores serão os riscos de consequências graves, amplas e irreversíveis. Nenhuma parte do mundo ficará intocada", escreve José Eustáquio Diniz Alves, doutor em demografia e professor titular do mestrado e doutorado em População, Território e Estatísticas Públicas da Escola Nacional de Ciências Estatísticas – ENCE/IBGE, em artigo publicado por EcoDebate, 25-03-2015.
“Enquanto o humanismo for feito por contraste com o objeto
abandonado à epistemologia, não compreenderemos
nem o humano, nem o não-humano”
Bruno Latour
Eis o artigo.
O Homo Sapiens é uma espécie caçula na Terra, que surgiu há cerca de 200 mil anos na África, e um certo tempo depois se espalhou pelo mundo. Há 10.000 anos os seres humanos e seus animais representavam menos de um décimo de um por cento da biomassa dos vertebrados da terra e agora são 97 por cento (Patterson, 2014). O progresso humano ocorreu de forma lenta na maior parte da história, mas adquiriu uma dimensão exponencial nos últimos 200 anos, quando as atividades antrópicas se tornaram onipresentes.
A demografia fornece dados esclarecedores a partir das estatísticas vitais. Segundo Angus Maddison (2008), a esperança de vida ao nascer do mundo era de apenas 24 anos no ano 1000 da Era Cristã. Nos países ocidentais (Europa Ocidental e Estados Unidos) a esperança de vida passou para 36 anos em 1820, 46 anos em 1900 e 67 anos em 1950. No resto do mundo a esperança de vida ao nascer ainda estava em 24 anos em 1820, chegou a 26 anos em 1900 e a 44 anos em 1950.
Dados da Divisão de População da ONU (UN/ESA, 2012) mostram que os ganhos que ocorreram depois da Revolução Industrial e Energética (ocorrida no final do século XVIII) se aceleraram após a Segunda Guerra Mundial. No quinquênio 1950-55 a esperança de vida da população mundial era de 46,9 anos e a mortalidade infantil era de 135 mortes de crianças de 0 a 1 ano de idade, para cada mil nascimentos. No ano 2000 a esperança de vida dos seres humanos tinha passado para 67 anos e a mortalidade infantil tinha caido para 48 mortes por mil nascimentos. No quinquênio 2010-15 a esperança de vida chegou aos 70 anos e a mortalidade infantil baixou para 37 por mil. As estimativas da ONU para o final do século XXI apontam para uma esperança de vida de 82 anos e uma mortalidade infantil de somente 8,2 por mil (ou 0,82%). Em nenhum outro período da história a esperança de vida da humanidade cresceu tanto em um espaço de um século e nunca a longevidade média da população foi tão alta.
Nos 250 anos entre 1776 e 2014, turbinada pelos combustíveis fósseis, a população mundial cresceu quase 9 vezes e a economia global cerca de 120 vezes. O crescimento anual da população ficou em torno de 0,9% ao ano e a economia em torno de 2% ao ano. A renda per capita cresceu 13 vezes, superando todos os recordes históricos. O relatório Global Monitoring Report 2014/2015 (World Bank, 2015) mostra que houve uma redução absoluta e relativa da extrema pobreza no mundo. Em 1990, existiam quase dois bilhões (1,920 bilhão) de pessoas vivendo com menos de US$ 1,25 ao dia, representando 36,4% da população. Em 2011, o número absoluto de pessoas vivendo na extrema pobreza atingiu o nível mais baixo, caindo para 1,010 bilhão, o que representa 14,5% da população total. O percentual global de pessoas vivendo na extrema pobreza em 2011 já era menos da metade daquele existente em 1990. O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) mundial era de 0,559 em 1980 e passou para 0,702 em 2013.
No campo da democracia, além do processo de descolonização que aconteceu após o fim da Segunda Guerra Mundial, o número de países com parlamentos funcionando, com maior ou menor grau de liberdade, passou de 26 em 1945 para 194 em 2010. O percentual de mulheres deputadas nos diversos países passou de 3% em 1945 para 23% em 2015. A despeito das desigualdades ainda existentes entre homens e mulheres, houve redução do hiato de gênero no mundo nas últimas décadas. O racismo e a escravidão – mesmo resistindo ao tempo – são considerados ilegais na maioria dos países. Crescem os mecanismos, mesmo que ainda não totalmente eficientes, para monitorar a situação dos direitos humanos, assim como os instrumentos internacionais para promover a cidadania (Alves, 2012).
