17 Agosto 2024
Embora as autoridades tenham criado 216 alojamentos permanentes na capital, as duas semanas dos Jogos Olímpicos foram sinônimo de complicações, deslocamentos forçados e maior solidão para os mais vulneráveis.
A reportagem é de Mattea Battaglia, Véronique Chocron e Louise Couvelaire , publicada por Le monde, 11-08-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
A poucos minutos de caminhada do efêmero Parc des Nations, local emblemático para a celebração dos Jogos Olímpicos, uma fila nada temporária se estende ao longo da Avenue de la Porte-de-La-Villette, no 19º arrondissement de Paris. Na quarta-feira, 7 de agosto, várias centenas de pessoas em situações muito precárias estavam esperando por uma refeição quente.
“Olhem para nós, vejam como a França é bonita e limpa”, murmura Issam (nome de fantasia, como a maioria das pessoas citadas). Há a França das Olimpíadas, a França dos turistas e, em toda parte, há o que preferiríamos não ver, pessoas como eu, para quem nada muda”. Ou quase: no ano em que viveu nas ruas, expulso de um albergue, esse argelino de 46 anos nunca sofreu tantos controles da polícia. “Paris é uma cidade festeira, mas me sinto ainda olhado de cima, ainda mais envergonhado, com minha mochila. Sou alguém que causa medo”, ele se queixa.
O grande refeitório onde a associação La Chorba serve as refeições está lotadíssimo. No final da tarde, uma fila se formou ao longo da lateral do prédio, que faz divisória com a sala de concertos Glazart. A maioria é de homens, principalmente imigrantes sem documentos e sem moradia fixa. Pauline Duhault, uma das responsáveis pela associação, não notou nenhuma diminuição desde o início dos Jogos Olímpicos. “Ainda servimos de 700 a 800 refeições por dia”, diz ela, “mas vemos muitas pessoas novas e muito menos menores desacompanhados”.
Depois que as bandejas são devolvidas, o jantar termina com uma xícara de chá ou café do lado de fora. Na fila, Sadiq, 37 anos, natural da Argélia, passa a noite em uma barraca em Antony, no departamento de Hauts-de-Seine, e “de vez em quando trabalha ilegalmente na construção civil”. Ele também pode testemunhar o aumento dos controles desde o início dos Jogos: “Não tenho documentos, mas a polícia me deixa ir”. O mesmo acontece com Walid, 46 anos, um tunisiano que usa uma camisa xadrez aberta sobre uma camiseta com o título da série Stranger Things, que faz biscates e dorme na rua em Porte de Clignancourt.
Akram, 40 anos, “legalmente residente” e sem moradia fixa desde que se separou de sua esposa no ano passado, dorme perto da Gare de Lyon ou em um parque. Ele está prestes a iniciar uma formação como motorista de empilhadeira. A polícia também nunca o incomodou muito. Essa pobreza discreta, a alguma distância das sedes olímpicas e do centro turístico da capital, não é uma prioridade para a Prefeitura de Polícia de Paris, desde que permaneça fora do radar. “É claro que ainda há pessoas sem-teto em Paris, mas apenas pessoas isoladas e muito invisíveis. Não há grupos de mais de cinquenta sem-teto no mesmo lugar”, diz Paul Alauzy, coordenador da Médecins du Monde e porta-voz do coletivo Le Revers de la médaille, que está soando o alarme sobre o despejo dos precários de Paris em vistas aos Jogos Olímpicos.
A prioridade para as autoridades era controlar os locais mais próximos dos eventos esportivos. Champ-de-Mars, a Esplanade des Invalides, os jardins dos Champs-Elysées... os “grandes marginais” que vivem nas ruas, a maioria deles há anos, se beneficiaram da criação de 216 alojamentos permanentes dentro da própria Paris.
“Para o Paris Plages, nós simplesmente os mudamos de lugar. Aqui, o governo decidiu investir 8 milhões de euros”, explica Christophe Noël du Payrat, diretor do Gabinete do Prefeito da Ile-de-France.
O segundo objetivo foram os grandes acampamentos, particularmente visíveis no espaço público. A prefeitura da região diz que abriga seus ocupantes em várias ondas. Desde abril de 2023, em antecipação aos Jogos, vem transferindo esses sem-teto para “abrigos temporários” na região, a uma taxa de 150 vagas oferecidas por semana, após o desmantelamento ou durante as atividades de sensibilização. No total, no último ano e meio, mais de 11.000 transferências foram orquestradas da Ile-de-France.
