A democracia liberal como condição de surgimento do fascismo. Entrevista especial com Rodrigo Karmy Bolton

Sempre à beira de se converter em ditaduras, democracias liberais burguesas operam formalmente, via estado de exceção; devir-Gaza do mundo está em curso, sob a coalização EUA-Israel em uma guerra civil planetária

Foto: Ali Jadallah | Anadolu Agency

Por: Márcia Junges | 12 Mai 2025

Há um nexo inegável e inconveniente, muitas vezes recusado pela fé nas democracias liberais burguesas, que só existem gestadas pelo capitalismo: neofascismo e neoliberalismo se retroalimentam e são irmãos siameses. Não há com o que se espantar, dado que esse modelo de democracia tem seu limite precisamente no problema do capital. “Nesse sentido, o trumpismo é a intensificação de uma antropologia que coincide inteiramente com a economia, ou, se preferir, de um homem que nada mais é do que uma forma do capital. Assim, o fascismo em formação é uma deriva autoritária do capitalismo que tem como núcleo antropológico esse ciborgue que é o ‘capital humano’”, argumenta o filósofo chileno Rodrigo Karmy Bolton em entrevista concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU. Quando o capital é ameaçado, “então essa democracia não tem nenhum problema em transformar suas formas em dispositivos autoritários nos quais prevalecem o estado de exceção e outros dispositivos associados.

O paradoxo da democracia liberal é justamente a contradição inerente à ordem do capital, entendendo esta última não como um simples sistema econômico, mas como um regime de dominação, como argumenta hoje Nancy Fraser em Capitalismo Canibal (Autonomia Literária, 2024).” Outro autor que expõe os limites das democracias burguesas é Agamben, que demonstra como o estado de exceção é convenientemente evocado e faz com que a ditadura esteja sempre à espreita, pronta para se legitimar sem a necessidade de golpes e tanques. Karmy afirma que “a democracia liberal não pode mais ser pensada como um dispositivo capaz de imunizar a sociedade contra o fascismo, mas o contrário: é justamente a sua condição. A maioria das propostas fascistas hoje chega ao governo pelas vias democráticas. Portanto, em vez de ficarmos espantados com o triunfo fascista, deveríamos nos espantar com o espanto que gera no progressismo”.

Não por acaso, a maior democracia burguesa liberal do mundo não se furta de andar de mãos dadas com o genocídio palestino, perpetrado por Israel. “Na verdade, o que o trumpismo ensina é que nas novas ditaduras não defendem as corporações financeiras, mas são as próprias corporações, por meio de seus respectivos CEOs, que passam a governar diretamente os Estados. Trata-se de uma ditadura direta do capital, sem as mediações liberais, como dizíamos em relação à Palestina. Portanto, nada disso poderia ter sido implementado sem o genocídio em curso, sem a intensificação daquela nakba que hoje assume uma forma planetarizada”, observa Karmy. E acrescenta: “Israel foi e tem sido perdoado porque não atentou contra a população europeia, mas contra o povo palestino.” Para o pesquisador, Netanyahu, Trump e Putin são os nomes de uma guerra civil na qual “qualquer território pode ser transformado, a qualquer momento, por qualquer justificativa, em Gaza. Nosso presente nos diz: tudo é (potencialmente) Gaza.” A sionização do domínio planetário e a palestinização das multidões não é uma hipótese, mas a realidade em curso, uma guerra civil total que ocorre com a anuência das grandes potências. “Israel se tornou o próprio modelo do fascismo do século XXI.”

Rodrigo Karmy Bolton em palestra no IHU (Foto: João Flores da Cunha - IHU )

Rodrigo Karmy Bolton é doutor em Filosofia pela Universidade do Chile, onde leciona e é pesquisador do Centro de Estudos Árabes da Faculdade de Filosofia e Humanidades. Escreveu, entre outros livros, Averroes intempestivo (org.) (Doble a, 2022), Intifada: una topología de la imaginación popular (Metales Pesados, 2020), El porvenir se hereda: fragmentos de un Chile sublevado (Sangría, 2019) e Escritos bárbaros: ensayos sobre razón imperial y mundo árabe contemporaneo (LOM Ediciones, 2016). Recentemente, publicou El fantasma portaliano: arte de gobierno y república de los cuerpos (Ufro, 2022) e Palestina sitiada. Ensayos sobre el devenir nakba del mundo (LOM Ediciones, 2024).

Eis a entrevista.

IHU - Como analisa o recrudescimento do neofascismo através do aprofundamento do neoliberalismo? Quais são os nexos possíveis na conjuntura em que vivemos?

Rodrigo Karmy Bolton - Parece-me que não conseguimos entender nada hoje se não olharmos para a Palestina. A Palestina é o catalisador das transformações em curso e, portanto, do meu ponto de vista, a grade de inteligibilidade através da qual podemos contemplar o presente. Por que a Palestina funciona como um catalisador? Porque é na Palestina que a ordem liberal encontra seus limites, onde o direito internacional é violado, a moralidade é destruída e o povo palestino é despojado de seu mundo. Nenhuma dessas transformações capitalistas poderia ter ocorrido sem a Palestina. Portanto: foi a Palestina que mostrou o fracasso de Israel como projeto ético e político; é a Palestina que exibe a hipocrisia do direito internacional; é a Palestina que expõe o colapso da ordem liberal. Por isso, sem o genocídio da Palestina, o neofascismo não pode ser sustentado; sem o massacre permanente da colonização sionista, a nova fase do capitalismo global não pode se desenrolar, na qual o capitalismo se separa do polo liberal para se situar no polo fascista, e onde Israel se tornou o próprio modelo do fascismo do século XXI.

Como o reverso da Alemanha nazista, Israel – precisamente porque foi apenas um “espelho reverso” daquela Alemanha – só podia reproduzir as formas do nazismo agora sob o disfarce do sionismo. E isso não se deve a Netanyahu. Este último é, na verdade, o efeito de anos de nakba (1). Nesse sentido, se a Palestina é o catalisador do processo em curso, é justamente porque todas as mediações erigidas no final da Segunda Guerra Mundial foram ignoradas desde o princípio. Num ir e vir, poderíamos recordar a tese de Aimé Césaire (2) em “Discurso sobre o Colonialismo”, quando ele apontava que o nazismo era simplesmente a aplicação das técnicas coloniais ao espaço europeu e que, portanto, a política de extermínio de Hitler se tornava imperdoável para os europeus.

Poderíamos dizer que a questão palestina é exatamente o contrário: o que os europeus aplicaram aos europeus durante o nazismo (o colonialismo) foi externalizado desde 1948 para a Palestina, onde os colonos europeus (sionistas) aplicam o que o nazismo fez aos outrora europeus, assim como os nazistas aplicaram o que os europeus aplicaram aos povos do “Terceiro Mundo”. Por isso, uma vez terminada a Segunda Guerra Mundial, tudo pareceu voltar à “normalidade”: a catástrofe voltava a se desenrolar, supostamente, fora da Europa. E assim, Israel parecia um projeto completamente moral que, como tal, poderia invisibilizar o real do qual dependia: a nakba.