Tudo isto possibilitou uma grande expansão da produção de bens e serviços e um grande aumento do consumo, com um crescente número de pessoas tendo acesso a: moradias, banheiro, água encanada, saneamento, produtos de limpeza e higiene, luz elétrica, geladeira, TV, DVD, CD, TV-HD, fogão, máquina de lavar roupa, móveis, micro-ondas, moto, bicicleta, carro, relógio, roupa, comida industrializada, telefone, celular, TV a cabo, internet, educação, saúde, lazer, viagens, etc. Atualmente existem mais de um bilhão de veículos automotores no mundo, número superior a toda a população do globo antes de 1800 e o número de celulares em 2015 está caminhando para se igualar ao número de 7,25 bilhões de habitantes da Terra (Alves, 2014).
A despeito de todo o progresso humano ocorrido ao longo do período de construção da sociedade urbano-industrial, há quem pense que a arquitetura social está involuindo e o mundo está se desintegrando em conflitos e guerras. Para comprovar o que os demógrafos e os epidemiologistas de certa forma já sabiam, o psicólogo evolucionista Steven Pinker escreveu o livro “Os melhores anjos da nossa natureza: por que a violência diminuiu” (Companhia das Letras, 2013) buscando mostrar que o mundo atual está mais seguro para se viver e a raça humana se mostra cada vez menos violenta consigo mesma.
Embora com duas guerras mundiais, um punhado de ditadores genocidas, homicídios, inúmeros conflitos localizados e 180 milhões de mortes nos diversos massacres, o século 20 é o campeão de um banho de sangue em termos absolutos, mas não em termos relativos. Em termos proporcionais, a violência sempre foi maior entre os nossos ancestrais. Ou seja, a tese do livro de Pinker é simples: A violência diminuiu em termos absolutos ao longo da jornada milenar do Homo sapiens até os dias de hoje. Por exemplo, a “gripe espanhola”, de 1918, matou muito mais gente que a epidemia de Ebola, gripe aviária e outras epidemias recentes.
Além disto a sociedade está ficando mais democrática. Em artigo recente na revista Slate, utilizando dados do Polity IV Project sobre o grau de democracia e autocracia entre os países, Pinker mostra que houve avanço da democracia no mundo entre 1945 e 2013. A maioria dos países do globo hoje são democráticos e não somente os países ricos do Ocidente, mas também as diversas nações de todos os continentes.
Democracia e autocracia
Para não parecer um otimista mal-informado, Pinker considera que o fato de a humanidade ter caminhado para a prosperidade e a paz não é garantia de que vá continuar a fazê-lo. Para manter a linha da paz e tolerância, ele considera ser necessário que os “anjos” preponderem sobre os “demônios”. Porém, o número de refugiados em 2014 bateu o recorde histórico e tende a crescer a discriminação contra os imigrantes na medida em que se amplia o fosso demográfico, por exemplo, entre a Europa e a África. De fato, o principal anjo que propiciou o avanço material e, consequentemente, o avanço político, foi aquele manifestado na energia dos combustíveis fósseis que trouxeram ganhos inigualáveis para o progresso da humanidade. É muito questionável a possibilidade de extrapolar as tendências do passado recente (últimos dois séculos). O futuro pode ser pior do que o passado e a plenitude pode indicar o início de uma estagnação ou declínio.
Feito estas observações, cabe destacar que Steven Pinker não tratou em seu livro do fato de que todo o progresso humano, além de ser um período excepcional não generalizável para a frente, ocorreu às custas do regresso ambiental. Ou seja, o aumento do bem-estar, da democracia e a redução da violência que aconteceram entre os seres humanos, além da possibilidade de retrocesso, não ocorreram em relação às espécies não-humanas, pois houve aumento da violência e da autocracia com crescente aumento dos ataques aos direitos dos animais e aos direitos da natureza, com degradação do meio ambiente e decrescimento da biodiversidade. Faltou a Pinker uma visão holística e ecológica, para superar a visão parcial, cartesiana e newtoniana do progresso.
