Filosofia da Alegria. Entrevista com Isabella Guanzini

Reprodução da imagem extraída da obra de Isabella Guanzini

04 Abril 2022


"Escrever sobre alegria foi para mim uma tentativa de entrar na tristeza e na raiva do presente realizando um ato de resistência e de protesto contra o ressentimento, a desolação e o obscurecimento. Foi um ato de fé na possibilidade de uma retomada material e moral da vida comunitária, para além da suspeita e da angústia geradas pela pandemia", explica a teóloga Isabella Guanzini.

 

Isabella Guanzini, professora de teologia fundamental da Universidade Católica de Linz (Áustria), é autora do livro “Filosofia della gioia. Una cura per le malinconie del presente” (Filosofia da alegria. Uma cura para as melancolias do presente, em tradução livre. Ponte alle Grazie, 2021).

 

A entrevista é de Giordano Cavallari, publicada por Settimana News, 27-03-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.

 

Eis a entrevista. 

 

Prezada Isabella, gostaria de dizer algumas palavras sobre sua formação e sua carreira acadêmica?

Venho do mundo da escola, onde ensinei filosofia e ciências sociais por uma dezena de anos. Depois de estudar teologia na Faculdade Teológica da Itália Setentrional em Milão, onde obtive a licenciatura em teologia fundamental, completei o doutorado em Humanidades na Universidade Católica de Milão.

Em Viena, depois realizei um doutorado em teologia fundamental. A carreira acadêmica foi então consolidada com a cátedra de teologia fundamental, primeiro em Graz, depois em Linz. Eu moro em Viena e – sempre que a pandemia permite – fico me deslocando entre Viena e Linz.

 

Isabella Guanzini (Foto: RadioKlassik)

 

O que você tratou em suas publicações, até "Filosofia da Alegria"?

 

Desde o início da minha atividade de pesquisa, lidei basicamente com um único tema, ou seja, da tradução das categorias bíblico-cristãs para as linguagens seculares, como a filosófica e estética, e por último, aquela da psicanálise. A questão da tradução sempre foi o motor teórico da minha pesquisa teológica e filosófica. Parece-me que o papel da teologia fundamental seja precisamente este: explicar o que constitui o cerne da tradição de uma forma pelo menos compreensível ou plausível não só para o outro secular, mas também para o outro religioso (não-cristão), ou seja, dentro de um contexto insuperavelmente plural.

Além disso, a teologia fundamental é a disciplina mais aberta, por assim dizer, do conhecimento teológico cristão, chamada a um diálogo constitutivo entre o religioso e o secular e o outro religioso. Meu trabalho, portanto, sempre se move no limiar entre as diferentes linguagens e contextos culturais.

Até mesmo o trabalho que desenvolvi em "Filosofia da Alegria" - assim como em "Tenerezza" - nasceu com essa intenção, num estilo de confronto teórico com muitos autores - mulheres e homens -, inclusive muito leigos.

 

Podemos colocar no início de nossa entrevista a imagem da bicicleta que, com agradável surpresa, encontrei em seu livro? O que a bicicleta tem a ver com alegria?

 

A imagem da bicicleta é tomada de duas obras a que me referi.

A primeira bicicleta a que pensei foi a do garotinho Champion, protagonista do belíssimo filme de animação "As Bicicletas de Belleville". Champion é uma criança órfã que vive com sua avó. Ele vive, mas não tem vida, isto é, não tem sonhos, não tem paixões, não tem desejos. A avó tenta empurrá-lo de volta à vida. Ela vai tentando sem sucesso, até que um dia lhe dá de presente uma bicicleta: primeiro um triciclo e depois uma bicicleta de corrida.

Na história narrada pelo filme, a bicicleta torna-se o sinal evidente do retorno dessa criança à vida. A obra não nos diz claramente por que justamente a bicicleta o acordou. No quarto de Champion, é mostrada apenas uma foto dos pais - juntos - de bicicleta. O fato é que a paixão pela bicicleta se transforma em paixão pela vida, desperta o desejo, a alegria de viver. Como um ciclista principiante - Champion – acaba vencendo assim o seu Tour de France.

