18 Outubro 2024
"Theobald pressupõe que a teologia hoje esteja indo ao encontro e à superação de sua inserção naquela 'arquitetônica doutrinária' forjada com João Paulo II e Bento XVI e manifestada com o tridente: magistério infalível, definitivo e autêntico. A mudança seria ditada pela diferente configuração que a teologia gostaria de assumir hoje no cenário do pluralismo cultural", escreve Giuseppe Guglielmi, presbítero e professor de Teologia Fundamental na Faculdade de Teologia da Itália Meridional, seção San Luigi, em Nápoles, em artigo publicado por Settimana News, 16-10-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
A teologia europeia (e não só) deve muito ao mundo francófono em termos de investigação teológica. Diversas instituições, desde o início do século XX, deram um importante contributo nesse sentido. Como não lembrar, além da Faculdade de Teologia do Instituto Católico de Paris, uma instituição como a dos Dominicanos da "Província da França" (Paris), ou seja, daquele mundo intelectual que gira em torno de Le Saulchoir, que também inclui a revista Revue des Sciences Philosophiques et Théologique e as edições Cerf?
E como não mencionar o empenho dos Jesuítas franceses, com as Facultés Loyola (antigo Centre Sèvres), da qual a revista Recherches de Science Religieuse é sua expressão? Essa pujança é realmente singular. A França, como muitas nações europeias (com exceção do mundo germânico), vivenciou a expulsão das faculdades de teologia das universidades estatais.
No entanto, essa exclusão (Sorbonne, em primeiro lugar) não produziu um isolamento acentuado da teologia do mundo da pesquisa humanística. As razões podem ser múltiplas, mas é provável que um dos fatores que permitiu o prolongamento dos interesses teológicos nos estudos humanísticos (embora na posição distinta das Ciências religiosas) também possa ser atribuído a um fato histórico. Simultaneamente ao fechamento das faculdades de teologia estaduais (1885), foi criada em Paris a quinta secção da École Pratique des Hautes Études, com o objetivo de estudar ciências religiosas.A EPHE está atualmente dividida em três Seções (Ciências da Vida e da Terra, Ciências Históricas e Filológicas, Ciências da Religião) e quatro Institutos.
Agora - e assim chegamos ao propósito desta minha reflexão - pergunto-me: estudar o fenômeno religioso do ponto de vista dos estudos ou conhecimentos humanísticos (filosofia, história, literatura, sociologia, psicologia, etnografia, etc.) não comporta - passados os tempos da desconfiança e da autorreferencialidade mútua - colocar a própria teologia de volta nesses conhecimentos? Aliás, com essa pergunta passo a introduzir o recente número (junho-setembro) da já citada revista Recherches de Science Religieuse (RSR) dedicado inteiramente a “Teologia e ciências sociais”. A escolha do tema é ditada sobretudo pelas jornadas de estudo que se realizarão em Paris (Facultés Loyola e Institute Catholique) de 14 a 16 de novembro, sempre sobre o mesmo tema.
Devo acrescentar que essa singular concatenação faz-me pensar noutros tipos de conferências, infelizmente de outra natureza, dado que brotam como cogumelos, sem uma perspectiva metodológica explícita, resultando assim em eventos comemorativos, ditados pelo calendário pelos empenhos a atender. Quando essas iniciativas conseguem deixar algum vestígio (como anais das faculdades ou miscelâneas que ninguém lerá), normalmente não fazem história, dadas as premissas generalistas das quais partem. Por isso, e essa é a minha primeira observação, é realmente admirável que estejamos nos preparando - como de fato está fazendo a RSR – a uma conferência com uma primeira rodada de estudos que, ao se entrar no cerne do debate, já possibilite calibrar melhor a discussão e as pesquisas do já iminente encontro de novembro.
O EditorialP.C. Goujon – D. Iogna-Prat, “Théologie et Sciences Sociale”, em RSR 112 (2024) 369-385. , escrito por Patrick C. Goujon SJ e Dominique Iogna-Prat, traça uma espécie de status do problema sobre a relação entre teologia e ciências humanas, sem, contudo, cair no pedantismo dos meros relatos a que esse gênero literário nos acostumou.
A parte introdutória do artigo já sugere o sentido do que está em jogo. Os dois estudiosos defendem, de fato, que a teologia, se não quiser permanecer na categoria das "ciência perene da verdade dita de uma vez por todas", deve reconhecer o seu gesto, isto é, o que Jean-Pascal Gay mais adiante, em seu artigoCf. J.-P. Gay, “Socialité et historicité de la théologie. Théologie réflexive et apories des rapports entre sciences sociales et théologie”, in RSR 112 (2024) 431-441 ., denomina de ato teológico inscrito numa efetiva sociabilidade e historicidade. Isso significa, escrevem os dois estudiosos citados, reconhecer “que a teologia se desenvolveu, e continua a fazê-lo, em contextos variegados que marcaram as suas afirmações.
As noções de ortodoxia e heterodoxia não escapam aos jogos de poder instaurados pela Igreja nem àqueles em que ela se via envolvida. A história dos dogmas não pode ser reduzida ao desenvolvimento linear de uma tradição inalterada. As afirmações cristológicas de Calcedônia traçaram um espaço geopolítico sempre atual. Os diálogos ecumênicos de hoje que negligenciarem esse fato, não têm outro resultado a não ser se interromper abruptamente”. P.C. Goujon – D. Iogna-Prat, “Théologie et Sciences Sociale”, 369.