Em perspectiva oposta a Pinker, o professor da London School of Economics, John Gray, nos livros: “Straw Dogs: Thoughts on Humans and Other Animals” (2002) e “The Silence of Animals: On Progress and Other Modern Myths” (2013) mostra que “O progresso é uma ilusão”. Ele questiona a ideia da tecnologia como salvação e a crença de que podemos assumir a responsabilidade por nosso destino, ou que a humanidade possa se tornar a tutora dos recursos naturais do planeta. Gray olha para o silêncio dos animais como uma contraposição à loguacidade humana e zomba daqueles que pensam subordinar a natureza a seus planos monumentais. De fato, desde o Iluminismo no século XVIII, o progresso na ciência e na tecnologia é real, mas só faz aumentar o conhecimento antropocêntrico, sendo que esse poder pode ser usado para objetivos benignos mas também para os mais desastrosos. Quando o conceito de progresso é aplicado à ética e à política, ele é uma ilusão perigosa. Ele considera absurda a ideia de que a ação humana pode salvar a humanidade ou o planeta, pois seria desesperançoso colocar a Terra “aos cuidados dessa espécie notadamente destrutiva”.
Também como mostrou Fritjof Capra (1983) no livro “O Ponto de Mutação” devemos enxergar a realidade em sua totalidade e interdependência. Enquanto a humanidade acelerou sua prosperidade e bem-estar, a natureza seguiu o caminho contrário, com a pauperização e a degradação dos ecossistemas. Os economistas convencionais, em geral, carecem de uma perspectiva ecológica e têm dificuldade para analisar o atual estágio de desequilíbrio entre o enriquecimento humano e o empobrecimento do meio ambiente, ou seja, entre a dimensão humana e as dimensões inumanas. As bases naturais regridem em termos de solo, água e ar.
A destruição da cobertura floresta foi um dos primeiros símbolos da regressão ambiental. Segundo a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), o ritmo do desmatamento, devido ao uso de áreas florestais para fins agrícolas e para a demanda humana por madeira, lenha e espaço para a pecuária foi de 14,5 milhões de hectares por ano entre 1990 e 2005. Hoje, no mundo, cerca de 30% das terras têm alto ou médio grau de degradação, devido a erosão, salinização, impermeabilização e poluição química. Estima-se uma perda de 24 bilhões de toneladas de solo fértil por ano, e um quarto da superfície da terra já foi degradado. É preciso meio milênio para construir dois centímetros de solo vivo e apenas segundos para destruí-lo (Leahy, 2013)
A destruição dos solos e o processo de desertificação avançam em ritmo acelerado. A ONU definiu 2015 como o Ano Internacional do Solo, quando haverá uma série de encontros internacionais. A quantidade de solo fértil per capita caiu pela metade nos últimos 50 anos, e a projeção é que caia novamente pela metade até 2050. Os dados são do grupo alemão Global Soil Forum que chama a atenção para o fato de o solo ser finito, sendo que sua degradação traz impactos para a produção de alimentos e para a biodiversidade. Durante a COP 20, em Lima, foi lançada a iniciativa 20×20, que pretende restaurar 20 milhões de hectares de solos de sete países latino-americanos, até 2020.
No Brasil, as responsabilidades dos diferentes entes governamentais na execução de uma política coerente para conservação dos solos estão dispersas e desarticuladas, pois parte das ações se localiza no Ministério do Meio Ambiente, outra na Agricultura, outra no Desenvolvimento Agrário. Estudo da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) revela a situação preocupante no caso do Cerrado, bioma que ocupa 203,4 milhões de hectares e corresponde a 24% do território nacional, sendo responsável pela produção de 55% da carne brasileira. Através de imagens de satélite coletadas entre 2006 e 2011, o levantamento mostra que 32 milhões de hectares de pastagens (ou 60% dos 53 milhões de hectares) foram degradados. A Mata Atlântica já perdeu 93% da sua cobertura original. O mau uso do solo na agricultura e na pecuária leva à improdutividade destas áreas e uma das consequências é a pressão sobre áreas preservadas (Milhorance, 2014).
A crise do solo pode ser agravada pela crise hídrica, pois a escassez de água potável atinge as áreas rurais e as áreas urbanas e ultrapassa as fronteiras nacionais. De toda a quantidade de água da Terra, apenas 2,5% são potáveis. Desta pequena parcela, 69% estão congeladas nas regiões polares e 30% misturadas no solo ou estocadas em aquíferos de difícil acesso. Só resta 140 mil quilômetros cúbicos de água para serem utilizadas por toda a biodiversidade do Planeta.
