Sem volta atrás. “Depois de Deus”, o novo livro de Peter Sloterdijk

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16 Agosto 2021

 

As dificuldades do presente correspondem ao diagnóstico de Sloterdijk, e a nossa necessidade de uma esfera global de solidariedade é tão urgente quanto ele afirma. Mas também é verdade que não estamos realmente destinados a viver “depois de Deus”, ou a buscar o nosso abrigo apenas após a partida de Deus.

 

O comentário é de David Bentley Hart, filósofo e teólogo ortodoxo estadunidense. Seu livro mais recente é That All Shall Be Saved: Heaven, Hell, and Universal Salvation (Yale University Press). O artigo foi publicado por Commonweal, 14-07-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

Eis o texto.

 

O filósofo-celebridade, espécie em extinção na Europa continental, já está extinto no nosso mundo anglófono. É verdade que, ocasionalmente, um habitante empreendedor de uma das nossas faculdades de filosofia (Daniel Dennett, por exemplo, ou David Chalmers) consegue cultivar um perfil público e vender um número apreciável de livros que, sem serem lidos, ficarão nas prateleiras que servem de imagem de fundo das videoconferências via Zoom.

 

Às vezes, um teórico estrangeiro exótico com um talento especial para a arte performática (Slavoj Žižek, por exemplo) chama a nossa atenção, pelo menos com o canto do olho. Mas, desde os tempos de Bertrand Russell, nenhum filósofo nativo de língua inglesa alcançou qualquer prominência popular de verdade.

 

Em parte, sem dúvida, isso é atribuível a um declínio cultural geral na aspiração intelectual, mas é principalmente o resultado do domínio entre nós da tradição analítica, que muitas vezes é uma combinação perfeita entre o tédio formal e a banalidade conceitual. Depois de tornar a nossa filosofia enfadonha, também a tornamos imperceptível.

 

Portanto, não há realmente nenhum fenômeno na anglosfera hoje comparável ao de Peter Sloterdijk. Na Alemanha, e em grande parte da Europa ocidental, ele desfruta do tipo de visibilidade pública que agora reservamos a maus romancistas populares ou a artistas de segunda linha, embora ele faça pouco esforço para acomodar seu pensamento às limitações da cultura demótica e seja tão prolífico que quase ninguém consegue acompanhar o ritmo do seu trabalho.

 

Parte do seu apelo reside na pura extravagância das suas ideias, e é simplesmente impossível dizer quantos dos seus leitores verdadeiramente o entendem. Mas essa extravagância não deveria ser confundida com superficialidade, e a sua fama não deveria ser descartada como algo acidental ou não merecido.

 

Sloterdijk levanta questões genuinamente interessantes que nos provocam a pensar de formas novas e às vezes desconfortáveis sobre nós mesmos, ou a nossa cultura, ou o mundo como um todo; e as respostas que ele oferece costumam ser fascinantes, ou pelo menos frutiferamente enfurecedoras.

 

Há também uma espécie de cansaço ostensivo do mundo em seus escritos que pode ser estranhamente encantador. Em certo sentido, seu pensamento é sobrecarregado por aquela profunda consciência histórica que parece ser a vocação peculiar da filosofia continental em seu longo crepúsculo pós-hegeliano. Como resultado, ele tem uma consciência hermenêutica muito afiada da fluidez, ambiguidade e contingência culturais dos termos e conceitos da filosofia para confundi-los com propriedades invariáveis que possam ser absorvidas em algum cálculo proposicional atemporal de uma forma que grande parte da filosofia anglo-americana imagina que pode.

 

Mas, em outro sentido, é precisamente esse “fardo” da consciência histórica que confere uma paradoxal leviandade ao seu projeto. Muitos dos seus livros parecem expedições em busca de segredos do passado: ancestrais culturais esquecidos, monumentos espirituais apagados, correntes ocultas dentro do fluxo da evolução social. Quer alguém admire ou deplore o seu pensamento – ou tenha uma opinião mista a respeito dele, como eu – ninguém pode plausivelmente alegar que ele é maçante.

 

O mundo “depois de Deus”

 

O aparecimento deste livro, portanto, naturalmente suscita certas expectativas. Em grande medida, infelizmente, o próprio livro as decepciona. Idealmente, After Godseria uma declaração contínua, concentrada e definitiva sobre os temas religiosos que Sloterdijk abordou com frequência no passado, mas apenas obliquamente. Em vez disso, trata-se de uma coleção de artigos e conferências díspares, alguns deles publicados anteriormente, e, como resultado, sofre de mais do que algumas repetições desnecessárias, lacunas exasperantes e fluxos de reflexão tentadoramente abortivos.

 

No entanto, se lido com um certo grau de paciência, ele fornece uma visão bastante completa da compreensão de Sloterdijk sobre a situação cultural e histórica da humanidade moderna. Definitivamente, é uma fotografia do mundo que passa a existir “depois de Deus” – ou seja, após a “morte de Deus”, a perda por parte da cultura moderna do horizonte abrangente de significado último que antes moldava e sustentava a existência humana. E, mesmo que a fotografia apresentada aqui seja incompleta, ela é rica em detalhes interessantes e ocasionalmente deslumbrantes.

 

Devo observar que o próprio Sloterdijk é manifestamente incapaz de crença religiosa e, em certa medida, considera claramente tal crença como uma possibilidade cultural e psicologicamente esgotada (mesmo que, como Nietzsche observou há muito tempo, nem todos tenham ficado sabendo da notícia sobre a morte do Bom Velhinho). Mas não há nada de triunfalista em seu ateísmo. Seu projeto – de modo controverso quando ele apareceu em cena pela primeira vez – segue em grande parte a tradição de Nietzsche e Heidegger, e ele está perfeitamente ciente de que a história da gênese da modernidade é também a genealogia de um niilismo metafísico quase inescapável.

 

Assim como seus dois antecessores problemáticos, ele desdenha da narrativa canônica do “Iluminismo” e quer pensar o seu caminho para além do “humanismo” complacente da era moderna, com seus destrutivos antropocentrismos, egoísmos e esquecimentos do mistério do mundo. Ele não é tão apocalíptico nem tão militantemente melancólico quanto Nietzsche ou Heidegger, mas, ao mesmo tempo, talvez esteja mais consciente do que eles do perigo real de uma época em que as crenças que uma vez forneciam nossos paradigmas culturais e psicológicos foram evacuadas do seu poder de persuadir ou inspirar.

 

História “psicopolítica” e “almificação” humana

 

A inseparabilidade desses paradigmas – o cultural e o psicológico – é um princípio-guia do pensamento de Sloterdijk. Ele emprega a linguagem da psicologia e da psicoterapia com muito mais conforto do que a maioria dos filósofos, mas se sente livre para fazer isso em grande parte porque não limita o psicológico ao âmbito do temperamento individual.

 

Para ele, o curso do desenvolvimento cultural e o curso da evolução psíquica são um mesmo processo visto de pontos de vista diferentes. Assim, ele frequentemente fala em termos de história “psicopolítica” ou das diferentes épocas da “almificação” humana. Ele vê a história humana não apenas como uma crônica de condições materiais e sociais em mudança, mas também como um registro das formas mutáveis de interioridade que definem a “essência” humana.

 

Somos seres históricos; mesmo as nossas almas mais interiores são construções históricas; e isso ocorre principalmente porque possuímos a linguagem. “A doutrina do humano como o ser por meio do qual existe a fala assume inevitavelmente uma forma mediúnica radicalizada.”

 

Sloterdijk fala até com simpatia da prática católica tradicional do exorcismo, enraizada como está no “xamanismo pré-cristão”, porque presume sabiamente um conceito da alma como um lar ou uma gruta aberta através da qual as forças espirituais vêm e vão.

 

Dada a plasticidade essencial da nossa natureza, a pergunta primária que devemos nos fazer é como chegamos a ser “almificados” do modo como fomos. Como chegamos ao nosso entendimento de nós mesmos como sujeitos autocriadores, seres cuja essência própria é a autonomia racional absoluta, habitando um mundo que existe para nós apenas como um objeto a ser explorado pela nossa vontade de poder?

 

E, então, devemos nos perguntar a questão seguinte, se, em consequência dessa história psicopolítica, nós agora destruímos efetivamente a nossa capacidade para aquilo que Sloterdijk chama de “coimunidade” contra os patógenos históricos que nos ameaçam.

 

Qualquer resumo do projeto filosófico maior de Sloterdijk provavelmente soará um pouco absurdo. Eu suspeito que ele tem toda a intenção de que assim seja. Mas, por trás da máscara de carnaval que ele frequentemente opta por vestir, há um filósofo sério com o seu olhar fixo nas dificuldades reais da nossa natureza e da nossa situação histórica como seres humanos da modernidade tardia.

 

“Esferas”, comunidades e “coimunidades”

 

Sua magnum opus (até este ponto, pelo menos) é a sua amplamente imensa, compulsivamente envolvente e ocasionalmente bizarra trilogia “Esferas”, uma obra de originalidade impressionante e de idiossincrasia desenfreada. É impossível resumi-la, mas em seu cerne jaz um tipo de versão psicofísica do mito do Éden.

