28 Outubro 2023
“A luta de classes atualmente em curso nos Estados Unidos revela o colapso do modelo pós-fordista de organização do trabalho consumado nos últimos 30 anos, que agora precisa enfrentar a crise existencial do trabalho. Ninguém acredita mais na fábula de se dedicar totalmente ao trabalho para ter um futuro brilhante. Se somarmos a isto a desastrosa crise climática, o futuro parece, no mínimo, opaco. A rejeição do modelo de trabalho e a urgência de salvar o meio ambiente estão provocando profundas mudanças na sociedade, revolucionando a escala de valores do sistema”. A reflexão é de Christian Marazzi, economista suíço, em artigo publicado por El Salto, 27-10-2023. A tradução é do Cepat.
“Na semana passada (4 de outubro), os 75 mil trabalhadores da saúde da Kaiser Permanente, o maior consórcio privado de entidades com e sem fins lucrativos do setor, se declaram em greve por três dias. Foi a maior greve na área da saúde da história dos Estados Unidos. É a mais recente de uma série impressionante de greves que está agitando o mundo do trabalho estadunidense. Embora o centro da cena tenha sido ocupado pela greve da indústria cinematográfica, longe dos holofotes centenas de milhares de outros trabalhadores empregados nas mais diversas áreas da economia pararam, incluindo, de modo indicativo, trabalhadores da Starbucks, funcionários da hotelaria na Califórnia, comissários de bordo ou estivadores na Costa Oeste, para citar apenas alguns exemplos. A outra notícia é que os trabalhadores saem ganhando. O caso dos 340.000 entregadores da UPS é exemplar. Bastaram ameaçar uma greve que teria custado à empresa 7 bilhões de dólares e as suas exigências foram aceitas” (1). E desde o meio-dia de 14 de setembro, os trabalhadores das três maiores corporações da indústria automobilística estadunidense – Ford, General Motors e Stellantis – estão em greve (2).
A onda de greves ocorrida nos Estados Unidos é a soma de fatores contingentes e de longo prazo (3). A Covid-19, a emergência dos “trabalhadores essenciais” (4), a reativação da economia no pós-pandemia caracterizada por políticas públicas multimilionárias, o pleno emprego e o fenômeno das demissões voluntárias em grande escala são fatores contingentes que reforçaram o poder de negociação trabalhista. Além disso, não devemos esquecer os benefícios sociais implementados durante a pandemia por Trump e Biden, porque graças a eles muitos trabalhadores pobres obtiveram, ainda que temporariamente, rendimentos superiores aos seus salários.
As razões a longo prazo residem na crescente desigualdade observada nos últimos 40 anos. Entre 1979 e 2022, o rendimento do 1% mais rico da população dos EUA aumentou 145%, enquanto o dos restantes 90% cresceu apenas 16%. A combinação de fatores conjunturais e estruturais explica a explosão dos conflitos trabalhistas, que está fortalecendo os sindicatos estadunidenses (5). Há quem, obviamente, esteja preocupado com isto, mas o economista Robert Reich tranquiliza-os, explicando que foram as greves das décadas de 1930 e 1940 que deram origem à até então quase inexistente classe média estadunidense. A luta da classe trabalhadora dentro e contra o capital no início do século XX gerou grandes avanços para a sociedade como um todo, que se materializaram nos “gloriosos trinta anos” do período pós-Segunda Guerra Mundial. Nas últimas três décadas de neoliberalismo, no entanto, a classe média, e não apenas nos Estados Unidos, foi definhando e desaparecendo gradualmente.
Poderá esta onda de greves, que em 2022 registrou um aumento significativo tanto no número de conflitos como nos seus participantes, marcar o início de uma nova era histórica? (6). Isso não está tão claro. Na opinião de Heidi Shierholz, presidente do Economic Policy Institute, além do retorno do papel da classe trabalhadora, outros fatores são necessários (7). Nos Estados Unidos, com Franklin D. Roosevelt como presidente, a Lei Wagner foi promulgada em 1935, uma lei que promovia a negociação coletiva e a liberdade de associação sindical e introduziu fortes proteções contra a discriminação racial, promovendo ao mesmo tempo um importante pacote de investimentos públicos. Hoje, com a Lei de Redução da Inflação (2022), promovida pelo governo Biden e destinada a definir a nova política industrial “verde” estadunidense, voltamos às políticas keynesianas de intervenção pública vividas durante a Grande Depressão.