Installation d'un campement de sans-abri sur la Place de la Bastille à Paris, notamment de migrants expulsés de leur ancien campement avant le début des Jeux Olympiques.#Paris2024 #JO2024 #JeuxOlympiques pic.twitter.com/FFis0LPw3S
— Luc Auffret (@LucAuffret) August 6, 2024
Pouco antes da cerimônia de abertura, todas as manhãs, durante três dias, foram oferecidas vagas adicionais na região ao redor de Paris para pessoas que anteriormente haviam recusado esse tipo de acomodação temporária na província. Assim, com o passar dos meses, as barracas sob a Pont Marie, nas margens do Sena, perto da Gare d'Austerlitz e ao longo do Canal Saint-Denis, desapareceram.
Em alguns desses lugares, sem que a cidade de Paris ou a prefeitura da Ile-de-France estivessem na origem, as estruturas urbanas agora impedem qualquer realocação: “Mesas de piquenique no Quai de Jemmapes, muros baixos sob uma seção da linha 2 do metrô, blocos de concreto sob a ponte Stains em Aubervilliers (Seine-Saint-Denis) e até mesmo uma estação de bicicletas de Paris 2024 na Galerie de l'Ourcq”, explica o porta-voz da Revers de la médaille. “Paris se tornou um pequeno inferno para os pobres, com o Jardim do Éden das Olimpíadas em seu centro”, conclui Paul Alauzy. E não me venham falar sobre o legado social dos Jogos: cerca de 200 alojamentos permanentes criados quando normalmente há 3.500 pessoas sem-teto em Paris... é um curativo numa hemorragia. Será um legado antissocial, e para essas pessoas precárias será ainda mais difícil depois dos Jogos.”
Em Porte de la Villette, Pauline Duhault, cuja associação La Chorba faz parte do coletivo Le Revers de la médaille, denunciou uma “limpeza social imperdoável”. Para a responsável da associação, a transferência de pessoas em situações muito precárias por causa de um evento esportivo “demonstra falta de consideração por elas, torna-as invisíveis, mascara seus problemas em vez de resolvê-los e as coloca em perigo físico e psicológico, afastando-as dos serviços sanitários e jurídicos, das ajudas alimentares e, às vezes, do trabalho”. Mesmo para as pessoas mais vulneráveis que permanecem na capital, os pontos de referência são perdidos, pois alguns albergues tiveram que se mudar temporariamente por estarem muito próximos de locais das festas. Esse foi o caso de um depósito de bagagens no 2º arrondissement, que ficou fechado por oito dias por causa da cerimônia de abertura. Os cafés da manhã solidários, normalmente servidos em locais culturais no centro de Paris, como o Gaîté-Lyrique, o Musée Carnavalet e o Centre Pompidou, foram transferidos para o 12º arrondissement e viram seu público cair de 200 para 30 pessoas por dia. “A culpa é do deslocamento necessário, mas esses cafés da manhã também eram muito frequentados por menores desacompanhados, que desapareceram desde o início das Olimpíadas”, acrescenta Pauline Duhault.
E ela não é a única a dizer isso: os chamados “menores desacompanhados” ou “menores errantes” (embora nem todos sejam menores), vindos principalmente do Marrocos e da Argélia, não estão mais em Paris. Ou não mais nos locais onde estávamos acostumados a vê-los. Bertrand Kern, prefeito de Pantin (Seine-Saint-Denis), do PS (Partido Socialista), garante que nas ruas da cidade da qual ele é o magistrado-chefe, as poucas dezenas de vendedores ambulantes de cigarros - e muitas vezes de drogas - desapareceram.
O mesmo aconteceu no distrito de Quatre-Chemins, que fica entre Pantin e a vizinha Aubervilliers. Atravessado pela Route Nationale 2, fica em uma das rotas que levam à estrutura olímpica Media Village. Uma área muito usada pela polícia. “Nunca vi tantos policiais em minha cidade, sempre de serviço”, diz o prefeito. Uma presença que aqueles jovens sem-teto evidentemente já haviam previsto. E saíram por vontade própria, uma semana antes da passagem da chama olímpica [em 25 de julho]”, acrescenta.
Essa saída voluntária também foi notada pela associação Hors la rue, que foi contratada pela cidade de Paris para realizar campanhas de sensibilização nos bairros Trocadéro e Goutte-d'Or, no 12º arrondissement, e na esplanada Beaugrenelle, no 15º arrondissement. “Eles começaram a deixar Paris e Seine-Saint-Denis gradualmente desde meados de julho”, confirma Guillaume Lardanchet, diretor da associação. Sua viagem é constelada por deslocamentos entre a França e outras capitais europeias.
Eles foram principalmente para a Espanha, em Barcelona e Madri, para a Bélgica, em Bruxelas, e para a Alemanha, em Berlim. As prefeituras e associações que operam nessas áreas os viram chegar recentemente e informaram a prefeitura de Paris, que espera seu retorno nas próximas semanas. “Antes ou depois das Paraolimpíadas [de 28 de agosto a 8 de setembro], não sabemos”, disseram na prefeitura.