 

Todos nós começamos a nossa existência na segurança do útero, o espaço “intrauterino” onde flutuamos serenamente nos nossos pequenos mares amnióticos, envoltos nas esferas protetoras das nossas placentas. Nossa primeira experiência de alteridade – nossa primeira intuição de nós mesmos como diferenciados do cosmos como um todo – é, de fato, a experiência dos tecidos que nos envolvem e nos protegem. Esse estado, então, é sucedido, mas não necessariamente substituído, por um abraço maternal e, em seguida, por incontáveis outras clareiras protegidas na escuridão do ser. Mas esse primeiro lar sempre permanecerá como uma memória potente que permeia e molda nossas vidas individuais, sociais e espirituais.

 

O drama da existência humana, portanto – tanto pessoal quanto social – sempre foi a busca e a criação de novas e mais duráveis esferas de imunidade da essência nua e inóspita do mundo; e o alcance dessas esferas, ao longo do tempo, expandiu-se, desde as mais animais e locais até as mais ideais e universais. A toca, a aldeia, o Estado, o império, a ordem liberal internacional; as exóticas generosidades da natureza, o campo cultivado, o vilarejo agrupado, a cidade ramificada, a Cidade do Homem; os temenos locais, o culto tribal, os deuses e espíritos da natureza, os poderes superiores dos céus, as autoridades espirituais cada vez mais universais, os princípios espirituais cada vez mais “verticalmente” transcendentes – o Deus Altíssimo. Todas são esferas da comunidade e da “coimunidade”. Todas têm suas causas, ocasiões e calamidades “psico-históricas”. E todas podem ser – e, de fato, foram – despedaçadas no curso da nossa jornada rumo ao nosso estado atual.

 

Sem dúvida, há mais do que uma sugestão de divertida perversidade na interpretação “placentária” de Sloterdijk sobre a história e a psicologia humana; mas há também uma poderosa intuição moral a respeito da natureza da dependência humana em relação aos outros e ao mundo ao nosso redor.

 

Além disso, não é a sua intenção fornecer um diagnóstico clínico de alguma “ilusão” que deva ser superada. Por mais freudiana que às vezes seja a linguagem de Sloterdijk, ele tem pouca paciência com a crença severamente “iluminada” de Freud de que devemos amadurecer além dessa nostalgia do útero, ou além das fantasias “infantis” que nos sustentam.

 

Da mesma forma, por mais heideggeriano que seja o seu senso da essência histórica da humanidade, Sloterdijk compartilha pouco da devoção lúgubre de Heidegger ao mito de um primeiro momento perdido de pureza ontológica. De fato, ele considera a sua “esferologia” como um corretivo à imagem curiosamente solitária de Heidegger do lugar do Dasein no mundo. É uma “espacialização”, como ele diz, da narrativa de Heidegger sobre o “lançamento” humano (Geworfenheit).

 

Chegamos à existência não dentro do “lá” inexpressivo do homem deslocado brandindo seu martelo na solidão indigente ou heroica; em vez disso, somos “colocados”, desde o início, em locais de relação, tanto interpessoais quanto interanimais – locais que alimentam quaisquer poderes de fruição que possamos possuir e nos protegem da “monstruosidade” de um mundo encontrado an sich. Justamente por essa razão, até mesmo o desabrigo da humanidade tardo-moderna não é um destino inescapável do qual “apenas um deus pode nos salvar”.

 

A transição “psico-histórica” da Era Axial

 

Dito isso, Sloterdijk acredita que a humanidade não experimentou nenhuma transição “psico-histórica” mais cheia de consequências do que a da Era Axial, que foi o início de uma história de afastamento progressivo das formas mais primordiais e particulares de pertencimento humano e, portanto, também o início da busca incessante da humanidade por esferas de imunidade cada vez mais elevadas e seguras.

 

A visão claramente sardônica de Sloterdijk sobre o conto do “Iluminismo” se dirige não apenas aos privilégios pontificais que o conto pretende conferir aos seus contadores – o tipo que floresceu no Terror Jacobino, assim como em todas as atrocidades e coerções “racionalistas” que se seguiram. Dirige-se também à ingenuidade daqueles que não reconhecem que o “Iluminismo” moderno é, para o bem e para o mal, o culminar de uma história muito longa de revoluções e libertações religiosas.

 

Por pelo menos dois milênios e meio, a humanidade tem sido o produto psico-histórico de um antigo impulso de se afastar da superstição bárbara em relação a uma “alta cultura” de adesão racional a algum princípio espiritual elevado e unificado – Brahma, Tao, o Bem além do Ser, o Deus Único – e assim sair dos matadouros rituais do culto e entrar nas escolas de doutrina.

 

Desde o início, esse processo envolveu um certo impulso da alma para sair dos seus primeiros abrigos orgânicos e locais rumo a cidadelas de certeza mais abstratas. Junto com isso, inevitavelmente, veio um certo distanciamento da vida. Consequentemente, esse impulso muitas vezes se expressou como a busca de uma sabedoria que transcende o mundo, uma busca por libertação ou moksha, um contemptus mundi que frequentemente se torna um medo neuroticamente fastidioso de ser tocado.

 

O impulso atinge uma expressão extrema naqueles virtuosos do desespero que as religiões desenvolvidas consideram como sagrados ou sábios ou excepcionalmente iluminados. Essas são almas para as quais a exaltação absoluta de um único princípio incorruptível de “verdade” espiritual é um chamado ao remorso incessante, um trabalho psíquico incomensurável de arrependimento, uma busca pela liberação final apenas em um âmbito além da trivialidade da humanidade comum.

 

O místico em um estado de contemplação fundida retornou a algo como aquele estado de “flutuação” intrauterino e aborígine – mas agora no “útero” do Deus Único, que é a esfera de imunidade mais impregnável que se possa imaginar.

 

O processo de “monoteologização”

 

O capítulo de “After God” dedicado ao gnosticismo, embora sendo o mais desigual em sua compreensão erudita dos materiais, oferece uma interpretação afiada do impulso gnóstico como o gesto característico dessa ascensão “axial” a uma transcendência cada vez mais vertical. É o mesmo impulso ou pathos que se encontra na distinção joanina entre estar “no” mundo e ser “dele”. Todos os elevados dualismos da Era Axial contribuíram para o domínio crescente da humanidade sobre qualquer número de distinções instrumentalmente úteis: alma e coisa, alma e mecanismo, subjetividade e objetividade, propósito e ferramenta, e assim por diante.

 

E o processo de “monoteologização” por meio do qual níveis mais elevados de divindade progressivamente subordinaram e expulsaram âmbitos e poderes divinos intermediários – um processo que alcançou um de seus zênites mais importantes no primeiro relato da criação no Gênesis, em que o Deus criador é descrito como radicalmente superior à sua criação – também foi a progressiva almificação dos seres humanos como seres soberanos isolados, indivíduos à imagem do único Deus Altíssimo, pessoas plenamente realizadas e, finalmente, subjetividades modernas.

 

A história cristã leva essa história a um de seus divisores d’água epocais. No Evangelho, há um ataque radical contra todas as estruturas mediadoras da autoridade patriarcal – todas as instituições religiosas e sociais, todos os ofícios estabelecidos de linhagem e privilégio, todas as posições aninhadas de parentesco, povo, reino, império e sacerdócio – pela reivindicação da alma individual de uma filiação imediata ao Deus Único.

 

Para Sloterdijk, Cristo é o “bastardo de Deus”, o filho natural do Pai, por assim dizer, concebido e nascido fora de todas as linhas legítimas de herança e de todas as estruturas lícitas de autoridade. E a sua revolta antipatriarcal tornou-se com o tempo uma licença concedida a todas as almas: agora cada um de nós, na nossa humanidade individual, libertado por essa apostasia social e espiritual, pode se tornar também um bastardo de Deus, alguém em quem Deus habita diretamente como Pai.

 

Ao mesmo tempo, e pela mesma lógica, uma nova ordem de desejo social e político foi implantada na natureza humana: a do “igualitarismo infinito”, uma passagem da psicopolítica do comando e da obediência a uma psicopolítica de autodeterminação paritária, a transformação da diferença vertical em horizontal.

 

Aqui, novamente, a imagem favorita de Sloterdijk é o exorcismo, que deve ser entendido, acredita ele, como uma espécie de purificação de um espaço sagrado, uma limpeza do Templo. A alma já foi concebida “nem como um teatro nem como uma fábrica, como é típico da era moderna, mas sim como um santuário no qual nenhuma imagem podia ser exibida, exceto a do deus-homem – cuja imagem, por sua vez, tinha que representar um Deus indescritível”.

