06 Agosto 2024
A participação da boxeadora argelina Imane Khelif nos Jogos de Paris 2024 está gerando manchetes em todo o mundo, e sobre ela opinaram desde Elon Musk e JK Rowling até Donald Trump e Giorgia Meloni. Muita pressão para uma atleta que, até poucos dias atrás, era conhecida apenas dentro do mundo do boxe feminino.
A reportagem é de Xabier Rodríguez, publicada por El Salto, 05-08-2024.
No domingo, 4 de agosto, Imane Khelif venceu sua luta nas quartas de final na categoria até 66 kg e garantiu uma das medalhas nos Jogos Olímpicos de Paris 2024. Assim que terminou, desceu do ringue, começou a chorar e liberou a tensão. Sua performance está gerando manchetes em todo o mundo, e sobre ela opinaram desde Elon Musk e JK Rowling até Donald Trump e Giorgia Meloni. Muita pressão para uma atleta que, até há dois dias, era conhecida apenas dentro do mundo do boxe feminino.
Que o boxe feminino poderia gerar polêmica nesses Jogos de Paris 2024 já era previsível. Afinal, a Associação Internacional de Boxe (AIBA, na sigla em inglês) retirou no ano passado as licenças tanto de Imane Khelif quanto da taiwanesa Lin Yu-Ting, mas o Comitê Olímpico Internacional (COI) as devolveu ao cumprirem com os critérios necessários para participar em Paris 2024.
Que a ultradireita italiana poderia usar essa polêmica como um megafone para suas ideias machistas era previsível desde que se soube que a argelina Khelif enfrentaria a italiana Angela Carini. Isso ficou evidente nos comentários de alguns ministros italianos e do próprio Matteo Salvini antes do início da luta das oitavas de final dos Jogos Olímpicos.
No entanto, não era tão previsível que Carini abandonaria a luta entre lágrimas aos 46 segundos, mas esse fato ajudou a amplificar a dimensão da polêmica. O restante foi proporcionado pelos numerosos boatos espalhados nas redes sociais, que rapidamente espalharam a versão de que um homem havia espancado uma mulher em uma luta de boxe nos Jogos Olímpicos.
A polêmica poderia ter sido encerrada quando o porta-voz do COI, Mark Adams, explicou que "a boxeadora argelina nasceu mulher, foi registrada como mulher, viveu sua vida como mulher, lutou como mulher e tem um passaporte de mulher". Ficou claro que Imane Khelif é uma mulher e que cumpre todos os requisitos para competir na categoria até 66 kg dos Jogos Olímpicos; no entanto, ainda há quem tente prolongar a polêmica e dar mais visibilidade a teorias que se provaram falsas.
A AIBA tem mantido um conflito com o COI há anos, que resultou na primeira exclusão de uma federação internacional na história do movimento olímpico e na organização do torneio olímpico pelo próprio COI. As acusações contra a AIBA incluíam erros em decisões de arbitragem e irregularidades contábeis na federação, embora o conflito também envolva outras questões políticas, relacionadas aos vínculos entre o presidente da AIBA, o russo Umar Kremlev, a empresa Gazprom e o presidente Putin.
Nesse clima, a AIBA expulsou no ano passado Khelif e Yun-Ting do Campeonato Mundial de Boxe Feminino por "não cumprirem com os critérios de elegibilidade para participar da competição feminina", conforme informado pela AIBA em um comunicado, no qual também é explicado que "as atletas não foram submetidas a um exame de testosterona, mas a um teste independente e reconhecido, cujos detalhes são mantidos em sigilo. Este teste indicou de maneira conclusiva que ambas as atletas não cumpriam os critérios de elegibilidade necessários e foi determinado que elas tinham vantagens competitivas sobre outras competidoras femininas". A AIBA não explicou que tipo de testes foram realizados nas boxeadoras, nem os resultados, apesar de afirmar que demonstravam suas vantagens competitivas.
Quando o COI decidiu assumir a organização do torneio olímpico, as duas boxeadoras foram novamente admitidas ao cumprirem todos os requisitos para participar dos Jogos Olímpicos. A partir desse momento, sua participação em Paris foi afetada pelo conflito entre a AIBA e o COI. Após a luta entre Khelif e Carini e a subsequente polêmica, a AIBA anunciou que concederia à italiana o mesmo prêmio, 50.000 dólares, que será dado à vencedora da medalha de ouro; uma decisão que desafia a autoridade e os critérios do COI. Thomas Bach, presidente do COI, havia explicado recentemente: "Nunca houve dúvidas de que são mulheres. O que vemos agora é que há quem queira se apropriar da definição do que é uma mulher".
Não é a primeira vez que uma atleta com características físicas que não se encaixam nos padrões de feminilidade tem sua identidade sexual questionada ao se destacar no esporte. Isso aconteceu com a atleta sul-africana Caster Semenya, campeã mundial e olímpica dos 800 metros, que viveu um calvário desde que suas performances esportivas despertaram dúvidas entre suas rivais. Assim como Khelif, Semenya é uma mulher intersexual e, portanto, possui características sexuais que não se encaixam no conceito binário masculino-feminino. Tanto no caso de Semenya quanto no de Khelif, sua identidade de gênero sempre foi reconhecida como mulher.
A atleta moçambicana María Mutola, também campeã mundial e olímpica dos 800 metros, é intersexual e, assim como Semenya e Khelif, enfrentou numerosos problemas para competir normalmente e teve sua legitimidade para competir na categoria feminina questionada.
Em 2018, a Federação Internacional de Atletismo (atualmente conhecida como World Athletics) decidiu exigir que as mulheres mantivessem seus níveis de testosterona abaixo de cinco nanomoles por litro. Caso produzam naturalmente quantidades superiores, não poderão competir. Após essa decisão, Semenya se recusou a se medicar, processou a World Athletics no Tribunal Europeu dos Direitos Humanos e atualmente aguarda a sentença final. Segundo seu advogado, a atleta teve que escolher entre "salvaguardar sua integridade e dignidade pessoal sendo excluída da competição" ou "submeter-se a um tratamento nocivo, desnecessário e supostamente corretivo".
Essa decisão da World Athletics contrasta com a evidência de que muitos dos melhores atletas masculinos do mundo se beneficiam de uma vantagem natural sem serem questionados por isso. Pelo contrário, sempre se destacou a capacidade de salto de Michael Jordan, a envergadura dos braços de Michael Phelps ou a capacidade pulmonar de Miguel Indurain. Também não se questionou o tratamento para crescimento que permitiu a Lionel Messi crescer alguns centímetros fundamentais para se tornar o melhor jogador de futebol da história.
Em 1999, a tenista suíça Martina Hingis declarou na Austrália que sua rival "é meio homem" e acrescentou que "estava lá com sua namorada". Essas declarações machistas e homofóbicas referiam-se à francesa Amélie Mauresmo, que havia surpreendido ao chegar aos 19 anos à final do Australian Open. Hingis acabou vencendo aquele torneio. Mauresmo sofreu zombarias e comentários ao longo de sua carreira por sua orientação sexual e sua musculatura desenvolvida, mas não se questionou sua capacidade de competir.
Em contraste, a argelina Khelif, a moçambicana Mutola e a sul-africana Semenya sofreram a incompreensão da AIBA e da World Athletics, incapazes de aceitar que uma mulher possa ter uma vantagem competitiva natural que não corresponde aos traços tradicionalmente associados à feminilidade. E isso aconteceu devido ao racismo dessas instituições esportivas, que não aceitam a diversidade humana e tentaram limitar artificialmente essas vantagens das quais se beneficiam de forma natural.
Na próxima terça-feira, Imane Khelif enfrentará nas semifinais a tailandesa Suwannapheng por uma vaga na final olímpica até 66 kg. Ela sabe que terá novamente todos os olhares sobre ela e que sua condição será novamente discutida. Uma medalha de ouro olímpica poderia reviver a polêmica, mas também poderia se tornar uma oportunidade para normalizar a intersexualidade e a diversidade dos corpos humanos.
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A luta pela medalha olímpica de Imane Khelif frente aos preconceitos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU