18 Abril 2020
Yuval Noah Harari não é somente um historiador israelense de 44 anos. Também não é somente um filósofo, um professor ou um reconhecido escritor. É um dos pensadores mais destacados do século XXI e suas opiniões influenciam alguns dos líderes mundiais mais importantes. Barack Obama, Bill Gates, Emmanuel Macron, Mark Zuckerberg e Angela Merkel estão na lista daqueles que o consultam ou expressam admiração por suas análises da sociedade.
Suas opiniões, divulgadas em sua exitosa trilogia Sapiens: de Animais a Deuses, Homo Deus: Uma breve história do amanhã e 21 lições para o século XXI, abarcam desde os temas mais globais, como a razão pela qual nós, humanos, dominamos o mundo, até os mais específicos, como o impacto de algoritmos computacionais em nosso futuro.
Após repassar, literalmente, toda a história da humanidade em Sapiens, publicado em 2014 e que vendeu mais de 13 milhões de cópias, atualmente, dedica-se à análise do presente e, sobretudo, do futuro.
Os perigos da ingerência de estados e corporações na esfera privada, por meio da tecnologia, o futuro do emprego, um sistema de renda básica universal e as possíveis consequências da engenharia genética na desigualdade são alguns dos temas sobre os quais conversou, de sua residência no moshav Mesilat Zion (entre Telavive e Jerusalém), onde afirma estar trabalhando “mais do que nunca” por causa da pandemia.
A entrevista é de Pablo Duer, publicada por Infobae, 15-04-2020. A tradução é do Cepat.
Quais serão os efeitos mais importantes da crise do coronavírus?
Acredito que é importante entender que estamos reescrevendo as regras do jogo. Do jogo econômico e político, tudo está em jogo. Estamos presenciando muitos experimentos em milhares de pessoas, como nos Estados Unidos, que irão implementar a renda básica universal, dando dinheiro a todos os seus cidadãos durante a crise. Já se pensou nisso antes, mas ninguém a implementou nessa escala e não sabemos quais serão as consequências.
Destacaria dois elementos principais: primeiro, que não há nada predeterminado na maneira de lidar com esta crise e que há muitas opções, não apenas uma, e, segundo, que as decisões que tomarmos terão um impacto, durante anos e décadas, e reconfigurarão o planeta.
Minha principal preocupação é que, por causa de considerações a curto prazo, as pessoas tomem decisões equivocadas como, por exemplo, lidar com a crise implantando regimes autoritários ou até mesmo totalitários, em vez de empoderar os cidadãos. Ou que países optem pelo isolamento e persigam interesses nacionalistas, algo que teria consequências terríveis para o mundo, ao terminar a crise. O que escolhermos no próximo mês ou dois mudará o mundo durante anos ou inclusive décadas.
Que mudanças geopolíticas podem surgir?
Acredito que há algo importante e tem a ver se conseguimos lidar com isto unidos como humanidade. Por exemplo, estabelecendo um sistema global de produção e distribuição de equipamento médico, onde países empreguem recursos para produzir respiradores e medicamentos e, depois, os distribuam de maneira justa, em vez de os países ricos monopolizarem os recursos e não restar nada para os pobres.
Se conseguimos fazer isto, poderia ficar um legado de solidariedade, confiança e cooperação que nos ajudaria a lidar com muitas outras crises no futuro. Mas se acaba predominando uma competição egoísta e nacionalista, entre países, para conseguirem tudo o que for possível para si mesmos, sem importar os outros, prejudicando a eficiência na produção e resultando em uma distribuição não equitativa dos equipamentos, isto deixaria um legado tóxico, algo que poderia afetar as relações internacionais por muitos anos.
E como ficaria a distribuição de poder entre países?
Algo muito chamativo é como os Estados Unidos, desde que começou o Governo de Donald Trump, abandonaram completamente seu papel de liderança no mundo em relação às crises prévias, como a epidemia do ebola ou a crise financeira de 2008, quando lideraram um esforço junto com outros países e evitaram um desenlace pior. Mas quando esta crise começou, os Estados Unidos se desentenderam completamente e não fizeram nada. Quando se expandiu do leste da Ásia para mais e mais áreas, inicialmente, negaram que tivesse um problema e até mesmo agora, quando finalmente o reconhecem, seguem sem tomar um papel de liderança e continuam com sua política do “América primeiro”.
Só que agora são o América primeiro em infecções. Os Estados Unidos basicamente abandonaram seu papel de líder global e deixaram um vazio que outros países estão buscando preencher, como a Alemanha, que está fazendo um trabalho impressionante. Depois de demonstrar dúvidas em sua reação inicial, agora está buscando adotar uma posição de liderança responsável, não só economicamente, mas também enviando ajuda e recebendo pacientes de outros países para ajudá-los com a crise, e isto é algo muito animador. Também vemos que a China envia ajuda, equipes de especialistas e equipamentos médicos a países de todo o mundo. Muitas pessoas a acusam de explorar esta situação, mas acredito que é injusto, porque isto é o que realmente precisamos neste momento, que os países se ajudem entre si. E se há uma motivação política, o que importa?
Instituições como a União Europeia e a Organização das Nações Unidas são suficientemente fortes para liderar a luta contra a pandemia?
Nos últimos anos, o poder destas organizações foi fragilizado pelo crescimento de políticas isolacionistas e populistas, e muitos países que antes eram os principais pilares do multilateralismo e da ordem internacional, especialmente os Estados Unidos e a Grã-Bretanha, renunciaram a esse papel. Agora, estamos pagando o preço, em um momento de crise. Quando mais do que nunca precisamos de cooperação global, as organizações internacionais são relativamente frágeis.
Não sei o que irá acontecer, mas espero que com a crise as pessoas percebam o erro que cometemos ao fragilizar a solidariedade e a cooperação internacional, e que ao final desta crise saiamos com organizações internacionais mais fortes e com um aprofundamento da solidariedade global, que nos ajudará a lidar não só com esta crise, mas com outras no futuro.
O que acredita que acontecerá com o mercado de trabalho, uma vez que isso acabe?
Acredito que há dois principais possíveis impactos. Primeiro, o mercado de trabalho irá se reestruturar, porque estamos tendo um experimento massivo de trabalhar de casa e o resultado disto irá modificar a economia do futuro. Muitas coisas que as pessoas pensavam, mas que nunca tentaram, como por exemplo o ensino universitário pela internet, estão experimentando agora.
Se as universidades perceberem que podem ensinar pela internet, assim que termine a crise, mesmo que muitos cursos voltem à normalidade, outros continuarão sendo on-line, o que significa que poderão contratar pessoas em outros países para dar aulas, algo que poderia mudar o mercado de trabalho acadêmico, por exemplo, com universidades europeias contratando professores da Índia, que seriam muito mais baratos e poderiam ensinar de forma virtual. É só um exemplo do que poderia acontecer em muitas mais indústrias.
Outro possível impacto é a aceleração da automação e a implementação de robôs, inteligência artificial e aprendizagem automática em trabalhos que até agora eram feitos por humanos. O que está acontecendo agora na crise é que há muita pressão, em muitas indústrias, para substituir os humanos. Se um trabalho pode ser feito por um robô, ainda que o robô não seja tão bom como o humano, neste momento, é muito mais conveniente porque não podem se contagiar.
Então, se há uma fábrica que tem apenas robôs e uma fábrica que tem apenas humanos, a fábrica humana, ainda que seja um pouco melhor na produção, agora está fechada pela quarentena e o medo do contágio, algo que poderia significar um estímulo imenso para que muitas companhias experimentem um sistema de produção automatizado. O tema é que quando a crise terminar, dificilmente voltaremos para onde estávamos. Há muitas indústrias que poderiam atravessar um processo de rápida automação, a respeito do que se vem falando muito nos últimos anos e que, enquanto em condições normais poderia levar 10 ou 20 anos, com esta epidemia agora levará apenas dois ou três meses.
Se acontecer assim, de forma rápida, poderá ter consequências devastadoras para os trabalhadores.
Sim, e atualmente a pandemia está centrada nos países mais ricos do mundo, como na Europa, nos Estados Unidos, antes na China, Coreia do Sul e Japão. Mas, a longo prazo, a pior das crises será sofrida pelos países pobres. Agora, não falamos muito sobre o que acontece na América do Sul, na África ou no Sudeste Asiático, mas tanto a epidemia em si, como a crise econômica, provavelmente golpearão muito mais os países pobres e em desenvolvimento que os países ricos. E se o sistema de saúde de um país como a Espanha tem dificuldades lidando com esta crise, pense o que pode acontecer quando a epidemia se estender a países como Peru, Bangladesh ou África do Sul. Provavelmente, o maior número de mortos será nestes países, não na Europa ou nos Estados Unidos.
O mesmo se dá com a crise econômica. Agora, nós a vemos na Europa, no leste da Ásia e na América do Norte, mas em última instância estas áreas poderão sobreviver mediante resgates econômicos, como os que os Estados Unidos estão implementando e, inclusive, poderiam se beneficiar, a longo prazo, mediante processos como a automação. Mas se pensamos nos países pobres ou em vias de desenvolvimento, que não têm estas capacidades econômicas e que provavelmente também experimentarão estes processos de automação, muitos poderiam colapsar totalmente econômica e politicamente. Por isso, acredito que é necessária uma rede de contenção global para ajudá-los a enfrentar as consequências econômicas da epidemia.
Que elementos positivos podem ser extraídos da situação atual?
Para além do entendimento da necessidade de maior solidariedade global, acredito que esta crise poderia nos ensinar a enfrentar de maneira mais efetiva outros problemas globais, como a mudança climática. Nos últimos anos, falou-se muito sobre o perigo de uma epidemia e governos e cidadãos não investiram esforços suficientes para se preparar, porque sempre é mais fácil focar as preocupações imediatas que os perigos futuros. Mas agora percebemos que foi um enorme erro não nos prepararmos para esta eventualidade, e espero que aprendamos a lição em relação à mudança climática. É melhor investir dinheiro agora, para evitar o pior cenário, que esperar que a crise nos golpeie e seja muito tarde.
Outra lição positiva é a importância da educação científica e a confiança na ciência e em seus especialistas. Nos últimos anos, vimos um crescimento dos populismos, com políticos minando a confiança das pessoas na ciência, pintando os especialistas como uma elite desconectada das pessoas, a quem não devemos escutar. Agora, entendemos a imensa importância de escutar esses especialistas, que nos digam o que está acontecendo e o que devemos fazer.
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“Espero que com a crise as pessoas percebam o erro que cometemos ao fragilizar a solidariedade e a cooperação internacional”. Entrevista com Yuval Noah Harari - Instituto Humanitas Unisinos - IHU