06 Agosto 2024
"Sabemos que os grandes eventos, especialmente os esportivos, foram usados pelas ditaduras; as antigas, e mais ainda no século XX – basta pensar em Berlim 1936 ou na Copa do Mundo de futebol na Argentina em 1978. Mas se o esporte é a sublimação da guerra, como Johan Huizinga escreveu em 1938 antes de morrer na prisão nas mãos dos nazistas, então devemos acreditar que uma sociedade melhor pode ser possível justamente por meio do esporte", escreve Paolo Verri, historiador italiano, em artigo publicado por La Stampa, 03-08-2024.
Os cinco anéis olímpicos inventados pelo Barão de Coubertin nunca foram tão atuais: ele os desenhou e coloriu pessoalmente às vésperas de uma guerra no coração da Europa que deixaria mais de 16 milhões de mortos no campo. Vê-las penduradas no original no Garden Museum, de Luxemburgo, na última sexta-feira, poucas horas antes da cerimônia de abertura, como parte de uma exposição dedicada às inovações sociais e tecnológicas que, em 130 anos de história, as Olimpíadas produziram, direta ou indiretamente, é um estímulo para nos fazermos algumas perguntas sérias. Os Jogos Olímpicos são realmente um bom modelo para o planeta? Se sim, por quê? Se não, que alternativa temos? Nenhum instrumento humano é perfeito, e isso sempre depende de como queremos usá-lo.
Sabemos que os grandes eventos, especialmente os esportivos, foram usados pelas ditaduras; as antigas, e mais ainda no século XX – basta pensar em Berlim 1936 ou na Copa do Mundo de futebol na Argentina em 1978. Mas se o esporte é a sublimação da guerra, como Johan Huizinga escreveu em 1938 antes de morrer na prisão nas mãos dos nazistas, então devemos acreditar que uma sociedade melhor pode ser possível justamente por meio do esporte. Nestas horas em que o planeta parece irremediavelmente dividido, não podemos deixar de nos alegrar e sofrer pelo esporte, que talvez seja realmente o único espaço de integração que nos restou.
Paris 2024 coloca debaixo de nossos narizes todas as contradições que devemos tentar sanar: a cerimônia de abertura que segregou a cidade e os espectadores ao vivo não entenderam nada do que foi apresentado depois na TV de maneira muito forte, mas também muito elitista, pelo diretor do evento; os ingressos foram vendidos inicialmente a preços altíssimos e depois puderam ser comprados por valores bem mais acessíveis; a cidadania vaiou Macron, mas em toda a França há telas de TV que transmitem as façanhas dos esportistas como heróis nacionais, e o orgulho está evidentemente às alturas. Os esportes praticados por poucas centenas de apaixonados se tornam populares, mas, mesmo assim, o futebol e o tênis, nos espaços do Parc des Princes e de Roland Garros, atraem dezenas de milhares de espectadores que, acima de tudo, querem festejar, conhecer-se, reencontrar-se.
A questão do turismo também é exemplar: todos pensavam que precisavam gastar somas enormes para ficar em Paris, mas na realidade não é assim, custa menos do que ir a uma cidade onde é realizado um festival normal de ópera e muito menos de um grande show de música pop.
Como podemos lidar com essas contradições? Ou deixamos tudo isso passar, os negócios e as polêmicas, os esforços dos voluntários (que não substituem de forma alguma os funcionários mal pagos, muito pelo contrário) e a capacidade de renovação de organizações complexas, como as que gerenciam a mobilidade ou a comunicação? Os Jogos Olímpicos nos pedem para refletir e não a fazer julgamentos sumários, mas usá-los para planejar melhor nosso planeta futuro: um planeta onde os cinco continentes e os seres humanos que os habitam estejam realmente interligados, onde realmente somos uma só grande nação, dividida em tantos pequenos estados, cada um com sua própria bandeira, e talvez não seja coincidência que a bandeira mais linda seja aquela da equipe dos refugiados.
Há o risco do “tanto faz”, do otimismo barato; mas há também a chance de que, em algumas décadas, não precisemos mais construir novas fronteiras, mas derrubar as existentes; não devemos, a todo custo, ganhar demais com o que produzimos, mas o verdadeiro lucro seria tentar construir uma nova sociedade na qual todos possam se medir e conviver, justamente como acontece no esporte. Talvez, para que isso aconteça, tenhamos que recomeçar a partir de uma economia que esteja a serviço do desenvolvimento social e não o contrário. É por isso que é urgente uma nova Olimpíada na África, o coração do futuro do planeta. Temos os instrumentos para fazer o bem. Talvez tudo o que nos falte seja uma nova imaginação positiva.
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Paris 2024 e as nossas contradições. Artigo de Paolo Verri - Instituto Humanitas Unisinos - IHU