A segunda bicicleta em que pensei é aquela que Madeleine Delbrêl usa para representar a experiência espiritual, que é vivida por ela como uma experiência muito dinâmica, uma experiência do ar livre. Aqui está, a bicicleta paradoxal de Delbrêl: se não for usada, fica parada e, quando parada, cai no chão. É como a vida que, para ser vivida de verdade, deve ser continuamente posta em movimento pisando nos pedais, alcançando aquele equilíbrio instável, perigoso e ainda assim tão gratificante que traz a alegria.

E a alegria vive deste mesmo movimento, porque é uma reação ao que está parado, estático, fechado. Madeleine Delbrêl fala de uma "insegurança vertiginosa" que nada mais é do que a imagem da nossa vida. Se nossa bicicleta ficar encostada em um muro, aparece um objeto triste que desperta melancolia. Assim a nossa vida não pode ficar solitária, no fechado, se quiser sair da tristeza.
Através da imagem da bicicleta é possível dizer o que é a alegria: por um lado, tem a ver com paixão e desejo, por outro, com movimento, num equilíbrio sempre instável.

 

 

Os humores do espírito

 

Você já deu uma primeira descrição da alegria. E o que é a tristeza?

 

O conceito é especular e contrário à alegria. Pode-se dizer que a tristeza é a sensação que experimentamos quando estamos separados da nossa potência, daquilo que corresponde ao que podemos. É aqui que se pode experimentar uma existência intensificada, ou seja, a alegria de um encontro bem-sucedido. Enquanto a tristeza nasce de cada encontro ruim e do distanciamento progressivo de nós mesmos: mesmo que façamos muitas coisas, permanecemos de certa forma separados de nós mesmos, e esse fazer não produz nenhuma ressonância.

Gilles Deleuze - que está muito presente no livro não só por sua extraordinária leitura de Baruch Spinoza - usa o ícone do pintor que conquista a cor, que entra na cor: aqui está uma imagem de alegria, que é a alegria de uma conquista. Aqui se revela e se atualiza uma correspondência que prolonga a vida, no momento em que se realiza uma união entre o que se é e o que se deseja ser, no milagre de um acordo capaz de abolir toda separação. Aqui a alegria torna-se o nome de uma vida plena, de uma vida abençoada. Pensamos em Van Gogh e em sua conquista do amarelo.

Mas também se pode pensar na alegria de um músico que conquista uma nota ou do escritor que passa a fazer parte de sua narrativa. Mas também a todo trabalho bem feito ou - certamente - a um relacionamento em que cada um se sente um dom para o outro. A alegria aparece aqui como aquilo que realiza uma potência, como efeito esperado do encontro com o que se buscava e desejava há tempo. Não se trata da mera busca de satisfação, nem do mito ilusório da autorrealização, mas do puro prazer de uma conquista.

Não se percebe nem a estratégia da competição nem a satisfação de quem se destaca. Em vez disso, a pessoa se regozija em entrar em contato com uma zona inexplorada e ainda assim desejada da realidade, que improvisamente se manifesta de acordo com o pensamento e o sentimento.

É claro que a conquista ou realização da condição de possibilidade da alegria nunca é alcançada de uma vez por todas. Assim como a perda e a condição de tristeza nunca são irreversíveis. Tudo está na busca contínua, instável, que operamos em nossa vida.

 

 

Quais são os efeitos da tristeza e da alegria sobre as nossas relações?

 

A tristeza, como disse, corresponde a uma perda de intensidade da vida, a um enfraquecimento da vida e, portanto, ao desejo de relação com os outros. A alegria por sua vez aumenta a intensidade da vida, a nossa potência de pensar e fazer, juntamente com nossa capacidade de sentir afeto.

A alegria cria aberturas e derruba muros, põe em contato os corpos e as histórias. A tristeza esvazia, fecha sobre si mesmos, isola dos outros.

A alegria constrói um senso de comunidade. A tristeza o atrapalha, até que o extingue.

 

Quanto há de físico, corpóreo, nessas sensações?

 

A circulação da potência que dá alegria ocorre dentro e através do nosso corpo. Portanto, nossos afetos são o conatus do nosso corpo, que, no entanto, precisam cada vez mais de um mapa. Precisamos de algo que nos ajude a nos orientar no ato de sentir, não apenas naquele de pensar.

 

Reprodução da capa do livro Filosofia della gioia. Una cura per le malinconie del presente

 

Da pandemia à guerra

 

"Filosofia da Alegria" é um livro escrito no tempo da pandemia. Agora há guerra. Como falar de alegria?

Acima de tudo, precisamos falar sobre o que não existe e corre o risco de se extinguir. A potência da palavra pode, por assim dizer, tornar presente o que não existe, que se perdeu sob os golpes da violência, da dureza ou da tristeza: paz, ternura, alegria. A pandemia é (foi) o tempo de separação e, portanto, em si, da tristeza.

Esse é o sintoma que se manifestou com maior evidência entre os adolescentes, ou seja, entre as vidas que fazem da relação sua exigência primária. Nesse sentido, continuamos a ler os preocupantes relatos sobre a condição psicológica dos jovens que passaram pela pandemia, mas não ainda da melancolia que ela gerou. Isso mostra claramente como os seres humanos não são feitos para viver no fechado, mesmo quando nada lhes falta para sobreviver.

A tristeza é o sintoma daqueles estados passivos em que nos sentimos à mercê de nossos medos e de nossos fantasmas. Por isso, a tristeza está associada à condição de impotência e medo, dois sentimentos que a pandemia certamente intensificou. Como figura da tristeza, o medo comporta um enfraquecimento do nosso desejo vital e da nossa capacidade de pensar, agir e regozijar.

O medo gera um afastamento psíquico da sociabilidade, o que aumenta a suspeita e uma espécie de aversão em relação ao estranho. A realidade aparece sobretudo como algo obscuro e inextricável, como um animal desconhecido e temível. O medo se origina e se agudiza justamente quando o sujeito perde seu contato imediato e simpatético, ou seja, a confiança em relação ao que o cerca. E, sem confiança no outro, não pode haver alegria.

 

 

Em que relação podemos colocar fé e alegria?

 

Gostaria de propor a imagem do parto, do nascimento, do milagre de uma nova vida que vem à luz. A necessária passagem de dentro para fora, da imanência à transcendência, o sinal de uma "hospitalidade sem propriedade", certamente não acontece sem dor. Aqui, também, prevalece uma insegurança vertiginosa, na qual há uma espécie de presságio de morte. O parto é aquele limiar muito doloroso em que se faz uma espécie de experiência de morte.

A angústia é tanta a ponto de sentir por um instante que se pode perder tudo. Há uma passagem abismal, aquela que conduz uma vida nascente para o mundo: aqui, por um momento, vida e morte se cruzam, trocando destinos. A angústia e os fantasmas do parto, a escuridão dos últimos instantes em que a mulher concebe, como nunca antes, a possibilidade do nada, traduzem-se na luz de um novo nascimento, impossível de simbolizar. O milagre da vida recém-nascida transforma a dor em uma “alegria que ninguém pode tirar”, segundo a linguagem de Jesus no Evangelho de João.

No texto de João, uma passagem semelhante àquela das dores do parto ao nascimento de um novo ser humano é uma imagem da passagem da Páscoa da cruz à glória, da aflição à alegria. Pessach significa precisamente a passagem da libertação, saída do Egito como símbolo de todas as condições de escravidão e opressão. É a festa de quem deseja passar, de quem quer sair da tristeza, num impulso para uma nova experiência de plenitude. Sexta-feira Santa e sábado são a passagem escura do parto, depois da espera quaresmal: o momento do medo absoluto da perda, antes que a luz se deixe anunciar.

Pois bem, a é o que nos faz resistir na passagem, é o dom da resistência contra a perda da confiança. A é a percepção de que não será uma catástrofe: é a esperança de que no final está a conquista da alegria, além da dor.

 

 

A alegria

 

A alegria é uma conquista ou um dom?

 

A alegria é, ao mesmo tempo, uma conquista e um dom. A alegria é o prazer de uma conquista, como eu disse. Mas, ao mesmo tempo, a alegria não é mera satisfação devido à realização autoproduzida. O aspecto da busca e, portanto, do esforço que todas as paixões comportam, é acompanhado por aquele puro elemento de graça que é outro nome da alegria.
Portanto, há algo pelo qual somos responsáveis. E, no entanto, sem aquele excedente de absoluta gratuidade que ninguém pode dar a si mesmo, não acontece nenhuma experiência da alegria.

 

As crianças podem ser educadas para que sejam adultos com alegria?

 

Na época do "fim da autoridade", não se trata mais de impor regras e preceitos indiscutíveis aos nossos filhos, nem certamente de forjar destinos. Em sua essência, a educação corresponde a uma certa relação que estabelecemos entre nós e nossos filhos, a um certo clima em que florescem sentimentos, instintos e pensamentos. É uma questão de paisagem e estilo.

No conto As pequenas virtudes, Natalia Ginzburg questiona-se sobre o sentido e a possibilidade da educação em tempos de crise, onde tendem a prevalecer aquelas que ela define como as "pequenas virtudes": o senso de proteção, poupança, astúcia, prudência, o desejo de sucesso. As pequenas virtudes visam basicamente a segurança e a sobrevivência, a garantir proteção aos filhos dos golpes da sorte.

Embora não seja em si desprezível, um clima inspirado no respeito das pequenas virtudes desdobra lentamente a vida para o medo de viver, animando um instinto de defesa que não é isento de cinismo. Ao contrário, as grandes virtudes, que deveriam nutrir toda relação educativa, são de outra ordem: coragem, dedicação, amor ao conhecimento e à verdade, como efeito de uma profunda confiança na vida, do amor à vida.

Natalia Ginzburg oferece um mapa de afetos alegres em sinal de generosidade e coragem de viver, sem fingimentos: abre para uma dimensão apaixonada e ao mesmo tempo sóbria da existência que resiste ao desânimo e não cede ao próprio desejo, apesar da paisagem de temor e desconforto em que a pessoa se encontra pensando e agindo.

As grandes virtudes são o antídoto para a sociedade da suspeita e do medo, que hoje parece avançar sem remédio, para abrir caminho para uma forma de agir ousada e a possibilidade da alegria. No centro da educação não está a questão do sucesso ou do insucesso, mas de um profundo apego à vida. Por isso só se pode educar para a vida e para a alegria amando a vida e vivendo na alegria.

 

Você quer combinar a alegria com a palavra vocação?

 

Certamente a alegria é gerada por uma vida vocacionada, isto é, chamada, capaz de destinação. Mas o que significa ser chamados? Significa sentir-se precedidos e acompanhados pelas palavras do outro, que se inscreveram em nós mesmos sem se impor.

A vocação nasce de um olhar que sabe captar nossas inclinações e de uma palavra que sabe nos encorajar e acompanhar, sem forçar. Observar e acompanhar a lenta formação de uma vocação: esse é o sentido profundo da educação. Aguardar seu florescimento, que misteriosamente segue o seu tempo e a sua verdade. A vocação de um ser humano nada mais é do que a expressão máxima do seu amor pela vida, que se torna a história de um desejo e de uma liberdade singulares.

 

Podemos escolher as pessoas que nos trazem alegria ou não temos escolha?

 

Esta é uma pergunta de natureza antropológica e também teológica realmente "dramática". O outro nos constitui. O outro certamente nos dá alegria. Não pode haver alegria sem o outro. Mas o outro também pode nos conduzir ao inferno. De fato, os relacionamentos nem sempre constroem contextos alegres.

O tempo da pandemia, por um lado, nos obrigou ao isolamento; por outro, entregou-nos às relações mais próximas, aquelas domésticas, revelando tanto o aspecto alegre do novo tempo à disposição, como as dificuldades de muitos contextos familiares. Destacou sua fragilidade e, ao mesmo tempo, gerou uma profunda nostalgia pelas relações perdidas. Fez-nos refletir sobre estilos de vida não à altura da alegria, e talvez nos tenha ajudado a observar-nos com mais ternura e indulgência, à luz do nosso destino comum.

 

As palavras e a tradição

 

Alegria, liberdade, paixões, desejos... não são palavras que a tradição costuma considerar bastante perigosas?

 

Essas palavras certamente comportam uma dimensão de risco e de exposição. Toda experiência de conhecimento e de vínculo sempre envolve um risco: sempre há algo incontrolável, imprevisível, indeduzível, em que tudo pode acontecer. Onde há uma entrega confiante, há também o risco de se perder. Mas esta é a nossa vida. Se queremos que seja uma vida alegre, temos que correr esse risco. Como eu disse, uma vida mantida em segurança não pode ser uma vida alegre.

Escrever sobre alegria foi para mim uma tentativa de entrar na tristeza e na raiva do presente realizando um ato de resistência e de protesto contra o ressentimento, a desolação e o obscurecimento. Foi um ato de fé na possibilidade de uma retomada material e moral da vida comunitária, para além da suspeita e da angústia geradas pela pandemia.

Ora, com o drama da guerra em curso numa Europa onde voltaram a acontecer eventos que já haviam se tornado para nós impensáveis e quase impronunciáveis - cerco, ocupação, bombardeios - falar de alegria significa reagir à violência, não deixar à destruição e à morte a última palavra.

 

A alegria pode ser escondida secretamente dentro de si mesmo?

 

Reter a alegria, esconder a alegria como se fosse algo ingênuo e inoportuno, quase obsceno, em tempos de crise, significa esquecer sua dimensão dramática e, sobretudo, seu vínculo original com as fontes da vida. Por isso há uma dimensão aberta, diria feminina, oceânica, que se impõe na experiência da alegria, que desafia o medo, o horror, qualquer tentação ao fechamento e ao controle.
Há também uma tendência acadêmica, típica do discurso universitário, que considera os afetos - e, portanto, também a alegria - incompatíveis com a seriedade do pensamento, inclusive do pensamento teológico. Ao contrário, eu considero que tal mecanismo de defesa contra o que não é inteiramente simbolizável e formalizável segundo as categorias clássicas do pensamento deve ser perfurado, posto em crise, para mostrar sua potência geradora e criativa, não meramente emotiva.

Em especial, o conhecimento teológico tem a responsabilidade de dar conta do que nas outras formas de conhecimento permanece sistematicamente removido, para mostrar sua força da verdade, inclusive religiosa. Nesse caso, a alegria funciona como uma instância crítica, com forte caracterização de gênero.

 

O poder

 

Isabella, por que a alegria incomoda o poder?

 

O tirano, como diz Deleuze, precisa de almas quebradas, assim como as almas quebradas precisam de um tirano. Por almas quebradas quero dizer as almas separadas de si mesmas e do que podem, à mercê de seus próprios fantasmas e do poder, portanto tristes. O poder precisa de tristeza, porque a tristeza é um afeto que implica uma diminuição da potência de agir.

As paixões tristes conduzem a existência ao seu grau mínimo de potência, marcado por uma condição de desamparo e de passividade que torna os sujeitos particularmente sensíveis às sugestões: da superstição religiosa, ao fascínio por figuras autoritárias, da desconfiança em relação ao semelhante, à fuga do mundo e da liberdade.

A tristeza produz uma condição de decomposição cada vez mais profunda que tende a sucumbir às promessas identitárias dos poderes fortes. Por outro lado, a comunidade em que circulam os afetos é, por sua própria natureza, democrática no sentido mais próprio, aberta, hospitaleira, plural.

 

 

Isso também se aplica ao poder eclesiástico?

 

Nietzsche é muito crítico em relação a um poder sacerdotal que se alimenta do sentimento de culpa e de dívida infinita para com Deus, induzido nos homens e que os condena a um estado de tristeza perene. Esse poder pastoral gera uma moral do sacrifício e da oferta de si superegóica e antialegre, que escraviza os sujeitos, separando-os cada vez mais profundamente de seu próprio desejo.

Quando o poder eclesiástico se transforma nesta forma sacrificial de existência, torna-se uma figura de ressentimento, que odeia a vida, que despreza todo entusiasmo. Em todo caso, a docilidade sempre foi considerada um valor na Igreja. Até mesmo o poder eclesiástico sempre amou as almas submissas. O poder não gosta da liberdade. As almas submissas não gostam de liberdade.
Todos nos lembramos da "Lenda do Grande Inquisidor". A escravidão voluntária é cômoda, mas certamente não pode ser motivo de alegria. Alegria significa uma verdadeira rebelião ao estado de submissão. Por isso, nunca foi muito apreciada, nem mesmo na Igreja, pelo menos naquela mais institucional.

O Papa Francisco, em minha opinião, representa um contraponto a esse poder pastoral que gera almas ressentidas e submissas. Não é à toa que a alegria é a palavra-chave do seu pontificado. Mostrou-nos como o estilo clerical viveu e ainda vive, com demasiada frequência, numa visão de separação do sagrado do profano, do puro do impuro, do religioso do secular. O clericalismo vive no regime de separação.