Relatório da Goldman Sachs (2013), mostra que a escassez de água doce pode ser um impedimento para o crescimento econômico na medida em que crescem a demanda por comida e demais bens e serviços. A água potável é um recurso escasso e mal distribuído, pois 60% das fontes estão em apenas dez países, dentre eles Brasil (13%), Rússia (10%), Canadá (7%), Estados Unidos (7%) e China (7%). A Índia, por exemplo, aumentou em mais de 30% a demanda de água nos últimos 15 anos, mas seus rios estão poluídos e grande parte da população carece de acesso à água.
Ninguém vive sem beber água e sem água não haveria comida, nem a energia dos biocombustíveis. Sem água não há segurança alimentar. Segundo a WWF, utilizando a metodologia da pegada hídrica, são necessários 15,5 mil litros de água para produzir um quilo de carne bovina, 2,7 mil litros para fabricar uma camisa de algodão, 2,4 mil litros para um hambúrguer, 2,4 mil litros para 100 gramas de chocolate, 1,5 mil litros para um quilo de açúcar refinado, 140 litros para uma xícara de café e 120 litros para uma taça de vinho. Um litro de etanol produzido a partir de cana-de-açúcar precisa de 18,4 litros de água e 1,52 metros quadrados de terra. Para alimentar os humanos, a agricultura já capta 70% da água doce do globo e para 2050 é previsto um aumento de mais 70% da produção agrícola e 19% de seu consumo mundial de água, para atender a demanda demográfica e econômica.
Reportagem do Le Monde mostra que “A guerra da água” é uma possibilidade cada vez mais próxima e comenta, por exemplo, os conflitos geopolíticos causados pela diminuição dos recursos hídricos em uma região já muito instável como o triângulo Paquistão-Índia-China. Expostos a necessidades crescentes em energia, os Estados situados em torno do Himalaia – sobretudo a China e a Índia que apresentam altas taxas de crescimento econômico – embarcaram em ambiciosos projetos de barragens hidrelétricas, causando tensões inevitáveis com os países situados na direção da foz dos principais rios asiáticos. O derretimento de algumas geleiras himalaias, que aumenta os riscos de inundação a curto prazo, contribuem para agravar os problemas. O exemplo da Ásia pode ser completado com vários exemplos de conflitos “hidropolíticos” na África, pois a bacia do rio Nilo não comporta o crescimento populacional e econômico dos países que dependem de suas águas. O fato é que os recursos hídricos estão ficando cada vez mais escassos para a humanidade e ainda mais escassos para a biodiversidade.
O Brasil, que possui o maior volume de água doce do mundo e uma grande disponibilidade hídrica per capita, sofre de escassez no meio da abundância e vive a sua maior crise de abastecimento d’água da história. A seca deixou de ser um problema do semiárido para atingir o Estado mais rico e populoso da Federação e até mesmo as nascentes do rio São Francisco secaram. A própria produção de energia hidrelétrica – a despeito de todos os seus problemas ecológicos – está ficando comprometida. Com ou sem guerras, o fato é que os recursos hídricos estão ficando cada vez mais escassos para a humanidade e ainda mais escassos para a biodiversidade. Falta, principalmente, garantir o direito da água, dos aquíferos e das bacias hidrográficas.
A água salgada também sobre com as consequências do modelo de produção e consumo da humanidade. Os oceanos do mundo estão se tornando mais ácidos em consequência da poluição dos rios e da absorção de 26% do dióxido de carbono emitido na atmosfera, afetando tanto as cadeias alimentares marinhas quanto a resiliência dos recifes de corais. A continuidade do processo de acidificação dos oceanos deve alterar as cadeias alimentares. Por exemplo, a Grande Barreira de Coral que é considerada a maior estrutura do mundo feita unicamente por organismos vivos, composta por bilhões de minúsculos organismos, conhecidos como pólipos de coral, está ameaçada pelo aquecimento global, a acidificação e os episódios meteorológicos extremos, como ciclones e inundações, que aceleraram a degradação dos corais.
A sobrepesca fez com que 85% de todos os estoques de peixes fossem atualmente classificados como sobre-explorados, esgotados, em recuperação ou totalmente explorados, uma situação substancialmente pior do que há duas décadas. Reportagem da revista britânica The Economist mostra que a maior parte do estoque mundial de peixes está superexplorado ou em estágio de colapso.
perdas líquidas no estoque global de peixes marinhos
Para piorar a situação do solo e das águas doce e salgada, o aumento das emissões de gases de efeito estufa está provocando o aquecimento global e diversas mudanças climáticas, com reflexos negativos em todos os recantos da Terra. A concentração de gases de efeito estufa (GEE) ultrapassou 400 partes por milhão (ppm), o nível mais elevado dos últimos 800 mil anos. Em consequência, a temperatura média na superfície da Terra e dos oceanos aumentou 0,85ºC entre 1880 e 2012. O nível do mar já subiu cerca de 20 cm, desde 1900. Os cenários para as mudanças climáticas no século XXI são dramáticos.
O secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon e o diretor do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas da ONU (IPCC, na sigla em inglês), Rajendra Pachauri, alertaram recentemente que os danos causados por este processo poderão ser irreversíveis, embora ainda haja formas de evitá-los. Eles reafirmam, com base em evidências empíricas, que a influência humana no sistema climático é clara e quanto maiores forem os impactos antrópicos, maiores serão os riscos de consequências graves, amplas e irreversíveis. Nenhuma parte do mundo ficará intocada. O relatório do IPCC de 2014 afirma que a mudança climática já aumentou o risco de ondas de calor severas e outros eventos extremos e também alerta que o pior está por vir, incluindo escassez de alimentos e conflitos sociais violentos. Para o IPCC, o uso de energias renováveis, o aumento da eficiência energética e o estabelecimento de outras medidas destinadas a limitar as emissões custaria muito menos que enfrentar as consequências do aquecimento global. Os custos para mudar a matriz energética são muito mais baixos do que os gastos mundiais com a conta a pagar atualmente para atingir a meta ainda é possível, mas adiar a resposta aumentaria consideravelmente a fatura para as gerações futuras.
aquecimento global, degelo e aumento do nível dos oceanos
O relatório alerta que o mundo tem pouco tempo pela frente para que o aquecimento fique abaixo dos 2º C. Mas para tanto, é preciso haver negociação e cooperação entre os países. Porém, as negociações esbarram, há vários anos, no debate sobre quais países deveriam assumir o custo da redução das emissões de gases do efeito estufa, tanto aquelas procedentes dos combustíveis fósseis (petróleo, gás e carvão), que sustentam e energizam a economia internacional, quanto do gás metano emitido pelos imensos rebanhos da escravidão animal a serviço do apetite humano.
Como consequência, a elevação do nível do mar ameaça a existência de países como Tuvalu e pode alagar áreas densamente povoadas. Dois estudos da NASA, de maio de 2014, mostram que a contração das geleiras na Antártida ocidental se tornou irreversível. A humanidade ultrapassou um patamar crítico. Somente a geleira Pine Island, no oeste da Antártida, é responsável por 20% do total de gelo da parte ocidental do continente e já iniciou um processo irreversível de colapso.
Portanto, a chave para destravar as ações para mitigar o aquecimento global está nas negociações internacionais, na mudança do padrão de desenvolvimento e na mudança de hábito dos consumidores. Mas ai também está o grande obstáculo, pois cada país atua em função de seus interesses próprios e os governantes, em geral, pensam no curto prazo de acordo com os ciclos eleitorais, levando a uma tragédia na busca de solução dos interesses comuns.
Por fim, o regresso ambiental fica claro quando se analisa a perda de biodiversidade e a extinção de inúmeras espécies. Segundo a WWF, no relatório Planeta Vivo 2014, o estado atual da biodiversidade do planeta está pior do que nunca. O Índice do Planeta Vivo (LPI, sigla em Inglês), que mede as tendências de milhares de populações de vertebrados, diminuiu 52% entre 1970 e 2010. Em outras palavras, a quantidade de mamíferos, aves, répteis, anfíbios e peixes em todo o planeta é, em média, a metade do que era 40 anos atrás. Esta redução é muito maior do que a que foi divulgada em relatórios anteriores em função de uma nova metodologia que visa obter uma amostra mais representativa da biodiversidade global.
A Revista Science publicou, em julho de 2014, uma série de estudos em que mostra taxas alarmantes de crimes contra os demais seres vivos. A humanidade é responsável pelo risco de espécies desaparecerem com 1000 vezes mais intensidade do que os processos naturais. A Revista confirma que o ser humano está provocando, em um curto espaço de tempo, a sexta extinção em massa no planeta. Isto acontece em função dos impactos da perda da fauna devido ao empobrecimento da cobertura vegetal, à falta de polinizadores, ao aumento de doenças, à erosão do solo, aos impactos na qualidade da água, etc. Ou seja, os efeitos são sistêmicos e um dos artigos da revista chama este processo de “Defaunação no Antropoceno”, que ocorre devido ao aprofundamento da discriminação contra as espécies não humanas e à generalização do crime do ecocídio.
