09 Outubro 2023
"O conhecimento é imaginado como aquele conjunto de teorias abstratas de natureza normativa destinadas a dar forma a uma prática, que, se não quiser permanecer no campo da pura vitalidade indeterminada, nada mais deve fazer do que se conformar a tal conhecimento", escreve Giuseppe Guglielmi, presbítero e professor de Teologia Fundamental na Faculdade de Teologia da Itália Meridional, seção San Luigi, em Nápoles, em artigo publicado por Settimana News, 29-09-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Leia o primeiro e o segundo artigos da série.
Um dia, durante o horário de expediente, um estudante me apresentou algumas ideias sobre sua tese de mestrado. O seu interesse centrava-se em questões relacionadas com o turismo, um âmbito difícil de interceptar pela prática pastoral comum.
A discussão fica interessante: oportunidades, problemas, perspectivas... A certa altura, o estudante formula a pergunta "clássica" que também costumo ouvir em outras ocasiões: "professor, gostaria de saber qual fundamento teológico dar ao trabalho”. Tento inverter a pergunta: “tudo o que você acaba de destacar o que pode sugerir à teologia ou, mais genericamente, à catequese e à prática pastoral?”
A pergunta do estudante revela uma orientação teológica que tem dificuldade para sair das nossas salas de teologia (e não só, como direi logo a seguir). Tem as suas raízes na teologia escolástica: aqui a citação de uma autoridade (Escritura, Padres da Igreja, filósofos gregos) servia para corroborar o discurso. Mas essa orientação da quaestio, compreensível nos séculos anteriores ao advento da razão histórica, continuou a permear a teologia mesmo depois, primeiro na controversista e depois, a partir do século XIX, na teologia manualística (os tratados teológicos).
Era a chamada teologia dos dicta probantia que se estruturava, grosso modo, nas seguintes etapas: enunciação da tese, explicatio terminorum, argumento da tese, diferentes posicionamentos sobre a questão abordada, eventual qualificação ou “nota teológica”, possíveis objeções e corolários conclusivos. A tese expressava diretamente o ensinamento do magistério, de modo que a referência às Escrituras e à tradição resultava simplesmente funcional para provar a veracidade do enunciado ensinado pelo magistério.
Se a renovação conciliar deu um novo impulso ao estudo crítico das fontes, não parece que tudo isso tenha tido impacto na pré-compreensão teológica, ou pelo menos naquele "modo de fazer " (Certeau) ou "conhecimento implícito” (Foucault) que faz funcionar, pelo menos em parte, os discursos teológicos e eclesiais.
Dito de forma mais franca, até hoje esse preconceito, que por conveniência chamo de dedutivista, ainda é visível nas modalidades como os nossos estudantes de teologia organizam os seus trabalhos escritos (artigos ou teses). Muitas vezes se nota um certo uso despreocupado das Escrituras, usadas para “fundamentar” a argumentação teológica. Esse uso “não problemático” da exegese bíblica na reflexão teológica revela como os estudantes muitas vezes tomam como certo que a exegese sirva de suporte e possa inserir-se harmoniosamente no tema que se pretende desenvolver [1].
E assim se cai na ingenuidade de transpor para um contexto sistemático ideias e posições que respondem basicamente a acontecimentos eclesiais e histórico-culturais em que surgiram, assumindo como certo que seria possível aparar as diferenças existentes entre as próprias tradições teológicas. Além disso, sobre esse último ponto a produção de caráter informativo teológica das últimas décadas usou e abusou amplamente. Basta ver, só para dar dois exemplos, slogans como: “a teologia e as teologias”, ou as críticas (muito em voga até pouco tempo atrás) às chamadas “teologias do genitivo”.
Essa orientação é sintoma de uma teologia que tem dificuldade para interagir realmente com as instâncias do tempo presente: tanto no que se refere às vivências das pessoas quanto às provocações e aos confrontos com as ciências humanas. Naturalmente, não é possível aqui aprofundar a questão, mas gostaria apenas de recordar como, precisamente no que diz respeito ao confronto com as ciências histórico-sociais, já em 1971 Michel de Certeau constatava que a teologia ainda era "elaborada fora das racionalidades críticas" ou, no máximo, contentava-se “em repetir e divulgar os seus produtos a serviço de convicções inalteradas” [2].
Diria que um certo dedutivismo persiste mesmo fora dos círculos acadêmicos. Aqui, obviamente, os slogans são diferentes, mas a substância é muito semelhante. Vou lembrar apenas alguns: “A doutrina não muda, mas é preciso ter em mente as situações”; “Quais são as implicações pastorais daquilo que foi ouvido ou elaborado no plano teórico”; “Como aplicar essa ou aquela reflexão/teoria à vida quotidiana” etc.
Muitas vezes tais slogans são formulados precisamente por aqueles que não têm grandes simpatias pelo conhecimento teológico. Geralmente, de fato, os detratores da teologia contrapõem a ela a concretude da vida e da atividade pastoral. Segundo eles, essa seria a verdadeira medida de toda manobra eclesial [3].
É uma pena, porém, que, a certa altura, os problemas acabam reaparecendo. Diante de novidades, de estilos de vida, de desafios que vêm do nosso mundo (e aos quais talvez não tenha sido dedicado tempo, leitura, vontade de se formar), os faz-tudo concretos começam a vacilar: com todo o seu fazer… não sabem o que pensar!
E, então, começa-se a invocar o conhecimento (da teologia ou do magistério). Surge a necessidade de saber “como está a situação” (no campo moral ou dogmático) para “aplicar” (jargão horrível, mas ainda em uso) esses conhecimentos (normas, ideias) em termos concretos. São chamados os especialistas (teólogos, cientistas, etc.) percebidos como oniscientes: como eles estudam os mecanismos do mundo, saberão qual tratamento prescrever!
E assim, aquela que deveria ser considerada uma das fontes centrais do conhecimento teológico, ou seja, a experiência (que já é “conhecimento”), vai às favas, pois os primeiros a não considerar realmente a experiência/concretude da vida como central são precisamente aqueles que em palavras consideram a prática pastoral mais importante que o conhecimento teológico.
O curto-circuito aqui brevemente descrito revela uma justaposição atávica entre teoria e prática, onde a primeira (a teoria como campo virgem não contaminado por práticas, instituições e costumes) seria detentora de uma verdade, enquanto a segunda (a prática como pura vitalidade que só pode ter sentido se domesticada pela heteronomia de um pensamento) seria o desenvolvimento concreto da mesma.
Portanto, mesmo fora dos ambientes acadêmicos (mas seria melhor dizer “escolares”) paira essa pré-compreensão (agere sequitur esse?): o conhecimento é imaginado como aquele conjunto de teorias abstratas de natureza normativa destinadas a dar forma a uma prática, que, se não quiser permanecer no campo da pura vitalidade indeterminada, nada mais deve fazer do que se conformar a tal conhecimento.
Também aqui cabe inverter a pergunta: o que nos sugere a experiência de se encontrar com as pessoas? A escuta empática de situações mais díspares? Que valor atribuir a dúvidas e esperanças? O que sugere a indiferença de alguns? O que, em vez disso, as alegrias de outros?
Que atitudes as experiências inesperadas desencadeiam em nós? São essas, creio eu, algumas das perguntas com as quais podemos recalibrar a nossa vida espiritual de cristãos que habitam e são habitados por essa história contemporânea [4]. Diria que estamos em boa companhia, visto que já nos precederam por esses caminhos os místicos e, em geral, as escolas de espiritualidade: “mais do que elaborar uma teoria”, quiseram “mostrar como se possa viver do Absoluto nas condições reais fixadas por uma situação cultural” [5].
[1] Essa caça ao chamado “fundamento bíblico” (ou de outra fonte) deveria, no entanto, questionar os próprios docentes: deveríamos nos perguntar se fomos capazes de transmitir aos estudantes uma abordagem epistemológica mais crítica e uma maior visão historiográfica, a fim de para evitar extrapolações indevidas e/ou incursões ingênuas noutros registos.
[2] La debolezza del credere. Fratture e transiti del cristianesimo, Vita e Pensiero, Milão 2020, p. 174.
[3] E eu não seria honesto se não acrescentasse ao grande grupo de detratores todos aqueles padres que consideram a teologia um incômodo ao qual tiveram que se submeter durante a sua formação no seminário.
[4] Essas parecem-me ser algumas das perguntas que encontramos também no magistério do Papa Francisco.
[5] M. de Certeau, La debolezza del credere, 40.
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A formação teológica | 3. Artigo de Giuseppe Guglielmi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU