Encerrando o ciclo de estudos "Transição Energética e o Colapso Global. Limites e possibilidades", Svitlana Matviyenko discute terrorismo energético, ciberguerra e atmoterrorismo neste que é um dos mais sangrentos conflitos do século XXI
Uma guerra sempre é sinônimo de morte, destruição e muita, mas muita dor e marcas que nem o tempo é capaz de apagar. Desde que eclodiu, em fevereiro de 2022, a guerra entre Rússia e Ucrânia acumula números superlativos de vítimas. Só para se ter ideia, há três meses a Organização das Nações Unidas – ONU, estimava que 8,5 mil civis ucranianos tinham morrido no conflito. O número revela apenas uma parte dos mortos. O pior é que esta guerra, para além das atrocidades e cenas dantescas que já conhecemos de outras, tem revelado outras estratégias ainda mais destrutivas, como os drones que caçam qualquer forma de vida, gestadas pela tecnologia do século XXI. Mas muitas outras ainda são gestadas pela tecnologia juntamente com a sordidez humana.
Há também a tática da fome. Com golpes de canetas e ordem a militares que determinam que grãos não entraram ou saíram de determinados países, o staff bélico vai tecendo seus planos. Enquanto isso, gente que está há quilômetros morre de fome – para não falar daqueles que também morrem de fome desde dentro do conflito.
Diante de tanto terror, parecemos realmente estar vivendo um filme, como bem observa Raniero La Valle, jornalista e ex-senador italiano, em artigo reproduzido pelo IHU. “Pensávamos que Dr. Fantástico fosse apenas um filme; não é assim. Putin errou seus cálculos, ele queria fazer uma ‘operação militar especial’ e não uma guerra, mas o país atacou e toda a linha adversária, que se tornou cada vez mais forte, preferiu a guerra e a quer até a vitória”, observa. Enquanto isso, do lado ucraniano, o Ocidente entrega bombas de fragmentação como quem dá um canivete para um bebê brincar. “As bombas [de fragmentação ou cluster] possuem uma consequência semelhante, porém mais perigosa, que as minas terrestres antipessoal”, revela o professor Cristian Wittmann, em entrevista exclusiva ao IHU.
Esta sanha por vitória traz consequências a todo mundo. Nos últimos meses, o IHU tem discutido essas consequências. Porém, mais especificamente dentro do “Ciclo de estudos Transição Energética e o Colapso Global. Limites e possibilidades”, iniciado em maio, analistas do mundo todo têm chamado a atenção para que o conflito pode, em muito, acelerar a crise energética e levar a um colapso global. Simon Pirani, escritor, historiador e pesquisador de energia, professor honorário da Escola de Línguas e Culturas Modernas da Universidade de Durham, no Reino Unido, foi um deles. Em sua conferência dentro do Ciclo promovido pelo IHU, Pirani observou que, triste e ironicamente, enquanto o conflito acendia a luz vermelha da crise energética, houve quem lucrasse. “Somente as cinco maiores empresas petrolíferas ocidentais tiveram lucro de 134 bilhões de dólares em 2022. Há muito mais: uma pesquisa recente dos países exportadores do Golfo estimou que o superávit em conta corrente desses países, em 2022 foi, no total, mais de 600 bilhões de dólares”, revelou.
Confira ainda o artigo de Simon Pirani publicado no Cadernos IHU ideias
Pirani ressalta que não se pode, mesmo diante da ameaça de crise energética, perder de vista que “os efeitos mais graves da guerra não foram sobre a energia. Foram o custo humano para milhões de pessoas que fugiram da Ucrânia como refugiados e o impacto nos mercados de alimentos”. No entanto, havemos de reconhecer que essas pessoas também estão submetidas a essas novas estratégias que ameaçam a vida no planeta.
Assim, para aprofundarmos essa reflexão, a última atividade do “Ciclo de estudos Transição Energética e o Colapso Global. Limites e possibilidades” se volta novamente ao conflito entre Rússia e Ucrânia para debater as estratégias de terrorismo energético, ciberguerra e atmoterrorismo presentes no conflito. No próximo dia 16 de agosto, quarta-feira, às 10h, a professora Svitlana Matviyenko, da Simon Fraser University, do Canadá, proferirá a palestra intitulada “Guerra russa na Ucrânia. Terrorismo energético, ciberguerra e atmoterrorismo”. O evento ocorrerá por videoconferência, com tradução simultânea, transmitido pelos canais do IHU nas redes sociais.
Professora assistente de Análise Crítica de Mídia na Escola de Comunicação da Simon Fraser University, no Canadá, sua pesquisa e ensino são focados em informação e guerra cibernética; economia política da informação; mídia e meio ambiente; estudos de infraestrutura. Ela reflete sobre práticas de resistência e mobilização, militarismo digital, desinformação e desinformação, história da internet, cibernética, psicanálise, pós-humanismo, a tecnopolítica soviética e pós-soviética, e culturas nucleares, incluindo a Zona de Exclusão de Chernobyl.
Svitlana Matviyenko (Foto: Biennale Warszawa)
É coeditora de duas coleções, The Imaginary App (MIT Press, 2014) e Lacan and the Posthuman (Palgrave Macmillan, 2018). Como coautora, escreveu Cyberwar and Revolution: Digital Subterfuge in Global Capitalism (Minnesota UP, 2019), ganhou o prêmio de 2019 da seção Science Technology and Art in International Relations (STAIR) da International Studies Association e o prêmio da Gertrude J. Robinson da Canadian Communication Association, de 2020.
