10 Novembro 2020
Virtudes teologais. Sobre o tema, dois livros repassam seus caminhos e relembram as reflexões de escritores e pensadores, de Leopardi a Santo Agostinho, de Kierkegaard a Bloch.
O comentário é do cardeal italiano Gianfranco Ravasi, prefeito do Pontifício Conselho para a Cultura, em artigo publicado por Il Sole 24 Ore, 08-11-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
“É esperar a coisa difícil – em voz baixa e vergonhosamente. E a coisa fácil é se desesperar, e é a grande tentação.” Assim escrevia Charles Péguy no seu poema “O pórtico do mistério da segunda virtude” (1911), dedicado a essa que é justamente a segunda das virtudes teologais, a “irmã mais nova” em comparação com as outras duas, a fé e a caridade.
Mas, assim como costuma acontecer com as crianças que puxam os seus pais parados na rua diante das vitrines ou conversando com alguém com quem se encontraram, é a esperança que faz avançar as duas irmãs mais velhas no caminho da vida.
A essa virtude e ao seu reverso obscuro, o desespero, o psiquiatra Eugenio Borgna reservou um fascículo essencial de páginas, mas que põem a dura prova o resenhista, porque deveriam ser quase simplesmente transcritas, de tão transparentes e intensas, fruto também de uma pesquisa como a dele, conduzida não apenas nos picos nevados e ensolarados da esperança, mas também nos abismos obscuros e nas cavernas tenebrosas do desespero.
A rigor, a sua reflexão se situa em um díptico. A primeira tábua evoca o horizonte imenso que nasce da esperança, vista como “infinita busca de sentido”. Curiosamente, a palavra spes está ancorada na raiz indo-europeia spat-, que também gera spatium. Na realidade, essa virtude está mais ligada à categoria “tempo”, de fato, é principalmente projeção sobre o futuro, mesmo que mantendo os pés plantados no presente e com as costas e o rosto prontos para se voltar também para o passado.
Não é à toa que o segundo quadro do díptico se intitula “A esperança como memória do futuro”, entrelaçando assim plenamente a tridimensionalidade do tempo ao estilo agostiniano. Diante das duas tábuas, o leitor é convidado a descobrir os múltiplos registros que as compõem.
De um lado, expectativa e medo, ética e escatologia, mas também o mergulho no vórtice do suicídio. É emocionante a exegese do diário de Pavese com as suas linhas candentes, com as tramas inquietantes e suspensas até se chegar àquela última página fremente que se volta até uma invocação orante (“Tu, tem piedade”), mas que será selada por um frio dado de crônica: “Na noite entre os dias 26 e 27 de agosto de 1950, ele morria ingerindo altas doses de barbitúricos”.
De fato, Borgna convoca à sua pesquisa pelo menos duas tipologias testemunhais. Há as vozes das pessoas que percorreram os caminhos clínicos das terapias psiquiátricas. O autor, porém, nunca as faz ressoar segundo um frio laudo médico (como se sabe, ele também praticou esse caminho no manicômio feminino de Novara), mas se revela como um companheiro de viagem, embora terno e delicado, com a riqueza da sua humanidade que é bem conhecida por todos aqueles que se encontraram com ele (entre outras coisas, um de seus textos anteriores se intitulava “A escuta gentil”).
Por outro lado, há uma outra voz com mil iridescências, e é a voz múltipla dos escritores, começando pelo amado Leopardi, mas também de pensadores como Agostinho, Kierkegaard ou Bloch, e até do cinema, com o deslumbrante lampejo de “Morangos silvestres”, de Bergman, parábola ideal da “memória do futuro”, e do apóstolo Paulo com a sua lição sobre “esperar contra toda esperança”.
Como dizíamos, são muitas outras as sugestões que florescem no leitor desse pequeno livro que se coloca sob a insígnia de um incisivo ditado leopardiano: “Em suma, o próprio desespero não subsistiria sem a esperança, e o homem não se desesperaria se não esperasse”. Para o teólogo, além disso, abre-se um campo muito vasto de pesquisa e não só pela meta escatológica que sustenta o conceito de história da salvação (o Apocalipse ensina), mas pelo próprio perfil do Deus cristão e pela sua palavra que convida a humanidade a sempre levantar o olhar, como foi demonstrado pelo importante “Teologia da esperança”, de Jürgen Moltmann (1964), traduzido pela editora Queriniana, da Bréscia.
Já foi dito que a esperança tem uma irmã mais velha na caridade, e um professor universitário, Stefano Biancu, dedica um estudo a essa virtude, mas o faz a partir de um ângulo muito original. Certamente, o ditado agora é o acadêmico, e as páginas têm referências sistemáticas e transbordam de notas, mas a abordagem poderá interessar a muitos.
Se quiséssemos sintetizá-lo de forma simplista, poderíamos recorrer precisamente ao título, “Il massimo necessario” [O máximo necessário]. O amor, de fato, é por natureza excedente, não calcula, pelo contrário, desperdiça, tanto que, quando dois apaixonados começam a sopesar o valor dos presentes que se deram, é sinal de que estão prestes a se deixar.
Não é à toa que o Novo Testamento cunhou como suprema definição divina aquela joanina que soa como “ho Thèos agápe estín”, “Deus é amor”. A caridade se cruza com o infinito e o eterno, e São Paulo nos deixou um incrível hino do agápe no capítulo 13 da Primeira Carta aos Coríntios, no qual declara que “a caridade nunca terá fim” (literalmente, “nunca cairá”).
Para ilustrar essa qualidade “excessiva” do amor, que se torna também a prova de fogo da autêntica ética, Biancu recorre a um curioso vocábulo adotado pela tradição teológico-moral, “supererrogatório”. O termo tem a sua fonte genética na versão latina de uma célebre passagem do Evangelho de Lucas, a da parábola do Bom Samaritano (10,29-37): após ter recolhido, cuidado e levado para uma hospedaria a vítima de um assalto, o samaritano garante ao hospedeiro – a quem já entregou dois denários – que não hesite em “gastar mais” se for preciso, pronto para reembolsar os gastos posteriormente (v. 35). Esse “gastar mais” no grego neotestamentário é um hapax, prosdapanáô, que se baseia nos termos correlatos dapánê, “gasto”, e dapanáô, “gastar”, e que São Paulo usará em outra forma composta, ekdapanáô, precisamente para indicar o “gastar-se sem reservas, o consumir-se, o sacrificar a si mesmo” pelo evangelho (2Coríntios 12,15).
Eis-nos, portanto, no coração do amor que anseia ao máximo pela doação e que, no seu escrito, Biancu encarna em uma categoria radical, a fraternidade. Ela se sustenta sobre uma dupla base: de um lado, a liberdade e a igualdade, que pertencem à modernidade política e secular; de outro lado, sobre a hospitalidade e sobre o perdão, virtudes pertinentes sobretudo à moral religiosa e que, no fim, desembocam na “misericórdia impensável”.
Não é à toa que, sobre este último ponto, Antigo e Novo Testamento, embora na sua diversidade linguística, para expressá-la, não recorrem, como no nosso caso, ao “coração” (miseri-cordia), mas sim ao ventre materno (rahamîm em hebraico, splánchna em grego), que simboliza um amor total, absoluto, instintivo e radical.
É aquilo que Cristo havia representado na afirmação proferida na última noite da sua vida terrena no Cenáculo: “Não há amor maior do que quem dá a vida pela pessoa que ama” (João 15,13).
Naturalmente, o estudo proposto pelo autor é muito ramificado e amparado por um amplo aparato de reflexões, de aplicações, de referências à pesquisa filosófica. É certo que o paradigma do “supererrogatório” é um pouco a pedra de toque do “dever” verdadeiramente humano e da ética genuína, apesar da tendência atual que, sempre tendendo ao mínimo, nos impede e nos torna incapazes de tentar a ascensão para o alto, até o “máximo necessário”.
Uma das perguntas conclusivas que aflora no texto, então, é esta: “Como pensar a antropologia, a ética, a política a partir daquilo que foi até agora impensável?”.
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Todas as vozes cantam a fé e a esperança. Artigo de Gianfranco Ravasi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU