07 Agosto 2024
"Os comentários indignados dos bispos estadunidenses e franceses parecem francamente fora de foco quando nos lembramos de que justamente a Última Ceia é o lugar e o momento do mandamento do amor, o único mandamento da Nova Aliança. E o amor não tem fronteiras", escreve escreve o historiador da arte italiano Tomaso Montanari, professor da Universidade Federico II de Nápoles, em artigo publicado por Il Fatto Quotidiano, 05-08-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Segundo ele, "os políticos "cristãos" que hoje esbravejam contra a Última Ceia queer são os mesmos que brandem rosários enquanto deixam afogar os pobres Cristos no Mediterrâneo. É normal: aqueles que não amam a liberdade da arte não amam nem mesmo as pessoas.
O "debate" político-midiático sobre a pintura viva queer encenada por Thomas Jolly na cerimônia de abertura das Olimpíadas de Paris, deve ser realmente posta numa moldura. Certamente não pela qualidade da performance, que evidentemente não foi memorável, mas pela quantidade de bobagens e solecismos esbanjados pelos comentaristas e, acima de tudo, pelo reflexo condicionado totalitário que emergiu de forma flagrante nos comentários dos "políticos".
Em primeiro lugar, os equívocos iconográficos: "'é a Última Ceia de Leonardo!", "'não, é um banquete dos deuses do século XVII!", "não, do século XIX!", "é pagão!", "não, é cristão!" ... A pretensão da identificação de uma fonte precisa - rigorosamente detectável apenas se estiver no Google Images, veja-se bem - é uma ingenuidade gigantesca, resultado de uma perda de contato com a história da nossa cultura: em outras palavras, uma forma de ignorância radical. Uma ignorância que é a outra face da coação à censura manifestada pela direita europeia, que pensa estar defendendo uma identidade que, simplesmente, não é a que eles acreditam.
Deixe-me explicar. Todos os "banquetes dos deuses" citados nestes dias (a começar por aquele do artista holandês do século XVII Jan Harmensz van Bijlert) são, por sua vez, inspirados na iconografia da Última Ceia cristã e, muitas vezes, justamente na venturosa e respeitada invenção de Leonardo: e certamente não por intenção blasfema, mas por aquela livre circulação das fórmulas iconográficas que sempre permitiu que os artistas hibridizassem a iconografia da mitologia cristã com aquela da mitologia pagã.
Liberdade dos artistas, mas também sensibilidade das tradições figurativas a um dado óbvio para a antropologia das religiões: os nexos profundos entre a figura de Cristo e a dos vários deuses variamente mortos e ressuscitados, de Osíris a Adônis, nos mitos e ritos que se realizam em torno da lua cheia da primavera (incluindo a Páscoa), um tema entregue à modernidade pelo poema fundador de T. S. Eliot, A Terra Desolada. Thomas Jolly é apenas o último, e certamente não o maior, criador de imagens que habita (talvez sem saber) um fluxo de imagens que se encontram, se trocam e se fundem há milênios. Em suma, o cristão e o pagão, o sagrado e o profano, usam os mesmos esquemas figurativo-simbólicos: e não o fazem por acaso.
É realmente engraçado o zelo com que os jornalistas de hoje (por exemplo, em uma página do Open dedicada ao fact-checking) querem demonstrar que Jolly se inspirou em van Bijlert e não em Leonardo, argumentando que havia dezesseis figuras em volta da mesa parisiense e não treze como nos cenáculos...
Esses são os riscos da retórica da checagem de fatos e fake news em tempos de queda vertical da cultura histórica e da cultura humanística em geral. Esse deserto cultural, afinal de contas, é o mesmo que possibilita que um Matteo Salvini seja vice-presidente do Conselho de Ministros da República Italiana. Portanto, não causa surpresa que justamente Salvini tenha sido o primeiro a criticar a cena, escrevendo: "Abrir as Olimpíadas insultando bilhões de cristãos em todo o mundo foi realmente um péssimo começo, caros franceses. Esquálido". O líder da Liga anexava ao tuíte uma comparação fotográfica entre a imagem francesa e a Última Ceia de Leonardo, reproduzida, no entanto, não no original, mas de uma cópia barata à venda na web: uma performance típica do livro Cazzaro verde (de Andrea Scanzi), útil para medir a torpe ridicularidade de alguém que quer defender a todo custo uma tradição cultural que demonstra não conhecer. Carlo Fidanza (aquele das saudações romanas e do "Heil Hitler") esbravejou contra a "palhaçada moral", e seu comparsa húngaro Victor Orbán disse que a obra francesa demonstra "a ausência de moralidade pública" e nada menos que "a perda dos laços metafísicos com Deus, pátria e família".
Não é de se admirar: todos os fascismos têm uma compulsão para o controle da arte (e a questão não é a qualidade da manifestação artística específica que está sendo atacada): eles a censuram, proíbem e, se puderem, a queimam, julgando-a "degenerada". O que é mais surpreendente é a reação das hierarquias eclesiásticas, sempre atentíssimas quando são colocados juntos símbolos cristãos e discursos sobre a homossexualidade (talvez porque a hierarquia queira exclusividade, comenta genialmente um padre amigo meu).
Os comentários indignados dos bispos estadunidenses e franceses parecem francamente fora de foco quando nos lembramos de que justamente a Última Ceia é o lugar e o momento do mandamento do amor, o único mandamento da Nova Aliança. E o amor não tem fronteiras. Por outro lado, os políticos "cristãos" que hoje esbravejam contra a Última Ceia queer são os mesmos que brandem rosários enquanto deixam afogar os pobres Cristos no Mediterrâneo. É normal: aqueles que não amam a liberdade da arte não amam nem mesmo as pessoas: "Ai de vocês, escribas e fariseus hipócritas...! Serpentes, raça de víboras!" (Mateus 23,13 e 33).
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Paris, a Última Ceia olímpica se tornou a ceia dos cretinos. Artigo de Tomaso Montanari - Instituto Humanitas Unisinos - IHU