21 Mai 2024
"A defesa da multipolaridade será cada vez mais a bandeira dos países e dos povos que se insurgem neste momento contra o imperium militar global exercido pelo Ocidente", escreve José Luís Fiori, professor emérito da UFRJ e autor, entre outros livros, de O poder global e a nova geopolítica das nações (Boitempo).
Em outubro de 2023, ao voltar de uma viagem relâmpago a Israel para dar apoio ao primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, o presidente norte-americano, Joe Biden afirmou, num discurso feito no Salão Oval da Casa Branca, que “o mundo está vivendo uma virada histórica, porque a ordem mundial do pós-Segunda Guerra perdeu fôlego, e é necessário construir uma nova ordem”. [i]
Quase no mesmo momento, na comemoração do décimo aniversário da “Nova Rota da Seda”, realizada em Pequim nos dias 17 e 18 de outubro de 2023, os presidentes Xi Jinping, da China, e Vladimir Putin, da Rússia, defenderam em conjunto a necessidade de “uma nova ordem mundial que respeite a diversidade das civilizações”. [ii] Um pouco antes, na véspera da 18ª Cúpula do G20, realizada em Nova Delhi, em setembro de 2023, o primeiro-ministro indiano Narendra Modi publicou um artigo em vários jornais do mundo propondo “uma nova ordem mundial pós-pandêmica”.
Por fim, de forma ainda mais categórica, Joseph Borrel, chefe da política externa da União Europeia, declarou em fevereiro de 2024, “que a era do domínio global do Ocidente chegou ao fim”. [iii] Uma manifestação e um reconhecimento categórico dos líderes das cinco principais potências do mundo. No entanto, por trás desse aparente consenso escondem-se grandes divergências conceituais e políticas.
Para começar, eles não estão falando necessariamente da mesma coisa, nem do mesmo período histórico, porque existiram pelo menos duas grandes “ordens” ou “ordenações mundiais” que se sucederam, a contar do fim da Segunda Guerra Mundial. A primeira vigorou entre 1945 e 1991 e foi apoiada pelas duas potências que saíram vitoriosas da Segunda Guerra Mundial: EUA e URSS.
Foi, no entanto, arquitetada de fato e liderada pelos EUA, graças à sua supremacia atômica conquistada em Hiroshima e Nagasaki, e graças à sua supremacia econômica consagrada pelos Acordos de Bretton Woods, que fizeram do dólar americano a moeda de referência da economia capitalista mundial. Fazem parte desta primeira “ordem mundial” quase todas as instituições multilaterais surgidas a partir da criação das Nações Unidas, em outubro de 1945, ao lado do Fundo Monetário Internacional, do Banco Mundial, da Organização Mundial do Comércio, da Organização Mundial da Saúde, para citar as mais importantes.
A crise dessa “ordem mundial”, entretanto, começou já na década de 70 do século passado, quando os EUA abandonaram os Acordos de Bretton Woods e se descomprometeram, unilateralmente, com relação à paridade entre o dólar e o ouro que havia sido definida por eles mesmos, em 1944. O abandono do “padrão dólar” veio junto com a primeira grande crise econômica do mundo capitalista do pós- Segunda Guerra Mundial, que atravessou as décadas de 1970 e 1980 e foi marcada por sucessivos “choques do preço do petróleo” e aumentos da taxa de juros norte-americana.
Houve, ainda, a derrota dos EUA na Guerra do Vietnã, em 1973, e foi por isto que naquele momento muitos analistas internacionais falaram, pela primeira vez, de uma “crise terminal da hegemonia norte-americana”. Mas logo em seguida, como resposta a essa crise, os EUA lançaram uma ofensiva militar contra a URSS, que veio acompanhada pela grande “revolução conservadora” dos anos 1980, que se desfez dos compromissos “keynesianos” e “desenvolvimentistas” do pós-Segunda Guerra Mundial e abriu as portas para o avanço de um novo projeto econômico global liderado pelas potências anglo-saxônicas: o neoliberalismo, que avançou como um tufão, ajudando a derrubar o Muro de Berlim e acabando com a bipolaridade estratégica da Guerra Fria.