Este é o pensamento clerical, mais ou menos consciente. Para o pensamento clerical, portanto, tudo se torna um objeto: evangelização, pastoral, missão, etc. O pensamento clerical faz do mundo um objeto do qual o clero é o sujeito. Os objetos dessa pastoral não podem, portanto, ser sujeitos que vivem na alegria.

Por isso, é importante para mim hoje dissociar o servilismo da falsa ideia de docilidade ou mansidão. A mansidão de Jesus é outra coisa: é dizer sim à vida, sempre, assumindo total responsabilidade por ela; não é a submissão ao poder constituído. A submissão dócil é a causa de tanta tristeza na Igreja. Esperamos que alguma consequência possa ser tirada no debate sinodal!

 

 

É possível abrir mão do poder, apenas para viver na alegria?

 

Não há dúvida de que as mulheres e os homens do Ocidente avançado associam a ideia de poder a uma força mais ou menos anônima que vem de cima. Hoje o pensamento se dirige para os grandes dispositivos econômicos e financeiros, para as elites e para os grandes interesses que movem as tramas (invisíveis para a maioria) das exorbitantes manobras globais.

No entanto, o poder também pode ser entendido em um sentido diferente, ou seja, como aquilo que produz um efeito, que gera um movimento, fazendo acontecer algo novo. Nossos corpos e nossas mentes são centros de alta densidade afetiva: todo encontro, todo gesto, toda palavra transforma a intensidade da vida, tem o poder de gerar alegria e tristeza, nos abrir ao mundo ou simplesmente nos fazer cair em nós mesmos, como um peso morto.

Há ações, olhares e discursos capazes de extinguir, como um jorro de cinzas sobre as brasas, a força vital de um indivíduo ou de uma comunidade. A alegria, por outro lado, sabe encontrar e desvencilhar as brasas sob as cinzas, dando nova vida ao fogo.

 

 

A última pergunta é dedicada ao sujeito que enterrou o talento na parábola (Mt 25, 14-30): o que ele fez de tão ruim para ser condenado?

 

Os Evangelhos descrevem sem pudor a dureza de Jesus em relação a tudo o que restringe as possibilidades da vida e a priva de sua potência geradora: a imposição, inclusive religiosa, de pesos inúteis, a transfusão culposa de medos em vista da dominação, o freio moralista das paixões genuínas, o gozo do poder na gestão de corpos dóceis e submissos. O servo que enterra seu talento é lançado nas trevas.

Enterrar o talento por medo de perdê-lo significa perder a vida, tornando-a uma não-vida. Trair a própria vida significa, na linguagem dos Evangelhos, enterrá-la sob a terra, reduzindo toda pretensão em relação a ela. Quanto mais tentamos nos autopreservar e nos imunizar contra a vida, mais nos condenamos à morte.

O homem da parábola que enterra o talento é um homem que pensa em um Deus perturbador e punitivo, que não quer a vida de seus filhos. Colocar a vida - e a própria religiosidade - sob a bandeira da suspeita e do temor de Deus significa renunciar a viver, significa fechar-se à superabundância da vida, condenar-se às penas de uma espécie de inferno terreno, sem nenhuma alegria. Os dois primeiros servos arriscam corajosamente um investimento dos bens com resultado incerto, fazendo com que a doação inicial dê frutos.

O terceiro servo não arrisca nada: tomado pela ânsia de perder até o pouco que tem, entrega-se a uma vida condenada, estéril e aterrorizada; ela desativa toda potência criativa e renuncia a toda responsabilidade, simplesmente se afastando da empreitada de viver.

Porque quem segura a sua vida com zelo a perde, enquanto quem acredita na sua própria potência a doa e assim a multiplica, vivendo na abundância. A parábola alerta os leitores sobre o que no último dia eles serão julgados: sobre a dedicação profusa nas coisas da vida, sobre a capacidade de fazer bom uso de algo, mesmo com pouco, sobre a falta de medo como virtude que doa.
Ter a vida (Jo 10,10) distingue-se da mera conservação da vida: é aqui que acontece a passagem de uma vida como condição à vida como vocação.

A alegria então indica a direção oposta ao sepulcro. Porque assume a forma de um chamado que tira de uma condição de estagnação, para recolocar em movimento a existência em direção ao que lhe é mais próprio.

 

Leia mais