Neoliberalismo: máquina de duas faces

Israel foi e tem sido perdoado porque não atentou contra a população europeia, mas contra o povo palestino. Hoje, quando já não existe nenhuma possibilidade de distinguir claramente o Primeiro Mundo do Terceiro, a área metropolitana das zonas periféricas, ocorreu uma dupla introjeção que articulou a mesma máquina sobre a qual opera o capitalismo contemporâneo: introjeção das velhas técnicas coloniais voltadas à compartimentação das populações colonizadas na forma territorializante do fascismo e introjeção do velho liberalismo metropolitano de caráter desterritorializante. É essa duplicidade que deu origem à governamentalidade neoliberal, à sua máquina que tem Israel como paradigma, justamente porque Israel condensa essa dupla introjeção liberal e colonial, ao mesmo tempo desterritorializante e territorializante, cosmopolita e fascista.

Digamos, por assim dizer, que estamos testemunhando uma mudança do polo desterritorializante que caracterizou as primeiras décadas do neoliberalismo para o polo territorializante, onde o neoliberalismo abandona a sua forma democrática e assume vários modos fascistas. Essa mudança define o fascismo como uma paixão pela Terra, onde o termo “terra”, evidentemente, é identificado com soberania e território. Isso, por sua vez, significa que o fascismo não sabe nada sobre a Terra, apenas sobre o território. E, por sua vez, isso significa que, até agora, a experiência dos Estados-nação nos distanciou significativamente da possibilidade de vivenciar a Terra, substituindo-a pelo fato de viver em um território. Neste contexto, a mesma política anexionista que Israel implementa na Palestina é a mesma que o devir fascista do neoliberalismo desencadeia hoje no trumpismo quando busca anexar a Groenlândia, o México ou o Canadá.

As duas faces do neoliberalismo

Um alerta para os progressistas: o neoliberalismo deve ser entendido como uma máquina de duas faces que, em sua própria governamentalidade, articulou o liberalismo clássico com o fascismo histórico, ou seja, a desterritorialização do capital financeiro com a territorialização das formas de acumulação, simultaneamente um polo econômico-gerencial e um polo jurídico-político. Hoje, como a estrutura pós-Segunda Guerra Mundial encontrou seus limites para a luta do capital na Palestina, este pode superá-la e assim redistribuir a cartografia da terra.

Justamente por ser uma paixão pela terra, este movimento não poderia deixar de ser articulado a partir de um conjunto de momentos fascistas que se territorializam e se enredam constitutivamente dentro e a partir da própria máquina neoliberal. Momento fascista que opera como o reverso do fascismo histórico: se este último subverteu a Terra através do nacional-socialismo, colocando os judeus como objeto de aniquilação, o atual o faz através do sionismo, que centra seu objeto de aniquilação nos palestinos. O mesmo antissemitismo perpetrado pela mesma máquina civilizatória em dois períodos heterogêneos. Portanto, não saímos da ordem liberal do pós-Segunda Guerra Mundial, mas vivemos em seu lado negativo, onde a única paixão possível parece ser a perigosa paixão pela terra e sua política anex-sionista.

IHU - Com a chegada de Trump ao poder, consolida-se o império dos tecnocratas que compõem com ele o governo norte-americano. Nesse cenário, parece que as figuras do homo oeconomicus, de Foucault (3), e o animal laborans, de Arendt (4), são cada vez mais atuais e corroboram o esvaziamento da política. Qual é a sua análise?

Rodrigo Karmy Bolton - Penso que o império tecnocrático já estava totalmente operacional durante o governo Biden e para trás. Devemos parar de pensar que Trump inaugurou tudo e focar no processo pelo qual o progressismo consegue estabelecer as condições materiais para o trumpismo.

Nesse sentido, para mim, Trump é simplesmente um “liberal” que coloca em prática as medidas para aprofundar seu domínio sobre a Terra. Daí os híbridos que aparecem (o anarcocapitalismo, o nacional-fascismo ou o nacional-libertarianismo, entre outras figuras) e as tensões que atravessam o MAGA (make America great again) e que eu definiria como “céu e terra”, exceção e regra, faticidade e direito, mas também, e sobretudo, o MAGA articula uma estrutura precisa de tempo histórico na qual tenta harmonizar passado e futuro, o cidadão rural estadunidense e a futurologia de Elon Musk. O MAGA é o dispositivo mítico que olha para o passado, mas se entrelaça com o futurismo de Musk. Nesse sentido, Musk é o [Filippo Tommaso] Marinetti de Trump.

Nessa perspectiva, a mutação antropológica que sobreveio (para usar o vocabulário de Pasolini) é aquela que o neoliberalismo já havia definido: o capital humano. O que é capital humano? É a antropologização total do capital e, por sua vez, a capitalização total do homem. Sempre disse que, para mim, Frederich Hayek (5) deveria ser entendido como o Hegel (6) do século XXI porque, da mesma forma que Hegel identificou o Espírito com a História Humana, Hayek identificou a História Humana com o Capital. Nesse sentido, o trumpismo é a intensificação de uma antropologia que coincide inteiramente com a economia, ou, se preferir, de um homem que nada mais é do que uma forma do capital. Assim, o fascismo em formação é uma deriva autoritária do capitalismo que tem como núcleo antropológico esse ciborgue que é o “capital humano”.

IHU - Acredita que o fascismo passará por uma reatualização e aprofundamento com a aliança que se consolida entre Trump e Putin, bem como Netanyahu? Por quê?

Rodrigo Karmy Bolton - Com sua pergunta, penso em Freud (7) quando caracterizou a evolução das forças que constituem a subjetividade moderna, personificando-as na forma do “complexo de Édipo”, que a vulgata psicanalítica reproduziu como uma caricatura. Parece-me que não se trata de “pessoas”, mas de “processos” de grande densidade histórico-filosófica. O que é o Netanyahu senão o perfeito continuador das políticas coloniais implementadas pela esquerda sionista nos primeiros anos de Israel e seus kibutz “românticos”, que seduziram tolamente a esquerda ocidental? A nakba é um processo, não uma pessoa, embora Netanyahu seja o responsável por ela hoje. O mesmo deve ser dito sobre Trump e Putin, ou seja, são nomes que expressam uma mutação epocal cuja força é interna à própria implantação do neoliberalismo global; mutação que consiste na mudança do capitalismo liberal para sua forma autoritária ou, se preferir, para a exposição apocalíptica do capitalismo, sua exibição nua, com sua violência sacrificial à luz do dia, sem qualquer encobrimento ou mediação. É uma transição violenta – ou melhor, um salto – do capitalismo dominado pelos Estados Unidos para um capitalismo desprovido de hegemonia, o que, claro, não seria outra coisa senão uma guerra civil planetária. Netanyahu, Trump e Putin são os nomes desta guerra civil onde qualquer território pode ser transformado, a qualquer momento, por qualquer justificativa, em Gaza. Nosso presente nos diz: tudo é (potencialmente) Gaza.

Isto significa que não há mediações institucionais porque a ordem liberal está exibindo seu próprio reverso tanático. Assim, esta “aliança”, de fato, é a força que sustenta o processo de guerra civil em curso, onde o capitalismo é exposto em sua arquitetura verdadeiramente mítica e onde o que está em jogo é uma nova distribuição da terra. O que une Netanyahu, Trump e Putin é justamente a paixão compartilhada pela terra, seja ela expressa no retorno da indústria estadunidense ao seu território (Trump), na colonização total do território palestino (Netanyahu) ou no nacionalismo inspirado por Ivan Ilyin (Putin). E, na medida em que esse processo implica um distanciamento do velho liberalismo com o qual se identificaram as oligarquias financeiras, o que emerge é sua forma neofascista.

IHU - Aliados históricos de Israel, os EUA são os maiores apoiadores do armamentismo que alimenta a guerra e a limpeza étnica genocida contra os palestinos. Como compreende a posição israelense e o apoio norte-americano nesse contexto?

Rodrigo Karmy Bolton - A posição israelense é clara: desde 1948, sua aposta tem sido a de colonizar completamente o território palestino através de uma forma chamada de colonialismo de povoamento, cujo objetivo não é a integração da população nativa às garras da civilização (como era o caso do Império Hispânico, por exemplo), mas sua expulsão, desintegração e aniquilação. Israel está simplesmente aplicando o tipo de colonialismo que foi implementado nos Estados Unidos desde o século XVII pelos colonos ingleses e depois no Cone Sul com suas populações indígenas (Chile, Argentina, Uruguai).

A solidariedade secreta entre os EUA e Israel, nesse sentido, passa por três níveis: ambos são sociedades de colonos cujos Estados aplicaram as mesmas técnicas de colonialismo de povoamento; em segundo lugar, ambos operam com base numa missão histórico-salvífica: o “destino manifesto” dos Estados Unidos e a noção de “povo eleito” de Israel (uma noção que se transformou numa forma de teologia política colonial com o sionismo no século XX); em terceiro lugar, o famoso lobby sionista nos EUA, que demonstra algo que enfatizo fortemente no meu último livro, Palestina sitiada. Ensayos sobre el devenir nakba del mundo: Israel não é um “aliado” dos EUA no sentido de que os Estados podem estabelecer relações diplomáticas ou econômicas, mas no sentido de que é seu “ideal de eu”.

Nenhum outro Estado “aliado” dos EUA tem o grau de poder sobre a política estadunidense como Israel. Explico-me: em um discurso que Joe Biden fez em Tel Aviv em 1986, disse: “Se Israel não existisse, os EUA teriam que inventá-lo”. Esta afirmação deve ser inserida em uma genealogia na qual encontramos o sionismo cristão como pivô do antigo imperialismo britânico que emergiu do mundo evangélico da Grã-Bretanha desde o século XVIII e que, ao ser politizado durante o século XIX com base na geopolítica britânica, articulou a ideia de que o “povo judeu” deveria retornar à Palestina porque, uma vez que isso acontecesse, os judeus acabariam se convertendo ao cristianismo e Cristo reinaria sobre a Terra. Por que esse “filosemitismo”? Basicamente porque era a maneira pela qual o evangelicalismo britânico podia acessar o que considerava a revelação original (judaica) e se colocar imaginativamente em uma relação de identificação com o Pai. Mas, justamente porque essa relação passa pela mediação cristã, ela tinha que implicar um forçamento (passar do cristianismo para o judaísmo) para experimentar essa revelação original oferecida na língua hebraica. Esse forçamento constitui o pivô da teologia política sionista, possibilitando um imaginário imperial para a Grã-Bretanha primeiro e depois, com sua “judaização” no final do século XIX, um imaginário territorialista e nacional para o que será Israel em 1948.

Israel, “ideal de eu”

O “filosemitismo” britânico do sionismo cristão, evidentemente, é um antissemitismo invertido, na medida em que implica a vitória de Cristo na terra em virtude da suposta “conversão” que ocorrerá quando os judeus “retornarem” à sua suposta terra. Como demonstrou o historiador Donald M. Lewis, esta teologia política baseada num “filo (anti) semitismo” permitiu à Grã-Bretanha mostrar a sua vantagem sobre o catolicismo do imperialismo hispano e o secularismo do imperialismo francês, por outro lado. A teologia política sionista nada mais é do que uma geopolítica voltada para a apropriação colonial da Palestina.

O sionismo cristão foi precisamente o pilar ideológico do imperialismo britânico que finalmente conquistou a Palestina em 1917 e entregou seu domínio ao nascente Estado de Israel em 1948. Por conta disso, Israel não é um “aliado”, mas a ideia imperial do Ocidente, se preferir, seu “ideal de eu”, o núcleo teológico de sua política. Portanto, a afirmação de Biden é inteiramente verdadeira e abre uma genealogia que vai muito além das habituais análises “geopolíticas”. Por essa razão, devemos ficar atentos ao que diz Ilan Pappé (8), o maravilhoso historiador israelense: desde 7 de outubro de 2023, Israel vive um “colapso” – esta é a sua tese. Ao que complemento com o efeito dominó: se Israel – seu caráter de “ideia” que nucleia a ideologia do imperialismo atlântico – cair, esse mesmo imperialismo (Europa e EUA) cai com ele. E, eu diria, o que está em jogo hoje é o esgotamento do discurso imperial “atlantista” – seu recuo –, cuja forma primária se expressa no colapso israelense com Netanyahu no comando e no imbricado colapso estadunidense com Trump no governo. E a pergunta que deve ser feita é precisamente se, neste momento crítico, os Estados Unidos têm, ou não, o poder performativo de “inventar Israel” – isto é, de se reinventar a si mesmos.

IHU - Segundo a filosofia política de Giorgio Agamben (9), as democracias liberais foram concebidas para operarem dentro do paradigma da soberania, mas também no paradigma da governamentalidade. Por isso, a qualquer momento o estado de exceção pode ser legitimamente convocado e estabelecer a exceção como regra, dando origem a derivas autoritárias que são sombras permanentes nesse sistema político. Como entender esse paradoxo que sustenta as democracias?

Rodrigo Karmy Bolton - A tese de Agamben inscreve-se na longa tradição crítica na filosofia e nas ciências sociais que é mais crucial do que nunca resgatar hoje. Acima de tudo, considerando que a democracia burguesa tem um limite, que é justamente o problema do capital. Quando este é ameaçado, então essa democracia não tem nenhum problema em transformar suas formas em dispositivos autoritários nos quais prevalecem o estado de exceção e outros dispositivos associados. O paradoxo da democracia liberal é justamente a contradição inerente à ordem do capital, entendendo esta última não como um simples sistema econômico, mas como um regime de dominação, como argumenta hoje Nancy Fraser (10), por exemplo, em Capitalismo Canibal (Autonomia Literária, 2024). Agamben compreende bem os limites da democracia burguesa à luz do dispositivo do estado de exceção e entende bem como esse regime de dominação se articula na forma de uma máquina constituída por dois polos antitéticos, mas estruturalmente unidos. Isto significa que, para Agamben, a democracia está sempre à beira de se tornar ditadura e, por sua vez, que esta última pode sempre ser “normalizada” na forma democrática. Este último ponto ficou claramente evidente no caso chileno desde 1990 e a maneira como Pinochet foi progressivamente desmaterializado na forma abstrata do dispositivo constitucional que a ditadura instaurou e a democracia levou à consumação.

Ditadura sob casca democrática

A contribuição de Agamben — que, insisto, é uma reflexão que se situa numa constelação crítica — permite-nos desafiar a ingenuidade liberal, segundo a qual a questão fascista é abordada como uma questão anômala em relação à democracia, externa se quisermos, que surge em virtude de uma dupla de loucos que toma o poder. Ir na contramão da tese liberal significa mostrar que a democracia carrega consigo o elemento mortuário que, a qualquer momento, retorna às suas formas mais cruas. Hoje, de fato, os Estados Unidos, a Argentina, El Salvador e muitos outros países se tornaram verdadeiras ditaduras civis.

As ditaduras militares costumavam ser comuns, mas hoje não são mais necessárias, entre outras razões porque a governamentalidade da segurança ultrapassou a eficácia do dispositivo soberano-militar, subsumindo-o completamente a si mesmo. Basta um conjunto de lawfares e a realização de eleições como rituais vazios, e o direito se torna um dispositivo cada vez mais hipertrófico, transformando a democracia em uma casca que atua como uma ditadura a ponto de, ao mesmo tempo em que reverte direitos civis, políticos e culturais, fortalecer enormemente a polícia e a milícia.

Na verdade, o que o trumpismo ensina é que nas novas ditaduras não defendem as corporações financeiras, mas são as próprias corporações, por meio de seus respectivos CEOs, que passam a governar diretamente os Estados. Trata-se de uma ditadura direta do capital, sem as mediações liberais, como dizíamos em relação à Palestina. Portanto, nada disso poderia ter sido implementado sem o genocídio em curso, sem a intensificação daquela nakba que hoje assume uma forma planetarizada. A fórmula que proponho no meu último livro, “Palestina sitiada”, é precisamente esta: estamos assistindo ao devir nakba do mundo. Neste registro, a máquina Estado-Capital se articula sob a nova guinada autoritária pela qual a ditadura do capital é exacerbada. Uma ditadura que, como dissemos, sempre esteve sob mediação liberal, mas que hoje, na palestinização do mundo, está exposta, como expressa Trump quando diz que os diversos governantes “querem lhe beijar o cu”. Ou seja, Trump mostra o cu para todo o planeta beijar como uma forma de submissão: o poder desnudado, o soberano expondo o mistério da máquina que nada mais é do que o seu cu, ou seja, um vazio em torno do qual a máquina capitalista não para de girar.

IHU - Em termos mundiais, a extrema direita se fortalece com o crescimento de sua representatividade na Argentina, Alemanha e no segundo mandato de Trump e seus desdobramentos sinistros, entre outros vários países que poderiam servir de exemplo. Qual é sua leitura sobre esse cenário, oriundo de resultados eleitorais?

Rodrigo Karmy Bolton - Como argumentei em perguntas anteriores, parece-me que o fascismo surge do deslocamento para dentro da própria máquina mitológica capitalista: do seu polo liberal e desterritorializante para o seu polo fascista territorializante. Insisto: a democracia liberal não pode mais ser pensada como um dispositivo capaz de imunizar a sociedade contra o fascismo, mas o contrário: é justamente a sua condição. A maioria das propostas fascistas hoje chega ao governo pelas vias democráticas. Portanto, em vez de ficarmos espantados com o triunfo fascista, deveríamos nos espantar com o espanto que gera no progressismo. A fé na democracia liberal é o ponto fraco do progressismo diante do fascismo, que, como vimos, nada mais é do que a sua imagem no espelho, o polo que sempre espreita, toda vez que a própria democracia se vê ameaçada.

A dicotomia democracia-ditadura é uma dicotomia liberal que o pensamento crítico deve questionar no sentido de que não é uma dicotomia como uma bipolaridade, no sentido que Agamben a entende. Com outras palavras, ditadura-democracia ou, se preferir, fascismo-progressismo não são termos antitéticos, como faces de uma mesma máquina capitalista que, em qualquer momento e para qualquer circunstância que a justifique, poderão perfeitamente se encontrar. Este é o caso de Von Mises (11) e outros chamados “liberais” que, na época, não tinham escrúpulos em apoiar Hitler.

IHU - Como percebe a inserção de magnatas da Tecnologia da Informação junto ao governo Trump? O que isso diz sobre a democracia liberal e sobre o capitalismo de vigilância?

Rodrigo Karmy Bolton - Essa pergunta é fundamental. Justamente se hoje entramos no ciclo da ditadura civil, é precisamente porque tais formas, como está acontecendo nos Estados Unidos com relação à perseguição de estudantes e professores nas universidades, mas também com a expulsão da população “migrante”, operam de forma eficaz e totalitária por meio do dispositivo cibernético que proporciona uma velocidade sem precedentes e um controle total. Digo “controle” no sentido de um dispositivo que não é mais o da soberania hobbesiana (12) sustentada a partir do “contrato”, mas da gestão centrífuga de corpos e almas que, diferentemente do Leviatã e como Cavalletti (13) demonstrou, a “segurança” se revela um paradigma baseado na instabilidade da díade segurança-insegurança, segundo a qual toda segurança produz graus cada vez maiores de insegurança, pois esta não é um “exterior” à segurança, mas seu exterior interno, motor da máquina biopolítica que lhe dá consistência.