Alguns desses jovens errantes se tornaram mais discretos, mas ainda estão ali: na terça-feira, 6 de agosto, por volta das 15h, algumas dezenas deles se reuniram no bairro da Bastilha, a poucos metros dos enormes anéis olímpicos que adornam a emblemática praça. Com o apoio das associações Utopia56 e Droit au logement, eles participaram da instalação de novas tendas ao lado de um pequeno acampamento autorizado já montado desde o início de junho por pessoas no aguardo de uma moradia social. Algumas dessas tendas foram rapidamente ocupadas por mulheres migrantes, algumas acompanhadas de crianças.
Todos foram dispersados pela polícia por volta das 20 horas, após uma ordem da prefeitura.
No meio, Nadia, 40 anos, segurando seu filho de um ano de idade, fala sobre sua experiência nas ruas desde que um membro de sua família, que a tinha convidado para se juntar a ele em Paris porque ela não conseguia encontrar trabalho em Argel, a “expulsou” há um mês. “Passo o dia circulando com as outras mães, brincando com as crianças nos parques, quando a polícia não nos expulsa. Às vezes durmo na casa das pessoas, às vezes em jardins ou na entrada de um prédio. Tento não chamar a atenção, mas também não ficar sozinha”.
Duas noites fora de casa com um bebê de um mês Ela diz que liga para o 115 sempre que pode: “Eu falo, a pessoa anota tudo, me faz esperar e diz: 'Estamos lotados’. É difícil de entender”. Ania, uma jovem mãe da Costa do Marfim, também pode testemunhar isso: “Eu costumava passar uma semana em um hotel aqui e uma semana ali. Mas há alguns dias nos dizem: 'Com os Jogos, não há lugares'. Está ficando cada vez mais complicado”. Mesmo quando você acaba de sair da maternidade, como foi o caso dela. “Com minha filha de um mês, já passei duas noites ao relento, na área da Place de la Nation. Faz calor, não conseguimos nos lavar todos os dias.... É difícil”. Na noite de terça-feira, 6, para quarta-feira, 7 de agosto, cerca de cem pessoas evacuadas da Place de la Bastille passaram a noite em uma praça e depois embaixo de uma ponte. Antes que lhes fosse oferecida acomodação de emergência na região de Paris, declarou a associação Utopia56.
Há outra face da precariedade extrema que a Paris festiva mantém à distância. Os viciados em drogas, pelo menos alguns deles, também usufruíram de abrigos antes da abertura dos Jogos de Paris: isso é o que a prefeitura regional está destacando e o que muitas associações também reconhecem positivamente. Em abril, maio e julho, pelo menos três despejos - dois em Porte de la Chapelle e um no 19º arrondissement - levaram à colocação de dezenas de usuários de crack em estruturas de acolhimento. Uma delas é o “Assore”, administrada pela associação Aurore, que lhes oferece quartos de albergue e apoio social.
O nordeste da capital não tem mais um “local aberto” onde as drogas são consumidas, como nos tempos do “morro do crack”, limpo em 2019, e do acampamento da Square Forceval, desmantelado no outono de 2022, mas esses precedentes ainda estão frescos na memória de todos e as autoridades garantiram que nenhum local “ao ar livre” fosse reconstituído no período que antecedeu os Jogos, alternando entre ações policiais e operações de assistência.
Oppelia, Aurore e Gaïa concordam que o uso de drogas nas ruas ainda existe. Elas explicam que é “espaçado” e “disperso”, seguindo uma “geografia mutável”. Nossos centros não esvaziaram, mantivemos a continuidade da atividade, como todo verão, adaptando nosso horário de funcionamento”, diz Abdou Ndiaye, diretor da Oppelia Charonne. Alguns usuários chegam mais cansados, mais exaustos, porque há mais controles policiais; adotam estratégias, mudam de lugar, ficam menos tempo no mesmo lugar...”. E há um risco: “O uso clandestino de drogas é empurrado ainda mais para as margens”, ele aponta, “aumentando o risco de overdose quando não há ninguém para ajudar, exacerbando os problemas de saúde mental e isolando ainda mais as mulheres”.
Nessa Paris das sombras, o poder festivo das Olimpíadas às vezes supera a fronteira. “Com esses Jogos, se pode realmente sentir que Paris não dorme, que há energia ao nosso redor”, diz Issam enquanto toma o último gole de chá, cercado por outros frequentadores das distribuições de alimentos do La Chorba. Há alguns dias, ele lembra de ter tentado acompanhar a transmissão do jogo entre França e Egito no Parc de la Villette. “De longe”, diz ele. Mas não ficou muito tempo: “Havia muitas pessoas, mas eu me sentia muito sozinho”.
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Jogos Olímpicos de 2024: a Paris dos “invisíveis” tão perto e tão longe da festa - Instituto Humanitas Unisinos - IHU