Dialogar e trabalhar com as ciências sociais, nos lembra mais adiante o artigoCf. J-M. Donegani – Ph. Portier, “De l’appartenance à l’identité. Les hésitations du catholicisme contemporain”, in RSR 112 (2024) 407-430. de Jean-Marie Donegani e Philippe Portier, permite à teologia não apenas escapar da ilusão da perenidade das definições que a Igreja atribui ao que define a identidade dos seus membros, mas também permite compreender de que posição da sociedade ela pretende, ou não, dialogar com as ciências sociais.
A inscrição da teologia num quadro histórico e socialUma visão sobre a autocompreensão histórica da teologia e sua exposição às ciências sociais é oferecida, sempre nesta edição da revista, por A. Rauwel, “Nommer les savoirs du religieux: ensaio sur les enjeux de dénomination au moment moderniste”, in RSR 112 (2024) 391-405. , levanta a questão da relação e da tensão fecunda entre teologia e ciências sociais. Gujon e Iogna-Prat traçam, de fato, um duplo fio de conexão. “Ao pensar Deus como seu objeto constitutivo (Sache), a teologia não pode deixar de se confrontar com o social como situação na história (Lage), o que implica, num contexto epistemológico de modernidade avançada, articular-se com outros saberes que se apresentam de forma agnóstica em relação à questão religiosa".P.C. Goujon – D. Iogna-Prat, “Théologie et Sciences Sociale”, 377.
Por outro lado, isso levanta a necessidade de verificar se e como a teologia pretende abrir espaço a outros saberes que se colocam em posição crítica em relação a ela.Porém, essa perspectiva derruba as prisões disciplinares (na verdade, muito convenientes para alguns teólogos). Gujon e Iogna-Prat perguntam-se se “envolver os teólogos significa apelar à teologia ou estabelecer um diálogo com especialistas que, graças à sua competência e ao seu posicionamento dentro de sua disciplina, tornam possível um diálogo que não se pretende principalmente como um diálogo entre disciplinas, mas entre colegas que trabalham em questões religiosas?” (Ib., 376).
A teologia é assim provocada pelas ciências sociais a renunciar ao papel do um conhecimento total, elaborado segundo uma sua "sistematicidade" (várias vezes os autores desse número da RSR a esse respeito falam de "arquitetônica") que ao longo dos séculos assumiu diferentes formas.
Mas resta o fato - e estamos assim na segunda observação - de que as próprias ciências sociais não podem prescindir de uma unidade sintética (no mínimo, acrescento eu, como ideal regulador) e, portanto, não excluir por preconceito a teologia do seu raio. Os nossos dois autores introduzem esse segundo aspecto com uma cativante pergunta: “não existiria justamente um sonho inconfessado de arquitetônica teológica no cerne da atividade de antropólogos, historiadores, filósofos, sociólogos, inevitavelmente à busca de coerências de conjunto sobre o homem e a sociedade, a menos que limitem suas atividades a pequenos problemas eruditos e culturalistas?”. Ib., 379.
Em sua contribuição, intitulada: A pertença do teólogo à instituição, Christoph Theobald enquadra essa questão numa perspectiva histórica e epistemológica, características que, na minha opinião, definem a sua vasta investigação. Há dois pontos básicos que o teólogo franco-alemão chama em causa: a mudança de paradigma ao fazer teologia e a revisão dos pressupostos epistemológicos sobre a “realidade”.
Direi desde já que para quem não tem treinamento em fazer teologia (mas o mesmo vale para aqueles que, só porque intervêm e escrevem ao redor da galáxia cristã, acreditam automaticamente ser competentes em matéria teológica e, portanto, dizer o que a teologia deveria ser e o que não deveria ser) essas problemáticas poderão parecer como “abstrações” e vacuidades. Quem, por outro lado, navega nessas águas com uma certa preparação e honestidade intelectual pode bem compreender que se trata de posições que, embora não pretendam criar alarmismos (pelo contrário!), deveriam deixar apavorados, dadas as problemáticas e os cenários que se desenrolam a partir delas.
Quanto ao primeiro ponto, Theobald pressupõe que a teologia hoje esteja indo ao encontro e à superação de sua inserção naquela “arquitetônica doutrinária” forjada com João Paulo II e Bento XVI e manifestada com o tridente: magistério infalível, definitivo e autêntico. A mudança seria ditada pela diferente configuração que a teologia gostaria de assumir hoje no cenário do pluralismo cultural.
O Papa Francisco, escreve Theobald, teria expressado isso na Veritatis gaudium quando argumentou que a teologia é chamada a “se exercitar na interpretação performativa da realidade que brota do evento de Jesus Cristo”. Francisco, Veritatis gaudium, 3.
Nisso Theobald vislumbra o carisma profético do teólogo e da teóloga, que deveria ser exercido de forma transdisciplinar dentro do sensos fidei do povo de Deus e, mais amplamente, do sensus humanitatis muito difundido na humanidade, participando assim no exercício de interpretação performativa da realidade aberta a todos.
O segundo ponto tem a ver com a superação da justaposição entre teologia e outros saberes (que pode ocorrer na prática de uma simples interdisciplinaridade) para alcançar uma efetiva transdisciplinaridade.
Aqui o que está em jogo é ainda mais exigente: trata-se da capacidade de compreender a “realidade” presente em toda a sua complexidade. Não se trata de um método específico, especifica Theobald, mas de uma postura de inteligência coletiva que tem como especificidade a de se inventar a cada oportunidade, regulando a crise das nossas multiformes sociedades e também ativando um novo interesse por essa configuração.Cf. ib., 464.
O número de RSR parece, portanto, anunciar uma interessante continuação do debate na conferência de novembro. Grato aos estudiosos por sua contribuição, resta-me aguardar as publicações..., confiante, desta vez, de que não será um material comemorativo ou um simples relato de divulgação (Compte rendu, diriam os franceses).