Caso contrário, se a segurança fosse apenas uma questão técnica, seus problemas já teriam sido resolvidos. Mas justamente por ser um tema mítico cuja forma última nada mais é do que uma vida “biológica” que defende sua conservação e valorização, ela acaba se revelando um paradigma biopolítico que, atualmente, não tem feito nada mais do que operar a partir de uma implantação cibernética. Acredito que os casos de Julian Assange, por um lado, e Edward Snowden, por outro, são formas de conscientizar sobre o mundo em que vivemos. Por quê? Basicamente porque ambos os casos ressaltam que a espionagem não é mais serializada como acontecia historicamente, mas massiva graças, justamente, ao dispositivo cibernético. Um perfil no Facebook, Twitter ou qualquer outro lugar pode abrir um enorme fluxo de informações sobre alguém ou um grupo específico.

EUA, uma ditadura civil

Há muitos anos, entrar em Israel significa, para muitas pessoas, a exclusão das suas redes sociais. Hoje, essa prática se estende aos Estados Unidos. Além disso, diversas plataformas criam listas proibidas de supostos “simpatizantes” do Hamas ou, como diz o discurso sionista, de supostos “antissemitas” que devem ser expulsos das universidades até serem finalmente deportados. Os Estados Unidos hoje são uma ditadura civil. Nem é preciso dizer que o extermínio em Gaza foi realizado com a ajuda da Inteligência Artificial, e o horrível ataque israelense no Líbano envolveu a intervenção dos dispositivos de informação (bipes, celulares, etc.) que, na hora decidida, simplesmente explodiram em massa. A cibernética, enquanto dispositivo de governo, agora coincide completamente com a guerra. A outrora “hipótese cibernética” elaborada pelo Tiqqun continua absolutamente atual.

IHU - O rearmamento da Europa coloca o mundo sob alerta, mais uma vez. Estamos à beira de uma guerra total ou se trata de uma reconfiguração do dispositivo da guerra para seguir financiando a indústria armamentista?

Rodrigo Karmy Bolton - É claro que se trata de uma guerra total, ou, mais precisamente, dado que são as populações que estão sendo “palestinizadas” e, portanto, são os principais alvos da guerra, trata-se de uma guerra civil planetária onde, precisamente, a distinção entre o privado e o público, o interior e o exterior, fica completamente turva. Na minha leitura, esta guerra civil define o devir nakba do mundo, se preferir, a sionização do domínio planetário e a palestinização das multidões.

IHU - Franco Bifo Berardi é extremamente pessimista quanto ao cenário geopolítico global, bem como à situação da esquerda e sua responsabilidade frente a esse quadro. Qual é a sua análise sobre os limites e possibilidades de organização e reação do campo progressista para conter a ascensão do neofascismo sob diferentes configurações?

Rodrigo Karmy Bolton - Eu diria várias coisas sobre o Bifo. A primeira coisa é que ele está certo sobre a esquerda, e concordo com ele quando diz que a esquerda que se tornou progressismo neoliberal sob a liderança de Anthony Giddens (14) hoje está morta e se mostrou desastrosa, pois só serviu para aumentar o domínio do capitalismo neoliberal no mundo. Sem esse progressismo, a precarização das massas proletárias, que nunca encontraram nela um lugar político, não teria ocorrido, pois o progressismo beneficiava apenas as classes médias profissionais. Na minha leitura, Joe Biden é o fim do progressismo porque ele expressa a total desorientação política da época: a demência de Biden foi a demência do progressismo.

Em segundo lugar, acho difícil considerar qualquer pensador como “pessimista” ou “otimista”. Um pensamento decisivo, capaz de abarcar o presente, não pode ser nem uma coisa nem outra, porque ambos os estados de espírito implicam uma cegueira frente ao real, uma ilusão que se estilhaça sob a forma de uma fatalidade irredutível: ou seremos necessariamente derrotados ou necessariamente triunfaremos. Não vejo nenhuma dessas teleologias em Bifo. Em vez disso, diria que Bifo e outros pensadores estão tentando oferecer um panorama o mais realista possível que, precisamente, permita a organização, mas que não caia na ingenuidade de simplesmente replicar a máquina fascista reinante.

Em terceiro lugar, se há uma coisa que Bifo não vê, é uma questão bastante específica, mas decisiva: o Hamas e a resistência palestina não podem ser colocados em pé de igualdade com o fundamentalismo sionista predominante em Netanyahu. Há um abismo entre opressor e oprimido, e embora seja verdade que muitas vezes os jogos miméticos operam, neste caso particular, não só a resistência palestina é muito mais antiga que o Hamas (e, portanto, o Hamas é apenas um modo dessa resistência), mas o próprio Hamas, em sua declaração de 2017, propõe uma concepção de Estado que é completamente diferente da proposta sionista: enquanto esta última se refere à expulsão total dos palestinos e ao estabelecimento de um Estado com uma concepção estreita de “nação” baseada no marcador étnico “judeu”, o Hamas, ecoando a tradição da antiga Organização para a Libertação da Palestina - OLP, propõe uma solução “moderada” que envolve o retorno às fronteiras pré-1967 e nas quais o Estado palestino seja muçulmano, mas permita a coexistência de comunidades cristãs, judaicas e muçulmanas, como ocorre na região há milênios.

Na minha opinião — diferentemente da análise restrita de Bifo sobre esse ponto —, o problema do Hamas não está em seu discurso “islamista” (nesse sentido, Bifo é seduzido pelo orientalismo ocidental), mas em expressar uma burguesia palestina precarizada pela colonização sionista e, ao mesmo tempo, incapaz de se integrar ao aparato da classe dominante representada pela Autoridade Nacional Palestina.

Com outras palavras, o limite do Hamas não é o “islã” como a matriz “moderna” de sua política. Porque essa matriz continua sendo mítica, como Walter Benjamin (15) nos mostrou. Talvez seja o islamismo que pode oferecer um antídoto para essa dimensão mítica – na maioria das vezes ocorreu que o próprio islamismo se tornou parasitário do futuro mítico do moderno. Em termos históricos, a OLP também foi acusada de ser “terrorista” na década de 1970. Porque o que Bifo, me parece, não entende é que qualquer forma de resistência que questione radicalmente Israel será rotulada como tal. E ao longo da história, toda resistência palestina sempre (desde a época do protetorado britânico) foi descrita como terrorista. Deslegitimada e invisibilizada.

Para mim, a ficção que Bifo introduz é a equivalência. Embora isso possa existir, não é algo necessário. Por isso, Bifo não pode aceitar que o Hamas possa ser uma força de resistência palestina legítima (foram os próprios palestinos que o elegeram nas eleições democráticas de 2006) e o fato de que não pode haver nenhuma equivalência entre opressor e oprimido. Há um abismo entre os dois; a lógica do oprimido é completamente diferente daquela do opressor, mas a mimese pode, em última análise, triunfar, e então a resistência termina (foi o que aconteceu com o Fatah na Cisjordânia, que acabou bem estabelecido na burocracia da Autoridade Nacional depois de Oslo). Por isso, a resistência sempre corre o risco de se mimetizar contra aquilo que deveria combater. A resistência palestina não é exceção a isso.

Democracia liberal como reverso do fascismo

Para ser mais preciso em relação à sua pergunta, eu diria que o erro do chamado “campo progressista” é pensar que, a partir da afirmação da democracia liberal e da formação de uma frente única contra o fascismo, este último poderia sofrer uma derrota. Em “Fascismos/Antifascismos” Gilles Dauvé já havia chamado a atenção para isso e, de certa forma, o pensamento crítico não se cansa de dizer exatamente isso: a democracia liberal não é contrária ao fascismo, mas seu reverso, na medida em que ambos se copertencem numa e mesma máquina do capital. Nesse sentido, é preciso enxergar o círculo mítico que se forma: curiosamente, quanto maior a “defesa da democracia”, maior a defesa do sistema que potencializa o fascismo.

Considere o caso de Trump hoje: aqueles que simplesmente se opõem ao seu mandato, por exemplo, criticando as políticas tarifárias e glorificando todo o globalismo neoliberal anterior por uma suposta “prosperidade” ou “progresso” que existia antes do pesadelo trumpista, estão na verdade glorificando o sistema que colocou Trump no poder, santificando uma ordem que termina não como o progressismo gostaria (com prosperidade e progresso para todos), mas com fascismo, na medida em que essa ordem não fez nada além de incentivar a acumulação infinita das grandes oligarquias militares e financeiras globais. Portanto, é preciso prestar atenção ao círculo mítico que se articula aqui, um círculo que não é outro senão o da máquina mitológica capitalista, que, isso sim, talvez Bifo tenha razão, só pode ser desativada por meio de uma espécie de deserção organizada. “Deserção” que deveríamos pensar como um termo pertencente ao léxico político do futuro, porque ainda não sabemos o que pode significar.

“Deserção” provavelmente seja um termo que faz parte da constelação minoritária do pensamento contemporâneo que acompanha outros termos interessantes como “poder destituinte” (Agamben) ou inclusive “revolução”, na medida em que, com o desaparecimento deste último do léxico político, não sabermos muito bem o que designa, apesar de uma certa esquerda não parar de repeti-lo. São todos termos enigmáticos que, no entanto, carregam a assinatura do futuro – sua potência acontecimental – na medida em que não nos oferecem nada para fazer ou dizer, mas nos permitem imaginar nossas formas comuns de resistência, nossos múltiplos comunismos do sensível.

IHU - Como analisa a situação política chilena face a essa onda autoritária mundial?

Rodrigo Karmy Bolton - Ao contrário do que se poderia ler de fora do país, diria que esses quatro anos de governo progressista foram quatro anos de restauração oligárquica, cujo processo ainda não terminou. Uma restauração cujo momento inaugural foi a disseminação do pânico desencadeado pela revolta e pela pandemia, contra o que o Estado operou simultaneamente sob o dispositivo jurídico-político do “estado de exceção” e o dispositivo biomédico do “distanciamento social”. Ambos os dispositivos foram justapostos, oferecendo não um refúgio contra o pânico, mas uma produção de pânico que só resultou na multidão se aferrando às suas posições sociais estabelecidas. O que justifica a vitória da “reprovação” (“Rechazo”) no plebiscito constitucional de 2022, que oferecia uma nova Constituição para o país. E, também, a vitória do movimento “contra” (“En contra”) no segundo plebiscito constitucional em 2023. A multidão se agarrou à sua posição social, diante do pânico que se seguiu ao erotismo original da revolta.

Isso deixou o país numa situação muito complicada: em primeiro lugar, com uma ordem econômico-política assentada no antigo pacto oligárquico de 1980 estabelecido por Pinochet, mas que continuou vigente mas sem sentido (para usar a expressão de Scholem), ou seja, uma Constituição que opera sob sua forma hipertrófica, isenta de hegemonia; em segundo lugar, uma classe política que se imunizou contra qualquer processo constituinte, fechando o referido processo independente que não chegou a modificar a Constituição e independente de que nenhum dos dois plebiscitos implicava a aceitação da Constituição de 1980, que esta última continua fragilizada, com baixos níveis de legitimidade e que, naturalmente, se na classe política o processo constitucional foi fechado, na sociedade – em virtude dos problemas que aí se aprofundam (a violência institucional na forma de “abusos” em todas as suas formas) – permanece aberto.

Fascistização da direita chilena

A sociedade não consegue canalizar politicamente a questão constitucional porque o sistema político (não apenas sua classe política) bloqueou completamente o processo de cima para baixo. Eu leria o fenômeno da nova fascistização da direita chilena a partir desta perspectiva: o discurso fascista é provavelmente o único que conseguiu “politizar” o processo constituinte pendente da sociedade. Mas, seu jogo é oferecer a ilusão de abri-lo quando aprofunda seu fechamento completo, evidentemente. Justamente, com o encerramento do processo constituinte, tudo funciona como uma panela de pressão que, não que vá explodir algum dia, mas que explode todos os dias, diante de uma classe política intelectualmente privada de qualquer leitura política ou incapaz de oferecer qualquer saída para o descalabro.

Entretanto, por que essa classe política ofereceria uma saída se com esse fechamento ela garante seu domínio? Por isso, minha interpretação é que é muito provável que a direita vença as próximas eleições presidenciais, porque se ela já ganhou alguma coisa, é a “segurança” como paradigma. Estar na oposição significa que ela não é responsável perante o governo e não é um alvo fácil para descarregar a enorme raiva que existe na sociedade em relação à sua oligarquia. A crise política, portanto, está sendo gerida – e todos sabem disso –, mas não existe estratégia política que ofereça outra coisa além disso.

Assim, este país parece viver no seguinte paradoxo: a revolta abriu uma questão fundamental que o país – sua oligarquia – não quer saber. Mas se essa questão subjacente não for abordada, não for enfrentada – e acredito que a nossa oligarquia, em virtude de sua posição de classe, é estruturalmente incapaz de abordar essa questão – não fará nada além de explodir infinitamente em uma espécie de normalidade bizarra e monstruosa que é tecida todos os dias e onde o sistema político continua a sofrer uma deslegitimação repetidas vezes. Então, é um país para o qual a revolta ofereceu uma maneira de interpretar seu próprio presente, mas sua oligarquia e classe política não fazem nada além de negar esse presente, através de caricaturas como “terrorismo”, “outubroísmo”, “anomia” e outros termos que o discurso sociológico se esforçou para criminalizar. Nesse sentido, esse país ficou completamente preso ao paradigma da segurança. E me parece que o progressismo que governa sob Boric ficou preso nesse paradigma e acabou compensando sua falta de projeto com o novo paradigma de segurança que oferecesse uma saída do jogo para articular um consenso performático com a oligarquia em geral.

Na ausência de um novo pacto político-constitucional, basta um novo pacto performativo de segurança. Assim, a guerra contra os pobres continua, hoje mais violenta do que nunca, porque o que está em jogo aqui é a vingança da oligarquia contra o mundo popular que se revoltou em 2019. Com outras palavras, não recebemos nada além de castigo. Uma forma de governo “portaliano”, onde o “porrete” prevalece sobre o “pão de ló”, como diria este Deus falso e usurpador que, como já assinalei, nosso país adora, como foi esse cavalheiro chamado Diego Portales (16). E justamente porque nunca nos livramos desse falso Deus, o Chile sempre esteve ad portas de uma ditadura civil.

IHU - Gostaria de acrescentar algum aspecto não questionado?

Rodrigo Karmy Bolton - Eu só queria expressar minha gratidão por estar de volta a esta bela revista e parabenizar a todos que tornam isso possível, porque em tempos como estes, revistas como esta oferecem mais do que apenas um respiro. São um lugar onde ainda podemos habitar.

Notas do IHU

(1) Nakba: palavra árabe (النكبة) que significa "catástrofe" ou "desastre" e designa o êxodo palestino de 1948, quando pelo menos 711 mil árabes palestinos, segundo dados da Organização das Nações Unidas, fugiram ou foram expulsos de seus lares, em razão da guerra civil de 1947-1948 e da Guerra Árabe-Israelense de 1948. O êxodo palestino marca o início do problema dos refugiados palestinos, um dos principais elementos do conflito árabe-israelense. Segundo a Agência das Nações Unidas para os Refugiados Palestinos (UNRWA), refugiados palestinos são as "pessoas cujo lugar de residência habitual era o Mandato Britânico da Palestina entre junho de 1946 e maio de 1948 e que perderam suas casas e meios de vida como consequência da Guerra árabe-israelense de 1948", ou seja, aqueles que foram obrigados a deixar a parte da Palestina que viria a constituir o Estado de Israel, indo para outras partes da região ou para países vizinhos.

(2) Aimé Fernand David Césaire (1913-2008): poeta, dramaturgo, ensaísta e político da negritude. Além de ser um dos mais importantes poetas surrealistas no mundo inteiro, inclusive no dizer do líder deste movimento, André Breton, Aimé Césaire foi, juntamente com Presidente do Senegal, Léopold Sédar Senghor, o ideólogo do conceito de negritude, sendo a sua obra marcada pela defesa de suas raízes africanas.

(3) Michel Foucault (1926-1984): filósofo, historiador das ideias, teórico social, filólogo, crítico literário e professor da cátedra História dos Sistemas do Pensamento, no célebre Collège de France, de 1970 até 1984 (ano da sua morte). Suas teorias abordam a relação entre poder e conhecimento e como eles são usados ​​como uma forma de controle social por meio de instituições sociais. Embora muitas vezes seja citado como um pós-estruturalista e pós-modernista, Foucault acabou rejeitando esses rótulos, preferindo classificar seu pensamento como uma história crítica da modernidade. Seu pensamento foi muito influente tanto para grupos acadêmicos, quanto para ativistas. Sobre seu pensamento confira as seguintes edições da Revista IHU On-Line: Edição 466, de 01-06-2015: Michel Foucault, o cuidado de si e o governo de si (enkrateia), disponível aqui; Edição 335, de 28-06-2010, Corpo e sexualidade. A contribuição de Michel Foucault, disponível aqui; Edição 203, de 06-11-2006, Michel Foucault, 80 anos, disponível aqui e Edição 119, de 18-10-2004, Michael Foucault e as urgências da atualidade. 20 anos depois, disponível aqui.

(4) Hannah Arendt (1906-1975): filósofa política alemã de origem judaíca, uma das mais influentes do século XX. A privação de direitos e perseguição de pessoas de origem judaica ocorrida na Alemanha a partir de 1933, assim como o seu breve encarceramento nesse mesmo ano, forçaram Arendt a emigrar. O regime nazista retirou-lhe a nacionalidade em 1937, o que a tornou apátrida até conseguir a nacionalidade norte-americana em 1951. Trabalhou, entre outras atividades, como jornalista e professora universitária e publicou obras importantes sobre filosofia política. Contudo, recusava ser classificada como "filósofa" e também se distanciava do termo "filosofia política"; preferia que suas publicações fossem classificadas dentro da "teoria política". Sobre essa pensadora, confira a Edição 206, de 27-11-2006 da Revista IHU On-Line, intitulada O mundo moderno é o mundo sem política. Hannah Arendt 1906-1975, disponível aqui.

(5) Friedrich August von Hayek (1899-1992): considerado um dos maiores representantes da Escola Austríaca de pensamento econômico. Foi defensor do liberalismo clássico e procurou sistematizar o pensamento liberal clássico para o século XX, época em que viveu. Realizou contribuições para a filosofia do direito, economia, epistemologia, história das ideias, história econômica, psicologia, entre outras áreas.

(6) Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831): filósofo alemão, autor de A Fenomenologia do Espírito, tida como um marco na filosofia mundial, e que pode ser incluído naquilo que se chamou de Idealismo Alemão, movimento filosófico marcado por intensas discussões filosóficas entre pensadores de cultura alemã do final do século XVIII e início do XIX. Essas discussões tiveram por base a publicação da Crítica da Razão Pura de Immanuel Kant. Hegel, ainda no seminário de Tübingen, escreveu, juntamente com dois renomados colegas, os filósofos Friedrich Schelling e Friedrich Hölderlin, o que chamaram de "O Mais Antigo Programa de Sistema do Idealismo Alemão". Posteriormente desenvolveu um sistema filosófico que denominou "Idealismo Absoluto", uma filosofia capaz de compreender discursivamente o absoluto (de atingir um saber do absoluto, saber cuja possibilidade fora, de modo geral, negada pela crítica de Kant à metafísica dogmática). Sobre Hegel, confira as seguintes edições da Revista IHU On-Line: Edição 217, de 30-04-2007, intitulada Fenomenologia do espírito de Georg Wilhelm Friedrich Hegel. 1807-2007, disponível aqui; Edição 261, de 09-06-2008, intitulada Carlos Roberto Velho Cirne-Lima. Um novo modo de ler Hegel, disponível aqui; Edição 430, de 21-10-2013, intitulada Hegel. A tradução da história pela razão, disponível aqui; Edição 482, de 04-04-2016, intitulada Hegel. Lógica e Metafísica, disponível aqui.

(7) Sigmund Freud (1856-1939): médico neurologista e importante psicanalista austríaco. Reconhecido como o fundador da psicanálise, tornou-se a figura mais influente da história da psicologia. A influência de Freud pode ser observada ainda em diversos outros campos do conhecimento e até mesmo na cultura popular, inclusive no uso cotidiano de palavras que se tornaram recorrentes, mas que surgiram a partir de suas teorias. Expressões como "neurose", "repressões", "projeções" popularizaram-se a partir de seus escritos. Sobre Freud, confira as seguintes edições da Revista IHU On-Line: Edição 179, de 08-05-2006, intitulada Sigmund Freud - Mestre da suspeita, disponível aqui e Edição 207, de 04-12-2007, intitulada Freud e a religião, disponível aqui.

(8) Ilan Pappé (1954): historiador israelense, professor de história na Universidade de Exeter, no Reino Unido. Foi docente em Ciências Políticas em sua cidade natal, na Universidade de Haifa (1984-2007). É um dos chamados Novos Historiadores, que reexaminaram criticamente a História de Israel e do sionismo. Pappé faz uma análise profunda sobre os acontecimentos de 1948 (criação do Estado de Israel) e seus antecedentes. Em seu livro mais importante, The Ethnic Cleansing of Palestine (no Brasil, publicado pela Editora Sundermann, como A Limpeza Étnica da Palestina, na tradução de Luiz Gustavo Soares), ele sustenta a tese de que houve uma limpeza étnica, ou seja, a expulsão deliberada da população civil árabe da Palestina - operada pela Haganah, pelo Irgun e outras milícias sionistas, que formariam a base do Tzahal - segundo um plano elaborado bem antes de 1948. Pappé considera a criação de Israel como a principal razão para a instabilidade e a impossibilidade de paz no Oriente Médio. Segundo ele, o sionismo tem sido historicamente mais perigoso do que o islamismo extremista. Ilan Pappé é um importante defensor da solução de um único estado para palestinos e israelenses.

(9) Giorgio Agamben (1942): filósofo italiano, autor de obras que percorrem temas que vão da estética à política. Seus trabalhos mais conhecidos incluem sua investigação sobre os conceitos de estado de exceção e homo sacer. Formado em Direito, em 1965, com uma tese sobre o pensamento político de Simone Weil, participou dos seminários promovidos por Martin Heidegger, no fim dos anos 1960. De 2003 a 2009 lecionou Estética e Filosofia, no Instituto Universitário de Arquitetura (IUAV) de Veneza. Em seguida decidiu abandonar a atividade de ensino nas universidades italianas.[1] Atualmente dirige a coleção "Quarta prosa" da editora Neri Pozza. na Università IUAV em Veneza. A sua produção se concentra nas relações entre a filosofia, a literatura, a poesia e, fundamentalmente, a política. Responsável pela edição italiana da obra de Walter Benjamin, foi professor visitante da New York University, antes de se decidir a não mais entrar nos Estados Unidos, em protesto contra a política de segurança do governo Bush. Sobre o pensamento de Agamben, confira a Revista IHU On-Line Edição 505, de 22-05-2017, intitulada Giorgio Agamben e a impossibilidade de salvação da modernidade e da política moderna, disponível em aqui.

(10) Nancy Fraser (1947): filósofa afiliada à escola de pensamento conhecida como teoria crítica. Fraser é uma importante pensadora feminista, preocupada com as concepções de justiça. Argumenta que a justiça é um conceito complexo que deve ser entendido sob três dimensões separadas, embora inter-relacionadas: distribuição (de recursos produtivos e de renda), reconhecimento (na linguagem e em todo o domínio do simbólico) e representação (na política e no poder de tomar decisões). Para evitar concepções redutoras dos conceitos de justiça e participação democrática, ela afirma também que os teóricos sociais deveriam sintetizar os elementos da Teoria Crítica e do Pós-estruturalismo, superando a "falsa antítese" entre os dois, para ganhar um completo conhecimento dos problemas sociais e políticos sobre o qual ambos trabalham.

(11) Ludwig Heinrich Edler von Mises (1881-1973): economista teórico de nacionalidade austríaca e, posteriormente, americana, de origem judaica, que foi membro da Escola Austríaca de pensamento econômico. É conhecido principalmente por seu trabalho no campo da praxeologia, o estudo dedutivo das ações e escolhas humanas. Defensor da liberdade econômica como suporte básico da liberdade individual, em seu livro Ação Humana expõe as posições epistemológicas e metodológicas que caracterizam a Escola Austríaca: concepção subjetiva de valor, individualismo metodológico e praxeologia. Além disso, Mises dedicou-se à crítica do Socialismo enquanto sistema econômico, por considerá-lo inviável em razão de não apresentar mecanismos de fixação de preço pelo mercado (problema do cálculo econômico).

(12) Thomas Hobbes (1588-1679): filósofo inglês, mais conhecido por seu livro de 1651 intitulado Leviatã, no qual ele expõe uma formulação influente da teoria do contrato social. É considerado um dos fundadores da filosofia política moderna. Influenciado por ideias científicas contemporâneas, desejava que sua teoria política fosse um sistema quase geométrico, em que as conclusões decorressem inevitavelmente das premissas. A principal conclusão prática de sua teoria política é que um Estado ou sociedade não pode ser seguro a menos que esteja nas mãos de um soberano absoluto. Disso decorre a visão de que nenhum indivíduo pode ter direitos de propriedade contra o soberano, e que o soberano pode, portanto, tomar os bens de seus súditos sem seu consentimento.

(13) Andrea Cavalletti: professor de Estética e Literatura Italiana na Universidade IUAV de Veneza e orador convidado para conferências em todo o mundo. Editor de várias obras, entre elas Spartakus. Simbologia della rivolta (Turim: Bollati Boringhieri, 2000), publicou ensaios nas áreas da literatura, da filosofia, da filosofia política e do urbanismo. Entre outros textos, é autor de La città biopolitica: Mitologie della sicurezza (Milão: Bruno Mondadori, 2005). Confira a entrevista concedida por Cavalletti à Revista IHU On-Line Edição 505, de 22-05-2017, intitulada O uso espetacular da incerteza e dos perigos produz um estado de paralisia sugestiva, disponível em aqui.

(14) Anthony Giddens (1938): sociólogo britânico, conhecido por sua Teoria da estruturação. Do ponto de vista acadêmico, o seu interesse centra-se em reformular a teoria social e reexaminar a compreensão do desenvolvimento e da modernidade.

(15) Walter Benjamin (1892-1940): ensaísta, crítico literário, tradutor, filósofo e sociólogo judeu alemão. Associado à Escola de Frankfurt e à Teoria Crítica, foi fortemente inspirado tanto por autores marxistas, como Bertolt Brecht, como pelo místico judaico Gershom Scholem. Entre as suas obras mais conhecidas, contam-se A Obra de Arte na Era da Sua Reprodutibilidade Técnica (1936), Teses Sobre o Conceito de História (1940) e a monumental e inacabada Paris, Capital do século XIX.

Nota do entrevistado

(16) Leia aqui.

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