 

A fonte de uma individualidade soberana

 

Ao expulsar as forças espirituais mais elementares que antes reinavam com tal capricho na natureza, na sociedade e na alma, o princípio transcendente Uno da Era Axial também se tornava a fonte de uma individualidade soberana. Isso porque a expulsão de maus espíritos da alma tinha que ser completada pela subsequente “entrada de um princípio brilhante, que, como guardião da alma purificada, se tornava o seu novo monitor e fonte de inspiração”. A alma, assim, sofria uma mudança de possessão: agora era o próprio Espírito de Deus que agia dentro dela.

 

Essa purificação dos recintos internos do “eu” podia ser uma experiência totalmente religiosa, mas também era um episódio crucial na história do Iluminismo e, portanto, da secularização. Pois, quando a mais elevada das esferas protetoras finalmente se despedaçava – como tinha de acontecer – o “eu” soberano se tornava o único santuário remanescente de quaisquer mistérios que ainda restassem.

 

Todas as outras possibilidades de proteção haviam sido sucessivamente exauridas e, então, haviam sido assumidas naquela transcendência final e finalmente haviam desaparecido com ela.

 

Não que o desejo por essas outras proteções tenha diminuído. Após a partida de Deus, as tentativas da humanidade de se retirar novamente para uma esfera protetora assumiram muitas formas. Para alguns, a liberdade sagrada dos bastardos de Deus se tornou uma luta idealista e psicoterapêutica para fortalecer o ego sitiado contra as profundezas divinas do inconsciente. Todos os ofícios de conforto religioso agora tinham de ser desempenhados pela própria alma, por meio de uma autovigilância e autoabsolvição incessantes.

 

Para outros, a retirada da religião nas sociedades avançadas possibilitou que a fé se tornasse um regime experimental individualizado – uma “vontade de crer”, entendida como uma espécie de terapia privada e construtivista ou higiene psíquica, naturalmente tendendo na direção do misticismo (Sloterdijk considera William James o mais impressionante defensor dessa pós-religião, dessa religião-como-suplemento vitamínico totalmente americanizada).

 

Para outros, há fanatismos fideístas e dogmatismos reacionários para preencher as ausências deixadas pelo enfraquecimento de uma fé viva.

 

Em todo o caso, as velhas devoções e encantos são irreparáveis. Sem nenhum Deus para nos vigiar, realmente não há nenhum pecado a ser resolvido perante o seu olhar e, portanto, nenhum poder que possa nos reconciliar com um destino indecifrável ou nos resgatar dele.

 

Espaço “hiperimanente”

 

O ser humano moderno não quer obedecer a um poder superior, mas quer ser esse poder. Assim que Deus e a alma foram liquidados, ficamos apenas com o mundo como um evento bruto. Nesse espaço “hiperimanente”, uma energia sem propósito desdobra-se à toa ao nosso redor, sem sinais para nos guiar através do terreno sem características próprias.

 

O mundo realmente se tornou um monstro para nós, e nós, longe de encontrarmos abrigo em quaisquer terríveis esferas de coimunidade, descobrimos apenas que o êxodo controlado rumo à liberdade final que nos foi prometida pelo mito do Iluminismo, em vez disso, provou ser um deslizamento precipitado rumo à desintegração social e ecológica, uma errância psíquica e aquilo que Sloterdijk chama de “heteromobilidadedesabrigada.

 

As ciências, é claro, podem não notar a monstruosidade do mundo, mas a filosofia sim, e então deve perguntar o que devemos fazer agora. A resposta, no entanto, é evasiva. A religião, claramente, não voltará a retomar a sua antiga autoridade. Tais religiões que ainda existem entre nós são, no máximo, na visão de Sloterdijk, subsistemas sociais locais nos limites da vida cívica.

 

Mesmo as Igrejas, ao invés de serem associações de almas verdadeiramente orgânicas ocupando o centro das atenções, são sodalícios marginais, cujo único propósito real é alimentar e controlar uma profunda melancolia sobre a impossibilidade da Igreja de antanho. Vários simulacros de religião orgânica – espiritualidades terapêuticas, fundamentalismos, seitas apocalípticas, autoritarismos integralistas e assim por diante – podem prosperar por um tempo aqui ou ali. O anseio religioso pode aumentar brevemente onde o estado de bem-estar social começa a se retirar ou a sociedade civil se torna muito caótica. Mas não encontramos nenhuma verdadeira esfera de coimunidade social adequada à nossa era de “hiperpolíticas” globalizadas e de crise ecológica. E mesmo a imunidade privada pode ser preservada ao longo do tempo apenas dentro do abraço de tal esfera.

 

Sloterdijk identifica três tipos de sistema imunológico que ele considera necessários para a existência humana: o biológico (naturalmente), o social (que consiste na solidariedade e no apoio compartilhado) e o simbólico ou ritual (que concede aos seres humanos o poder de fontes superiores sempre que eles se sentem impotentes).

 

O terceiro deles foi enfraquecido irreparavelmente pela secularização e pelo individualismo, enquanto o segundo foi submetido a contínuas diluições e dissoluções. Ainda não descobrimos nenhum sistema eficiente de coimunidade para a sociedade global que agora está emergindo, nem inventamos nenhum novo abrigo contra a monstruosidade de um mundo de destino vazio.

 

Se eu dei a impressão de que a grande narrativa de Sloterdijk é simplesmente um conto de declínio, é apenas porque me limitei à sua crítica a uma certa narrativa-padrão do moderno. Ele acredita, é verdade, que, em uma era de crise ecológica global e de fragmentação social e política, algo como o poder da religião para criar comunidade e solidariedade é extremamente necessário.

 

Nova esfera de solidariedade

 

Ele nota o rugido melancólico, longo e retraído da fé com uma certa tristeza irônica. Ele detesta veementemente, por exemplo, o consumismo irreverente dos turistas que perambulam pelas catedrais vestidos para a praia e tirando fotos. Mas ele absolutamente não deseja retornar aos mitos ou hierarquias do passado. Ele também não se enfurece contra a tecnologia abstratamente, nem mesmo se resigna a ela com pesar em um acesso de anomia heideggeriana. A partir do momento em que um ser humano rachou uma pedra com outra, o nosso destino foi empregar a força ordenada contra a força desordenada, a fim de alcançar os nossos objetivos, e não podemos esperar um futuro melhor que também não seja feito de proezas tecnológicas.

 

Em vez de uma tentativa de retirada para um passado irrecuperável, Sloterdijk acredita que realmente precisamos de uma nova esfera de solidariedade que possa abranger toda a vida, um abrigo forte o suficiente para criar uma coimunidade robusta para o todo indefeso: uma sociedade global, vida animal e vegetal, a natureza, a própria terra. A religião foi irremediavelmente perdida como um sistema vinculante de valores, de modo que precisamos de uma nova piedade dedicada e sustentada pela unicidade da terra que habitamos, compartilhamos e da qual dependemos.

 

No que diz respeito a Sloterdijk, além disso, a história da revelação – se é que se pode usar essa palavra – continuou até os dias atuais, e há muitas coisas que aprendemos no caminho para a modernidade, como a nobreza da busca “orgulhosa” da alma do indivíduo por um sistema de liberdade pessoal. Há lições que não devemos abandonar ou nos permitir esquecer se quisermos criar um futuro habitável. Para ele, elas constituem um “Novo Testamento”.

 

Aqui, pelo menos para mim, os detalhes tendem a se tornar um pouco nebulosos. Acho a política de Sloterdijk amplamente ininteligível, embora eu admita que ela possa ter algum tipo de coerência profunda que eu simplesmente não consegui captar. Tudo o que consigo ouvir são as dissonâncias.

 

Às vezes, ele pode soar tão infantilmente fútil quanto qualquer libertário estadunidense fulminando contra as disposições do bem-estar social. Em outras ocasiões, ele dá voz a um desdém saudável pelo culto democrático liberal da mediocridade, assim como pela prisão da rotina na qual o Estado moderno e a economia moderna mantêm tantas pessoas cativas. Em outras ocasiões, seu pavor nietzschiano da era dos “Últimos Homens” parece sobrepujar a sua visão de solidariedade global e o seu senso da nossa patética dependência humana das esferas de coimunidade.

 

No entanto, é essa visão e esse senso, assim como a humanidade essencial e despretensiosa de ambos, que iluminam e guiam o seu pensamento da melhor forma. Mesmo assim, como eu continuo tão pouco convencido da existência real da visão política mais ampla de Sloterdijk quanto da existência real de seres mitológicos, eu não estou disposto a dilatar o conteúdo das primeiras mais do que a especular sobre a biologia dos últimos.

 

O posicionamento dos cristãos

 

O que os cristãos podem fazer diante de toda essa história? Por que eles deveriam se importar? Bem, para começar, eles deveriam reconhecer que Sloterdijk, ao confirmar o diagnóstico de Nietzsche sobre a morte de Deus no mundo desenvolvido, não está fazendo nada mais do que declarar um fato histórico evidente.

 

O desaparecimento daquele horizonte transcendente de significado e esperança em cujo abraço cômodo quase todas as pessoas e culturas uma vez subsistiram é simplesmente um fait accompli. O extremismo frenético dos fundamentalismos e dos nacionalismos religiosos e integralismos cripto-fascistas do nosso momento atual atesta de forma pungente a natureza inconcebível para a cultura moderna tardia de um Deus que é qualquer outra coisa exceto a construção tanto da vontade de poder quanto de uma necessidade emocional desesperada.

 

Nada disso é um verdadeiro sinal de um reavivamento da fé; tudo isso são apenas as contrações hediondas de um rigor mortis que se aprofunda. E, na medida em que o cristianismo genuinamente vivo do passado foi a fonte vital do “Iluminismo” no mundo ocidental, o afastamento desse cristianismo por parte da cultura ocidental levou embora todas as possibilidades anteriores de “coimunidade” que ele resumia em si mesmo.

 

As épocas do espírito não são reversíveis, nem mesmo suscetíveis de recapitulação. Essa é uma visão hegeliana da qual ninguém deveria duvidar: grandes transições históricas e culturais não são meramente rupturas, mas também momentos de crítica. A racionalidade da história jaz no triunfo incessante da experiência sobre a mera teoria e, portanto, na impossibilidade de qualquer simples retorno às ingenuidades pré-críticas. Mais cedo ou mais tarde, quase toda economia cultural é derrotada pelas suas próprias contradições internas, impedindo a interrupção desse processo natural por uma repentina conquista externa. E a nova ordem que a sucede provavelmente não está mais livre de contradições próprias, que, por sua vez, ficarão expostas.

 

Mais precisamente, o colapso de toda ordem cultural é também a exaustão da síntese que essa cultura encarnava. A inocência cede ao desencanto, e o desencanto não pode se reverter em inocência.

 

Entre cristandade e cristianismo

 

Certamente, isso foi provado no caso da cristandade e da sua sequência, a secularização. A cristandade do império ou do Estado-nação, sendo uma liga de dois princípios irreconciliáveis em última instância, inevitavelmente se subverteu. Ela persistiu por tanto tempo em virtude de uma devoção cultual genuinamente orgânica com uma infraestrutura prática e teórica durável. Mas as suas contradições inerentes acabaram destruindo essa base.

 

A linguagem e os princípios do Evangelho frequentemente iluminavam a sociedade que os estimava; os ofícios e os poderes do Estado consistentemente protegiam, preservavam e promoviam a religião que os legitimava. Mas a aliança era um pacto suicida. O solvente mais devastador da cristandade, no fim, foi a presença indelével do cristianismo dentro dela. A força corrosiva mais destrutiva do cristianismo como fonte confiável de ordem social foi, no fim, o fardo esmagador da cristandade sobre ele.

 

A resistência a esse destino sempre se revelou infrutífera, precisamente porque tendeu a proceder a partir de dentro da racionalidade da velha cristandade. Na cultura católica, por exemplo, pelo menos desde o tempo do Concílio de Trento, a luta contra a realidade da fragilidade intrínseca da velha ordem tem sido constante e totalmente fútil. Tem sido como uma tentativa de salvar uma casa já engolida pelo mar, acrescentando novas fechaduras às suas portas.

 

Apesar das inúmeras riquezas culturais e sociais criadas pela acomodação instável entre o Evangelho e o império – e mesmo que muitas dessas riquezas ainda pudessem ser recuperadas dentro de uma nova síntese cristã –, mesmo assim a cristandade do passado era uma catástrofe fecunda, e o seu terminus inevitável sempre foi o secularismo. E, com o passar do tempo, esse secularismo acabou se tornando um niilismo metafísico totalmente autoconsciente.

 

Quanto à ordem secular liberal que se sucedeu à cristandade, as suas próprias tensões e volatilidades internas são muito óbvias. No campo econômico, ela criou prodígios de produção e destruição material, assim como formas de poder e opressão em uma escala antes inimaginável.

 

Na esfera social, ela criou lutas incessantes entre visões incompatíveis do bem, embora não fornecendo nenhum índice transcendente claro de valores para julgar os seus conflitos. Para o bem ou para o mal, ela eliminou ou marginalizou quase todas as formas mediadoras ou subsidiárias de agência social e reduziu a ordem social significativa às reivindicações interdependentes, mas necessariamente antagônicas, do Estado, do capital e do indivíduo soberano.

 

E Sloterdijk tem toda a razão: nessas condições, temos pouca defesa contra as calamidades ecológicas e sociais que criamos para nós mesmos. Portanto, novamente, dadas essas realidades, o que os cristãos devem fazer?

 

Secularismo, a fase terminal da cristandade

 

Certamente, o que eles não deveriam fazer é se entregar a nostalgias e ressentimentos doentios, ou acalmar seus distúrbios com fantasias restauracionistas infantis. A crítica imanente da história expôs muitas das velhas ilusões por aquilo que elas eram, e não pode haver um retorno inocente às estruturas de poder cujas hipocrisias foram tão claramente reveladas.

 

Existem inúmeras razões, por exemplo, para rejeitar a atual voga do “integralismo” católico de direita: seus voos imbecis de fantasia em relação a um papado imperial; seu modelo essencialmente moderno de absolutismo eclesial; sua devoção a um quadro de ordem social e política cristã que não poderia ser menos “integralista” ou mais “extrínseco” e autoritário em seus mecanismos; o elemento perturbadoramente palpável de devaneio sadomasoquista em seu endosso a várias formas extremas de coerção, subjugação, violência e exclusão; a ausência total do ethos real de Cristo entre seus objetivos; a sua estranha semelhança com uma convenção de entusiastas do Star Trek discutindo seriamente sobre estratégias para realmente estabelecer uma Federação Unida de Planetas.

 

Mas a maior razão para desprezar todo o movimento é que ele nada mais é do que um esforço ressentido para reconstituir a própria história de fracasso cujas consequências ele deseja corrigir. O secularismo não foi imposto ao mundo cristão por alguma força hostil adventícia. Ele simplesmente é a velha cristandade em sua fase terminal.

 

Nessa medida, os cristãos têm muito a aprender com a narrativa de Sloterdijk, mesmo que possam contestar alguns de seus detalhes. Dito isso, o adorável fardo de consciência histórica de que eu falava acima também pode incapacitar a imaginação política e moral. “Genealogia” demais – história demais, como Nietzsche advertia – pode produzir um fatalismo paralisante. O próprio Sloterdijk está perfeitamente ciente disso, mas é notável o quão paroquial é a sua suposição de que a situação atual do Ocidente deve determinar o futuro da religião, ou mesmo apenas a “esfera” cristã da imunidade.

 

Ele pode estar certo, é claro, mas eu acho que às vezes ele deixa de avaliar o grau em que a história é sempre um âmbito de novidades radicais. A genealogia tende a criar a impressão de que a evolução cultural é governada por uma lei inflexível de causalidade eficiente e material, mas, de fato, os processos históricos são constantemente redirecionados por causalidades formais e finais que simplesmente não podem ser previstas.

 

Outra visão social cristã

 

As configurações da velha ordem cristã são irrecuperáveis agora, e, em muitos aspectos, é melhor assim. Mas as possibilidades de outra visão social cristã, talvez radicalmente diferente, ainda precisam ser exploradas e cultivadas. Castigado por tudo o que foi aprendido com os fracassos do passado, livre da nostalgia e do ressentimento, ansioso por reunir todos os fragmentos mais úteis, belos e enobrecedores do edifício em ruínas da velha cristandade a fim de integrá-los em padrões melhores, os cristãos ainda podem ser capazes de imaginar uma síntese social e cultural completamente diferente.

 

O pensamento cristão sempre pode retornar ao novum apocalíptico do evento do Evangelho em seu primeiro início e, haurindo um renovado vigor dessa fonte inesgotável, imaginar novas expressões do amor que ele deve proclamar ao mundo e novos caminhos para além do impasse do presente.

 

O resultado final, se os cristãos conseguirem se libertar do mito de uma era de ouro perdida, pode ser algo mais selvagem e estranho do que podemos conceber atualmente, ao mesmo tempo mais primitivo e mais sofisticado, mais anárquico em alguns aspectos e mais ordenado em outros.

 

Se tal coisa é possível ou não, no entanto, é necessário compreender que o lugar onde nos encontramos agora não é um destino fixo. Ele se torna isso somente se estivermos indispostos a distinguir a grandeza opulenta, mas frequentemente decadente, da cristandade da verdadeira glória cristã da qual ela ficou tão aquém.

 

As dificuldades do presente são tão formidáveis quanto sugere o diagnóstico de Sloterdijk, e a nossa necessidade de uma esfera global de solidariedade que possa realmente abrigar a vida do todo é tão urgente quanto ele afirma. Mas também é verdade que não estamos realmente destinados a viver “depois de Deus”, ou a buscar o nosso abrigo apenas após a partida de Deus.

 

De fato, de todos os futuros que podemos imaginar, esse pode ser o mais impossível de todos.

 

 

Desbravar o Futuro. A antropotecnologia e os horizontes da hominização a partir do pensamento de Peter Sloterdijk. Artigo de Rodrigo Petronio. Cadernos IHU ideias, Nº 321

 

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