Na década seguinte, os EUA se aproveitaram de sua nova posição de poder e assestaram um último e definitivo golpe na “ordem multilateral” que eles haviam criado, no momento em que atacaram a Iugoslávia, em 1999, sem autorização prévia do Conselho de Segurança das Nações Unidas. A mesma coisa que voltariam a fazer em 2003, quando invadiram o Iraque sem contar com o aval do Conselho de Segurança e, desta vez, com a oposição da maioria absoluta da Assembleia Geral da ONU. Foi assim que se encerrou, de forma definitiva e melancólica, a primeira “ordem mundial hegemônica” do pós-Segunda Guerra Mundial; e foi nesse momento, e não mais tarde, que o Conselho de Segurança da ONU perdeu toda e qualquer eficácia e legitimidade, por obra de seus próprios criadores.
Nascia então uma nova “ordem mundial”, sustentada agora pelo poder unipolar dos EUA, conquistado por meio de suas vitórias na Guerra Fria (1989/91) e na Guerra do Golfo (1991/92). Nessa nova ordem unipolar, os EUA se reservaram desde o início o direito unilateral de fazer “guerras humanitárias”, e de declarar e atacar o “terrorismo” em qualquer lugar do mundo, segundo seu exclusivo arbítrio, e já sem nenhuma preocupação com as Nações Unidas e seu Conselho de Segurança, que foram sucateados literalmente em 1999.
Este novo poder global unipolar dos EUA potencializou ainda mais o projeto econômico neoliberal de abertura e desregulação dos mercados e globalização das finanças mundiais, que passaram a ser geridas, em última instância, pelo Banco Central dos EUA e seu sistema SWIFT de intermediação financeira e pagamentos internacionais.
Esta segunda “ordem mundial” – unipolar e neoliberal – do pós-Guerra Fria começa a perder fôlego a partir da grande crise financeira de 2008, que abalou a economia americana e atingiu em cheio a economia europeia. Foi ali que começou o chamado processo da “desglobalização” da economia mundial, que viria a se acelerar com a pandemia de covid-19, com a guerra econômica dos EUA contra a China e, sobretudo, com o início da Guerra da Ucrânia, em 2022.
Mais ainda, depois do fracasso da aposta ocidental numa verdadeira guerra de sanções econômicas contra a Rússia, que não alcançou seu objetivo e ainda por cima produziu um efeito bumerangue sobre a economia europeia, que entrou num profundo e prolongado processo de estagnação econômica.
Muito antes de tudo isto, entretanto, as “guerras sem fim” dos EUA, que começaram no final do século XX, desvelaram aos poucos uma “dimensão oculta” dessa nova ordem mundial, escondida por trás da retórica da globalização: a construção de uma infraestrutura militar global, com mais de 700 bases militares distribuídas ao redor de todo o mundo, e controlada diretamente pelos EUA, mesmo no caso de organizações regionais como a OTAN.
Ou seja, aos poucos foi ficando mais claro que a condição sine qua non do projeto da globalização econômica, sem limites nem fronteiras, era a instalação de uma nova espécie de “império militar global”, um segredo que foi guardado a sete chaves pela retórica missionária do neoliberalismo defendido por EUA, Inglaterra e seus sócios do G7. E é precisamente esse projeto militar global dos EUA e da OTAN que está sendo desafiado pela ascensão militar da China, pela resistência do Irã e pelo limite que lhe foi imposto pela Rússia, primeiro na Geórgia, em 2008, e depois na Ucrânia em 2022. E é essa ordem mundial “imperial cosmopolita” que está “perdendo fôlego” e já entrou em acelerado processo de desintegração.
Assim mesmo, quando Joseph Borrel declara que “a era do domínio Ocidental acabou”, ele está se referindo a outra crise, muito mais complexa, profunda e prolongada: a crise do poder e da hegemonia ocidental no sistema internacional que os europeus conquistaram e dominaram, de forma quase absoluta, nos últimos 300 anos.
Para se ter uma ideia aproximada do tamanho e do impacto dessa crise, basta lembrar que no início do século XX, logo depois da Primeira Guerra Mundial, o Império Britânico tinha uma extensão de 35,5 milhões de km2 e ocupava 23,84% da superfície terrestre. Junto com os impérios coloniais de França, Bélgica, Portugal e Holanda, o Ocidente europeu chegou a dominar cerca de 40% do território e da população mundiais.
Hoje, entretanto, a Inglaterra está ameaçada de perder seu domínio sobre a Escócia e a Irlanda, por onde começou de fato o Império Britânico. A França está sendo expulsa da África e já não é mais do que um simulacro da potência imperial que foi no passado, e o mesmo deve ser dito dos demais Estados europeus que sobrevivem escondidos atrás da proteção atômica da OTAN. Sendo que, nas últimas duas décadas, os próprios Estados Unidos vêm sofrendo sucessivas derrotas militares e fracassos políticos no Iraque, na Síria, no Afeganistão, na Ucrânia, para não falar de sua própria “guerra civil-eleitoral” interna. Ao mesmo tempo, assistem paralisados ao desgaste progressivo de sua credibilidade moral, graças ao apoio militar e financeiro que deram ao massacre do povo palestino da Faixa de Gaza.
