31 Outubro 2024
Para Dylan Riley, o mundo vive encruzilhada entre um capitalismo nacional agressivo e um regime social-democrata.
A entrevista é de Fernanda Perrin, publicada na Folha de S.Paulo e reproduzida no Facebook de André Vallias, 29-10-2024.
A onda populista dos últimos anos é resultado da crise de um compromisso de classe entre capitalistas e trabalhadores que sustentava a democracia, argumenta o sociólogo Dylan Riley, professor de Berkeley.
No período pós-guerra, as altas taxas de crescimento econômico permitiam ao primeiro grupo lucrar e ao segundo compartilhar esses ganhos, na forma de emprego e aumentos salariais. No entanto, essa configuração começou a ficar ameaçada no final dos anos 1970, com a perda de dinamismo da economia capitalista, colocando em jogo o pacto que a sustentava.
É dessa brecha que se aproveita Donald Trump. No entanto, Riley se diz cético se Kamala Harris será capaz de reverter esse curso, especialmente se seu governo refletir a virada à direita de sua campanha.
Dylan Riley é sociólogo, professor de Berkeley, onde dirige o campo de estudos interdisciplinares. Estuda capitalismo, socialismo, democracia, autoritarismo e regimes de conhecimento. Em seu primeiro livro, "The Civic Foundations of Fascism in Europe: Italy, Spain, and Romania 1870-1945" (2010), argumenta que os regimes fascistas surgiram paradoxalmente com base em sociedades civis fortes no período pré-fascista.
Por que Trump torna-se atraente nesse contexto de crise?
Thomas Piketty toca o ponto básico quando ele diz que a política contemporânea no mundo rico é baseada em uma espécie de divisão entre uma direita mercantil e o que ele chama de esquerda brâmane, e então esse grande grupo que é essencialmente excluído da política.
Nos EUA e em grande parte da Europa Ocidental houve uma transformação na base da política, de modo que os partidos de esquerda e centro-esquerda se tornaram partidos dos altamente educados. A direita e a extrema-direita se tornaram partidos daqueles que não possuem ensino superior. Isso cria abertura para uma figura como Trump, cujo apelo em grande parte se baseia em um ataque à tecnocracia e à expertise.
Se Kamala vencer, o senhor acha que ela será capaz de parar ou pelo menos de mudar o curso dessa crise?
Estou um tanto cético. Há uma teoria por aí de que, se os democratas vencerem, os republicanos vão meio que se normalizar. Não vejo nenhuma evidência disso.
A política trumpista está muito profundamente enraizada e vai levar muito tempo e muito trabalho para transformar a situação. Também acho que é muito provável que haja uma recessão no primeiro mandato de um governo Kamala. Tivemos uma expansão [econômica] anormalmente longa. Também acho que Kamala enfrenta desafios geopolíticos realmente sérios que não está muito claro como ela planeja lidar.
Acho que o melhor que se espera de um governo Kamala é uma espécie de operação de contenção, mas não acho que seja o fim da política Maga [sigla em inglês para "faça a América grandiosa novamente", slogan de Trump].
O senhor acha que ela governará mais à direita de Biden?
Parece ser o caso. Tudo isso é muito difícil de ver porque o que está acontecendo agora está a serviço de vencer a eleição. Há indicações, como esse aceno aos republicanos anti-Trump, os Cheneys. Isso parece uma virada para a direita, mas estou realmente incerto sobre quanto disso é uma estratégia eleitoral ou se realmente representa uma mudança substancial na política.
Acho que seria um grande erro se ela fizesse isso. Não acho que a tornaria mais popular. Ela deveria tentar adotar e levar adiante os elementos mais progressistas da agenda doméstica de Biden em uma tentativa de consolidar o apoio eleitoral.
Considera Trump fascista?
Acho que ele é certamente um simpatizante. Não tenho certeza de que saiba o que é fascismo, e essa é a minha maior ressalva ao responder isso de forma direta. As condições em que ele opera também são muito diferentes das do fascismo clássico europeu, que requer um tipo de movimento paramilitar em massa. Neste ponto isso ainda falta nos EUA.
Há quem argumente que mudanças culturais pós-Obama são tão ou mais importantes para explicar Trump. Qual o papel dessas questões?
Elas são centrais, mas isso está acontecendo em todos os lugares, França, Alemanha, Itália, Reino Unido. Qualquer explicação disso como uma simples reação aos anos Obama não é convincente, porque é um fenômeno geral.
Dito isso, acho que há uma conexão entre a desaceleração da economia mundial e o esvaziamento dos partidos de centro-esquerda e uma virada para o nacionalismo, [para o] racismo. Algo mais que está acontecendo e é realmente importante é a política demográfica em torno disso. Isso é talvez mais saliente para os casos da Europa Ocidental, onde você vê taxas de natalidade muito, muito baixas.
Vemos isso nos EUA com Elon Musk, por exemplo, que fala constantemente sobre taxa de natalidade, e toda a polêmica sobre as mulheres sem filhos e com gatos. Seria uma versão americana dessa dinâmica europeia?
Sim. Acho que essa preocupação com a reprodução do estoque biológico nacional é. Minha interpretação é que as origens disso estão na extrema-direita europeia. Isso interage de uma maneira muito íntima com a política em torno do aborto e dos direitos reprodutivos.
Como os ataques de Trump a imigrantes se encaixam nisso?
A política anti-imigrante é um tema contínuo que remonta realmente ao final do século 19 nos EUA, com o Ato de Exclusão dos Chineses. A ideia no século 19 era que você colocaria uma tarifa industrial, em benefício do capital, e restrições à imigração, em benefício da classe trabalhadora. Obviamente, também era uma maneira de mobilizar a questão racial, porque isso é muito codificado racialmente.
Acho que há outros problemas aqui, no entanto, que são um pouco menos confortáveis de se falar, que é que os democratas, e a centro-esquerda de modo geral, têm um problema real com a imigração. Por um lado, há uma espécie de visão internacionalista de uma sociedade aberta que permite que as pessoas venham e façam suas vidas nos EUA. Mas também é verdade que a imigração pode levar à competição nos níveis mais baixos do mercado de trabalho. Até que ponto isso é um fenômeno real é algo muito debatido entre economistas e sociólogos, mas é um problema politicamente se você está em uma situação onde não há muitos bons empregos disponíveis.
O senhor diz que a crise que estamos vivendo vai se prolongar até emergir um novo regime político. Vê sinais disso acontecendo?
Há alguns sinais notáveis. O início do governo Biden e os pacotes de alívio da Covid foram intervenções estatais surpreendentes que alguns anos antes teriam sido inconcebíveis. Acho que estamos em uma espécie de mudança de regime. Na minha opinião, a era neoliberal acabou, e não sabemos realmente o que vem a seguir.
Isso é o que está em jogo. Vai ser uma espécie de capitalismo nacional muito agressivo ou vai ser algo mais socialista ou social-democrata? Em todo o mundo, as populações estão muito, muito profundamente divididas sobre essa questão, e é isso que está em jogo agora.
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"Trump é sintoma de crise democrática que não sei se Kamala resolverá". Entrevista com Dylan Riley - Instituto Humanitas Unisinos - IHU