A escritora Elisabeth Kolbert, no livro “The Sixth Extinction: An Unnatural History” (2014) considera que estamos entrando numa sexta fase de extinções em massa das espécies, mas desta vez não provocado por causas naturais. A catástrofe é causada pelos humanos e seu processo de desenvolvimento. De fato, a destruição dos habitats tem provocado a extinção de algo entre 10 a 30 mil espécies por ano. Centenas de rinocerontes são abatidos covardemente todos os anos para fomentar o comércio apenas do chifre, cujo preço no mercado negro vale mais que o ouro, chegando a 50.000 euros por quilo. Os criminosos cortam os chifres dos animais e vendem como remédio para diversos tipos de doença ou como porções afrodisíacas na China e no Sudeste Asiático.
Milhares de elefantes são mortos cruelmente todos os anos para que alguns poucos humanos possam lucrar com o comércio de marfim e outros tantos humanos possam lucrar com a compra e venda de jóias e objetos de decoração fabricados a partir das presas e do sacrifício de um dos animais mais fantásticos do Planeta. Os Tigres, os Leões, as Onças, os Gorilas e tanto outros animais que vivem na Terra muito antes do homo sapiens estão ameaçados de extinção. Até as abelhas, tão essenciais no processo de polinização, estão sofrendo com a Síndrome do Colapso das Colmeias.
A crise provocada pelo aquecimento global, a perda de biodiversidade e a degradação dos solos e das águas não é apenas uma possibilidade hipotética, mas uma realidade concreta. Mesmo que a economia internacional atinja o Estado Estacionário nas próximas décadas, a degradação dos ecossistemas pode atingir o ponto de não retorno, fazendo com que certas alterações retroalimentam outras, gerando efeitos cumulativos em grande escala, aumentando a cisão entre o bem-estar humano e a aniquilação das condições ambientais. A distância entre o progresso humano e o regresso ecológico tem se tornado catastrófica. Vai ficando cada vez mais difícil a sobrevivência humana enquanto o definhamento e a morte atingem as demais formas de vida no entorno da civilização.
Em livro recente, Bonaiuti (2014) mostra que a economia internacional está ultrapassando os limites em termos de crescimento do consumo de energia, dívida pública, aumento da população, das emissões de gases de efeito de estufa e extinção das espécies. Para o autor, estamos passando por um momento de transição rumo a uma grande crise global devido a interação entre as limitações de natureza biofísica (o esgotamento dos recursos naturais, o aquecimento global, etc.) e a crescente complexidade das estruturas sociais (burocratização excessiva, redução da produtividade da inovação, crescentes custos dos sistemas produtivo, educacional, saúde, etc). Essa crise, não é simplesmente uma parte do processo de expansão e contração cíclica, mas um sintoma de uma crise de ciclo longo, uma mudança civilizacional. As sociedades capitalistas avançadas estão em uma fase de rendimentos decrescentes, o que vai representar o fim do crescimento econômico e o colapso do sistema de acumulação de capital. As economias emergentes vão entrar em estagnação ou ficar presas na armadilha da renda média.
Evidentemente, o colapso não vai acontecer de repente. Tudo indica que teremos períodos de avanços e recuos. Não se sabe até onde a humanidade conseguirá manter sua escalada de riqueza material e até quando ampliará o fosso entre o mundo artificial e o mundo originário. No ritmo atual, cresce a cada dia a possibilidade de ruptura entre o sucesso do Antropoceno e o fracasso da conservação das bases naturais do Planeta. Toda a riqueza humana (incluindo ricos e pobres misturados nas desigualdades sociais) não se sustenta se o meio ambiente for irremediavelmente degradado. Não há como expandir o Antropoceno sem bases ecocêntricas, pois o “capital antrópico” não se reproduz sem o “capital natural”. Seria como construir castelos sobre sucessões de ruínas ambientais. Se o ser humanos mantiver o modelo de terra arrasada e não reduzir as atividades antrópicas, pode cair em um abismo. E como diria o compositor Cartola: “abismo que cavaste aos teus pés”.
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A grande cisão: sucesso humano versus fracasso ecológico, artigo de José Eustáquio Diniz Alves - Instituto Humanitas Unisinos - IHU