O governo do presidente ucraniano Volodymyr Zelensy tem acusado o presidente russo Vladimir Putin de cometer terrorismo energético para intimidar a Ucrânia durante a guerra. Em um dos casos, a Rússia teria atacado a infraestrutura de energia do país, deixando 4,5 milhões de habitantes desabastecidos. Sem energia, além de ficarem às escuras, a população ficou em pânico com medo de não ter como enfrentar as baixas temperaturas no inverno. Não obstante, enquanto a Rússia e a Ucrânia se digladiavam, a Europa inteira ficou temerosa pela falta de combustíveis e de, em decorrência do altíssimo custo, não ter como atravessar o inverno.
O terrorismo energético é justamente isto: atacar fontes de energia para desestabilizar o inimigo que, além do conflito bélico propriamente dito e suas consequência, tem de lidar com a ameaça de desabastecimento. O caso da Rússia e da Ucrânia é ainda mais complexo porque envolve toda a geopolítica global que, por medo do desabastecimento, especialmente de gás, atualiza o confronto entre Ocidente e Oriente. Embora essa guerra tenha acelerado o debate sobre a transição energética, a dependência de combustíveis fósseis e a ameaça de desabastecimento, ela não respeita o tempo das longas rodadas de negociações em encontros internacionais.
É a guerra que não ocorre com armas físicas, mas via meios eletrônicos no ciberespaço. Com um espectro bem amplo, pode consistir em ataque a sistemas de organismos estatais ou mesmo colapsar organizações privadas que podem reverberar em caos social. Por ser bem amplo, o conceito é trabalhado de diferentes formas por muitos autores. Mas compreende-se que uma autêntica ciberguerra não efetivamente chegou a ocorrer. Isso porque, de um ponto de vista legal, segundo o enquadramento da conflitualidade no âmbito do Direito dos Conflitos Armados ou Direito Internacional Humanitário, tais situações poderão surgir ligadas a conflitos políticos, econômicos ou militares no mundo real, ou seja, ocorrer ao mesmo tempo de uma conflitualidade física, ou de forma totalmente autônoma.
Porém, no caso do conflito entre Rússia e Ucrânia, especialistas têm indicado que já podemos estar vivendo uma ciberguerra. Isso porque tem gerado grande repercussão no ambiente cibernético. A assertiva não é unânime entre especialistas, mas quem defende que já vivemos nesse ambiente alega que os alvos são sempre difusos e, por vezes, até difíceis de serem mapeados e apreendidos. Além disso, os especialistas alertam que os “atentados digitais”, além de terem potencial para gerarem o caos, podem se configurar como uma escola para ciberguerras do futuro.
E como gerar ainda mais pânico e caos também pode ser enquadrado como estratégia de ciberguerra, há quem inclua a produção e difusão de notícias falsas como uma das estratégias nesse tipo de ataque. No Brasil, especialmente depois das disputas polarizadas de eleições recentes e da escalada de ódio na sociedade, não chega a ser absurdo conceber que a onda de fake news tem trazido efeitos danosos, inclusive para o próprio sistema democrático, tanto quanto ambientes bélicos como tradicionalmente conhecemos.
O conceito parte da obra “Tremores de ar”, de Peter Sloterdijk (Temblores de aire, en las fuentes del terror. Valencia: Pre-textos, 2003). Segundo o doutor em Filosofia e professor do Instituto de Filosofía de la Pontificia Universidad Católica de Valparaíso, no Chile, Adolfo Vásquez Rocca, atmoterrorismo emerge da indagação acerca da natureza de origens do terrorismo moderno. Seguindo com sua análise de Sloterdijk, a prática do terrorismo de nosso tempo, o conceito de desenho produtivo e a reflexão em torno do meio ambiente são como organizadores de um estilo de morte, que é o modelo atmoterrorista e a guerra do gás. Assim, ele toma do meio ambiente a necessidade básica de respirar para viver e promove uma agressão que nega essa necessidade promovendo uma asfixia.
Rocca detalha, segundo Sloterdijk, que “o terror contemporâneo (o "atmoterrorismo") se constitui sobre bases pós-militares já que não está dirigido contra unidades específicas, mas o seu principal objetivo é agredir o contínuo meio ambiental de coisas e pessoas que torna possível a vida das populações”. Logo, pode-se usar de estratégias para literalmente tomar o ar e provocar asfixias, como através de uso de gases e contaminação do oxigênio. Mas pode, também, promover outro tipo de asfixia, como a econômica, em que se inviabiliza qualquer possibilidade de subsistência. “Sloterdijk descreve assim o horror próprio da nossa época como ‘uma manifestação modernizada de saber exterminador (...) em razão da qual o terrorista compreende as suas vítimas melhor do que elas se compreendem a si próprias’”, conclui Rocca.
Não por acaso, podemos perceber que a guerra entre Rússia e Ucrânia joga com elementos que sufocam suas vítimas literal e metaforicamente. Pensemos nas bombas e nas ações diretas da guerra sobre a vida das pessoas. Podemos também relacionar com a guerra informacional e cibernética que vai gerar um estado de pânico global até que mentes e corpos vão ao colapso. E, por fim, podemos pensar nos embargos e ações que brecam a circulação de alimento em um mundo cada vez mais famélico.