Como consequência desses sucessivos reveses, o “velho Ocidente”, que era considerado sinônimo da “comunidade internacional” até bem pouco tempo atrás, vem perdendo força e legitimidade, e hoje não tem mais capacidade de impor seus critérios, seu arbítrio e poder sobre o resto do mundo. Mesmo assim, não há o menor sinal de que este “Ocidente reduzido” esteja disposto a abrir mão do poder que acumulou nos últimos séculos. Além disso, a história ensina que as grandes potências e os impérios não costumam ceder seu poder sem resistir, sem guerrear.
É muito comum ouvir políticos e analistas internacionais afirmarem que o sistema internacional está transitando de uma “ordem mundial unipolar e globalizada” para uma nova “ordem mundial multipolar e desglobalizada”.
Mas esta equação aparentemente simples esconde uma enorme complexidade, porque a palavra “transição” sugere linearidade, direção e conhecimento do lugar de onde se está partindo e do lugar para onde se está indo, e hoje não está claro nem o ponto em que se encontra a transformação do sistema mundial, nem muito menos o que viria a ser uma nova ordem mundial multipolar.
Com relação ao ponto de partida dessa “transição”, o que se pode dizer é que estamos assistindo a um processo de implosão, fragmentação e decomposição de uma ordem estabelecida, e esse processo está se dando de forma desordenada e conflitiva. O mundo não está no fim de uma guerra com ganhadores claros; pelo contrário, está no meio de duas guerras, sem perspectiva de acabar, envolvendo múltiplos atores, em pleno combate, e sem nenhuma disposição de negociar a paz.
Em termos muito amplos, pode-se dizer que, de um lado, se encontram várias potências regionais em “ascensão”, e de outro, o bloco das “potências ocidentais” que resistem a dar passagem a essas novas potências regionais ou globais, e não se dispõem a abrir mão da supremacia mundial que conquistaram e exerceram nos últimos 300 anos, pelo menos. Esse enfrentamento está se dando de forma cada vez mais direta e violenta, sem regras ou grandes preocupações com a ética internacional, e sem respeito às “regras” da “economia de mercado”, através da guerra, ou através da manipulação política da moeda, das finanças e da concorrência econômica.
Não estamos vivendo um momento de vitória e submissão, nem de negociação e acordo entre países que competem entre si e que se dispõem a negociar uma nova ordenação hierárquica do poder mundial. Pelo contrário, o mundo está em plena conflagração e nenhum país ou conjunto de países tem hoje capacidade de impor sua vontade sobre o resto do mundo, e não existe o menor consenso sobre eventuais caminhos de negociação, por mais que os líderes das grandes potências mundiais falem da necessidade de uma nova ordem mundial.
O que existe de fato é guerra, militarização, decomposição econômica e crise social, e uma perda generalizada das referências éticas construídas pelo Ocidente nos últimos séculos. Sobretudo depois que os Estados Unidos e seus aliados europeus caíram prisioneiros da armadilha que eles mesmos montaram na Palestina, sendo obrigados a armar e sustentar o Estado de Israel, mesmo sabendo do genocídio que está sendo praticado contra o povo palestino na Faixa de Gaza. Uma armadilha que vem corroendo a ideia da “excepcionalidade moral” do Ocidente, e erodindo os fundamentos éticos de sua hegemonia cultural dentro do sistema internacional.
No entanto, com relação ao “ponto de chegada” dessa “transição”, não existe o menor consenso nem a menor ideia do que seja ou do que poderá vir a ser exatamente uma nova “ordem mundial multipolar”. O único que sabemos do ponto de vista puramente formal é que uma ordem multipolar não deverá ser igual à uma ordem “bipolar” como a que vigorou durante a Guerra Fria, entre 1945 e 1991; nem deverá ser igual à ordem “unipolar”, que vigorou depois do fim da União Soviética, e da vitória norte americana na Guerra do Golfo, em 1991/92.
Mas não dá para ir muito além desta especulação formal sem conhecer o resultado das guerras que estão em curso, e sem poder definir quais serão os membros do “clube das grandes potências” dessa nova ordem multipolar. Ninguém duvida de que este clube incluirá, pelo menos, EUA, China, Rússia, Índia e, talvez, uma União Europeia modificada, militarizada e recentralizada a partir da Alemanha. Ainda assim, não se sabe se haverá hierarquia e qual será, entre esses países? Se haverá alguma hegemonia interna, ou se todos aceitariam uma configuração horizontal entre poderes considerados equivalentes e equipotentes?
É bem possível que esta nova ordenação mundial fosse “mais democrática” do que a ordem unipolar que está sendo destruída, mas não há garantia de que não se transforme rapidamente numa “ordem oligopólica”, monopolizada por um grupo de no máximo seis ou sete grandes potências. Assim mesmo, não é impossível imaginar que pudesse haver também um pacto ou entente entre os Estados Unidos e a China, as duas maiores potências do grupo, desde que elas conseguissem administrar suas divergências e competição à morte, no campo tecnológico.
Neste caso, o mundo poderia estar se aproximando da hipótese clássica de Karl Kautsky sobre a possibilidade de um “superimperialismo”, como aconteceu com os deuses pacificados por Júpiter após serem reincluídos no Olimpo. De qualquer maneira, mesmo no plano puramente hipotético, é muito pouco provável que isto pudesse acontecer, considerando o grau e a intensidade da competição atual entre as duas superpotências.
Tudo isto são especulações, obviamente, porque é impossível prever o que acontecerá. Mas uma coisa é absolutamente certa: é impossível que o mundo transite de forma pacífica e harmoniosa na direção desta multipolaridade. Pelo contrário, o que se vê pela frente é uma disputa sem fronteiras e sem limites de nenhum tipo entre potências em ascensão e um grupo de outras potências que dominaram o mundo nos últimos três séculos e que não querem abrir mão de seu poder mundial.
Neste quadro, não há a menor possibilidade que ocorra algo do tipo que algumas teorias chamam de “transição hegemônica”, com substituição regular e periódica de uma potência líder por outra que assumiria o comando econômico e militar do mundo, em lugar de sua predecessora. A China não tem pretensão nem deve assumir um lugar igual ao que é ocupado hoje pelos Estados Unidos dentro do sistema mundial. A Rússia e a Índia não têm esta pretensão, nem dispõem dos recursos para exercer a função de “polícia militar” do mundo. Mas com certeza, nenhum desses países, e vários outros, como Irã, Turquia, Indonésia, Brasil e África do Sul, não estão dispostos a seguir aceitando o arbítrio das antigas potências ocidentais.
Balanço feito, o certo é que não há o menor espaço e disposição de negociação entre as grandes potências, muito pelo contrário. Por outro lado, não há o menor espaço para uma “guerra mundial” que não venha a ser atômica, e por isso o mais provável é que ela siga sendo transferida ou protelada. O mundo está mudando numa velocidade muito grande, e a ordem mundial do pós-Guerra Fria chegou ao fim. Mas o “Ocidente” deve resistir, e tem poder para tanto; e seja como for, permanecerá dentro do sistema mundial como um dos seus polos mais poderosos do ponto de vista econômico, tecnológico e militar.
Nesta hora, olhando para o futuro, o que o se consegue ver, para além dos conflitos imediatos, é um mundo atravessando um período muito longo de turbulência, instabilidade e imprevisibilidade, com uma sucessão de conflitos e guerras locais. E se for isto que se está chamando de “transição para a multipolaridade”, então é melhor “apertar os cintos”, porque a trepidação vai ser intensa, e deve se prolongar por muitos anos ou décadas.
De qualquer maneira, durante este tempo de trepidação, que pode se prolongar até a segunda metade do século XXI, a defesa da multipolaridade será cada vez mais a bandeira dos países e dos povos que se insurgem neste momento contra o imperium militar global exercido pelo Ocidente, durante os últimos 300 anos da história da Humanidade, mesmo que não saibam exatamente, neste momento, o que virá a ser esta ordem multipolar do futuro.
Publicado originalmente na revista Observatório Internacional do Século XXI, n°. 5.
[i] Reuters, UOL Noticias, 23/10/2023.
[ii] Ministry Foreign Affairs of the People’s Republic of China, 18/10/2023, fmprc.gov.br “A nova ordem pós-pandemia”, 07/09/2023. Disponível aqui.
[iii] “Era do domínio global do ocidente chegou ao fim”, 26/02/2024. Disponível aqui.
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A “multipolaridade” e o declínio crônico do Ocidente - Instituto Humanitas Unisinos - IHU