No entanto, segundo Heidi Shierholz, o elemento que falta em comparação com a década de 1930 é o contexto da legislação trabalhista americana, que foi severamente enfraquecida durante os últimos anos da era neoliberal. Atualmente, a legislação trabalhista é tão fraca que, para a maioria das empresas, a ruptura antissindical é um mero custo, não muito elevado, do seu funcionamento normal. Os obstáculos que os trabalhadores têm de superar para se sindicalizarem e obterem um primeiro acordo coletivo são colossais. Na versão final da Lei de Redução da Inflação, que inicialmente se supunha ser vigorosamente pró-sindical na sua discussão na Câmara dos Representantes, o apoio aos trabalhadores “sindicalizados” tornou-se um apoio aos trabalhadores “estadunidenses”. E isto não só a pedido do senador democrata da Virgínia Ocidental Joe Manchin, representante da direita do Partido Democrata, mas também devido à pressão de multinacionais estrangeiras que querem utilizar o sul dos Estados Unidos, onde pretendem criar um grande número de novos empregos, de mão de obra destinada à produção de carros elétricos, como a sua China particular (graças às normas laborais e ambientais muito mais flexíveis em vigor nestes Estados) (8). Em suma, é necessário um impulso legislativo para garantir a continuidade das mobilizações trabalhistas em andamento.
Infelizmente não há sinais disso vindos do Partido Democrata ou do Partido Republicano, o que explica o espetáculo do presidente Biden, que apareceu em Michigan no dia 26 de setembro para participar de um piquete com os trabalhadores da United Auto Workers (o primeiro presidente americano a fazê-lo, segundo a memória dos historiadores), ao contrário do que fez o ex-presidente populista Trump, que no dia seguinte, convidado pela direção de uma fábrica de peças para automóveis não sindicalizada (Drake Enterprises em Clinton Township), disse aos trabalhadores que Biden “só quer pegar seus empregos e entregá-los à China. A única coisa útil que deveria fazer é revogar as legislações que favorecem a produção de carros elétricos”. Na realidade, Biden apoia, por um lado, as reivindicações sindicais da UAW, mas, por outro, tem sido o promotor da Lei de Redução da Inflação, ou seja, a transição para a produção de carros elétricos, que na opinião de alguns analistas poderá significar a perda de algo como 40% dos empregos existentes no setor automotivo e também, como foi dito, sem a garantia legislativa de que a criação de novos empregos estará sob proteção sindical.
O problema da transição ecológica na indústria automobilística coloca-se também em termos da concorrência chinesa, dada a tecnologia muito avançada exigida neste setor. A redução ao mínimo dos padrões trabalhistas e ambientais de produção coloca os trabalhadores americanos ou europeus em concorrência com os produtores chineses, promovendo, em última análise, o populismo de um tipo ou de outro. Alguns economistas sugerem que seria melhor pensar em termos de padrões de qualidade para enfrentar a produção de carros elétricos, que é muito prejudicial ao ambiente e aos direitos dos trabalhadores, através da introdução de tarifas de importação orientadas por estes novos padrões (9). Também aqui destaca-se a necessidade de vincular os processos de sindicalização ao processo normativo para proteger a força de trabalho e o ambiente. Caso contrário, é provável que esta onda de greves registrada nos últimos meses nos Estados Unidos se prolongue durante todo o verão.
“A aposta reside totalmente nesta questão e o seu resultado poderá decidir quem será o próximo inquilino da Casa Branca, porque em 2020 Biden obteve 56% dos votos dos membros das diversas organizações sindicais em comparação com os 42% obtidos por Trump. É absolutamente necessário que Biden mantenha essas margens para ser reeleito, mas embora a AFL-CIO já lhe tenha dado o seu apoio, a UAW ainda não o fez” (10).
Em suma, para não acabar como o asno de Buridan, para usar as palavras de Guido Moltedo, Biden teve que mostrar a cara, embora esperasse resolver a crise através de uma negociação de bastidores liderada pelo seu secretário do Trabalho, Gene Sperling, como já havia feito com os ferroviários e os estivadores. O líder da UAW, Shawn Fain, no entanto, disse não: Hic Rhodus, hic salta, mostra-nos o que você afirma, aqui e agora.
De qualquer forma, as greves realizadas na Ford, General Motor e Stellantis assumem um significado especial. As reivindicações sindicais exigem um aumento salarial de 40% durante os próximos quatro anos e a mudança para uma semana de trabalho de quatro dias. Em 1926 foi Ford quem introduziu a semana de cinco dias, modelo que mais tarde se espalhou pelo mundo ocidental. Se os trabalhadores do setor automotivo norte-americano vencessem nesta frente, o seu exemplo poderia dar um forte impulso à busca de semanas mais curtas em escala internacional.
Existe alguma chance de sucesso? Logo veremos. No momento é interessante observar as táticas de luta adotadas pelos trabalhadores. Trata-se de uma greve unilateral, denominada “stand up strike”, praticada pela primeira vez nos estabelecimentos da GM em Flint, Michigan, em 1936. Alguns setores entram em greve enquanto outros seguem trabalhando, embora com grandes dificuldades (como acontece com os bloqueios patronais repentinos). É uma tática muito eficaz, porque mina o modelo de produção dominante num setor como o automotivo, que está altamente interligado e funciona de acordo com o princípio just in time, e torna impossível o planejamento da produção, pois não há certeza se a entrega dos fornecimentos necessários será feita no curto prazo. Também permite que o fundo de greve da UAW, que é de US$ 825 milhões e cobre parcialmente os salários dos trabalhadores em greve, dure mais tempo: US$ 500 para 13.000 trabalhadores em greve durante uma semana, em vez dos mesmos recursos serem distribuídos entre os 146.000 membros da UAW empregados nas fábricas de Detroit (11).
A pandemia marcou um ponto de inflexão, cujos efeitos começam a ser visíveis apenas agora (12). A luta de classes atualmente em curso nos Estados Unidos revela o colapso do modelo pós-fordista de organização do trabalho consumado nos últimos 30 anos, que agora precisa enfrentar a crise existencial do trabalho. Ninguém acredita mais na fábula de se dedicar totalmente ao trabalho para ter um futuro brilhante. Se somarmos a isto a desastrosa crise climática, o futuro parece, no mínimo, opaco. A rejeição do modelo de trabalho e a urgência de salvar o meio ambiente estão provocando profundas mudanças na sociedade, revolucionando a escala de valores do sistema (13).
1. Francesco Bonsaver, “Lotta di classe in America (conversazione con Christian Marazzi)”, Areaonline, 13-09-2023.
2. Bruno Cartosio, “Lo sciopero antico delle tute blu. In forme nuove”, Il Manifesto, 17-09-2023; Guido Moltedo, “Il vecchio Joe e la sfida delle tute blu”, Il Manifesto, 19-09-2023.
3. Paolo Mastrolilli, “Il ritorno degli scioperi negli Usa può segnare il duello Biden-Trump”, La Repubblica A&F, 25-09-2023.
4. Dustin Guastella, diretor de operações e representante sindical do Teamster Local 623 na Filadélfia, diz o seguinte: “Com o início do confinamento, as empresas e o governo criaram uma nova categoria de funcionário, ‘o trabalhador ou trabalhadora essencial’. Tratava-se trabalhadores considerados tão vitais para o funcionamento da economia que não podiam ser demitidos ou autorizados a trabalhar a partir de casa. Trata-se de enfermeiras, médicos e assistentes médicos, mas também profissionais da saúde, trabalhadores da UPS, trabalhadores de determinadas fábricas, trabalhadores agrícolas, trabalhadores da indústria alimentar, etc. O impacto psicológico de ser rotulado como ‘essencial’ ressoou na mente da população. Os meios de comunicação social e muitas empresas montaram um grande espetáculo para mostrar que estes trabalhadores eram ‘heróis’, incluindo manifestações ao vivo em que as pessoas aplaudiam literalmente os trabalhadores a partir das suas casas. Mas quando os confinamentos foram levantados, estes ‘trabalhadores essenciais’ não receberam qualquer recompensa comparável ao risco que correram. Na UPS, por exemplo, os diretores da empresa não ofereceram bônus especiais, nem indenizações por risco ou aumentos salariais em agradecimento por todo o ‘trabalho essencial’ realizado. Em vez disso, as empresas retornaram imediatamente ao status quo anterior. Foi um tapa na cara”. Entrevista de Salvatore Cannavò, Il Fatto Quotidiano, 27-09-2023.
5. Benjamin Wallace-Wells, “State of the Union”, The New Yorker, 09-10-2023.
6. A Escola de Relações Industriais e Laborais da Universidade de Cornell (Ithaca, Nova Iorque) iniciou em 2021 uma pesquisa independente sobre todas as greves realizadas nos Estados Unidos, considerando insuficientes os dados do Bureau of Labor Statistics. Este último, de facto, recolhe apenas números relativos a grandes greves (pelo menos mil participantes, com pelo menos oito horas de duração), com base numa decisão que remonta ao tempo de Ronald Reagan, há quarenta anos. Desta forma, elimina-se uma enorme quantidade de informações: basta dizer que 60% dos empregados do setor privado americano trabalham em empresas com menos de mil empregados. Além disso, a estrutura dos funcionários americanos mudou profundamente e, consequentemente, o seu conhecimento é cada vez mais difícil se eles se enquadrarem nas rígidas categorias tradicionais (agricultura, indústria, serviços, funcionalismo público). Ver Piermaria Davoli, “Ripresa degli scioperi in USA”, Lotta Comunista, setembro de 2023. Ver também Carmelo Caravella, “Negli Usa i lavoratori esistono e scioperano”, Center for State Reform, 06-10-2023.
7. Ver “In the US, workers’ rights are moving to centre stage”, Financial Times, 30-09/01-10-2023.
8. Rana Foroohar, “US autoworker strike could not be more critical”, Financial Times, 18-09-2023.
9. “Uma ideia melhor seria os Estados Unidos e a União Europeia chegarem a um acordo e estipularem um conjunto de normas trabalhistas e ambientais sobre a forma como os carros elétricos deveriam ser produzidos, o que ajudaria a evitar uma concorrência tanto com a China como entre eles a favor da imposição de padrões cada vez mais rebaixados. Estas normas deveriam considerar a carga total de produção de CO2 e neste sentido gostaria de saber, por exemplo, que quantidades de eletricidade gerada com carvão ou trabalho forçado são utilizadas para produzir todos os fatores de produção com energia limpa, independentemente de serem provenientes da China ou de outro lugar”, ibid.
10. Paolo Mastrolilli, “Biden tra gli operai dell’auto in sciopero: “Le aziende vanno bene, alzino i salari”, La Repubblica, 27-09-2023.
11. Claire Bushey e Taylor Nicole Rogers, “UAW strike tactics play on supply chain fears”, Financial Times, 21-09-2023. Ver também Peter Campbelly e Claire Bushey, “Dealers fear running out of cars as US strikes continue”, Financial Times, 28-09-2023.
12. “A Covid-19, o grande processo de abandono do posto de trabalho detectado a partir de 2021 (great resignation) e o cumprimento rigoroso e frio das tarefas laborais (quite quitting) evidenciaram como a abordagem em torno do trabalho está mudando: menos horas dedicadas ao trabalho duro, mais para a vida. Como pano de fundo, perfila-se também a invasão dos robôs e da inteligência artificial, o que tornará os humanos cada vez menos indispensáveis. Então o futuro está em encurtar as semanas e fazer com que todos trabalhem sem abrir mão do salário, porque os substitutos mecânicos não recebem. O grupo 4 Day Week realizou um experimento no qual participaram três mil trabalhadores de 61 empresas. Depois, 56 empresas decidiram continuar com a semana de quatro dias e a maioria dos trabalhadores jurou que não voltaria por nada no mundo. Vamos nos preparar”. Ver Paolo Mastroilli, “La settimana Corta è più vicina, l'idea è lavorare tutti, ma meno”, La Repubblica A&F, 2-10-2023.
13. Este é o significado profundo do livro de Francesca Coin, Le grandi dimissioni. Il nuovo rifiuto del lavoro e il tempo di riprenderci la vita, Torino, Einaudi, 2023. Ver também a bela crítica de Cristina Morini, “Quel system tossico che innva il lavoro rivingci la vita”, Il Manifesto, 17-09-2023.
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A luta de classes nos Estados Unidos. Artigo de Christian Marazzi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU