28 Agosto 2020
Com um novo livro em andamento, que será publicado nos próximos dias com o título Las epidemias políticas, o filósofo alemão Peter Sloterdijk afirma que nas sociedades modernas “as aberrações morais e políticas quase sempre começam com descuidos linguísticos”, e alerta sobre “a quase perfeita sincronicidade da pandemia microbiana com a informativa”.
A reportagem é publicada por El Ciudadano, 26-08-2020. A tradução é do Cepat.
O autor de obras como Regras para o parque humano, afirma que a sociedade não está "em condições de olhar para além da pandemia” e prevê que, embora "muitos aguardam com ansiedade o retorno à cotidiana frivolidade do modo de vida consumista", a crise atual, “com o tempo, levará a uma transformação da consciência coletiva dentro do individualismo".
Quando um fenômeno ou cataclismo quebra a certeza em escala global, a onda de choque não demora para chegar à linguagem e se transforma em um dispositivo de leitura. O impulso é pensar que a pandemia facilitou, então, a metáfora da epidemia que Sloterdijk desenvolve em um dos artigos que dá nome ao seu novo texto, mas há tempo o filósofo costuma apelar à narrativa virológica para descrever o funcionamento da política e dos meios de comunicação.
O pensador, um dos mais destacados da atualidade, reconhece ter recebido uma formação heterodoxa que inclui Nietzsche, Lacan, Valéry e até o guru Osho e redunda em uma obra tão inovadora como erudita, sempre propenso à ironia.
Declara-se apolítico, mas sua invocação a Friedrich Nietzsche e Martin Heidegger –associados ao nazismo – rendeu-lhe algumas críticas.
Em Las epidemias políticas, que será lançado nos próximos dias, o autor de ‘Crítica da razão cínica’ define os meios de comunicação como "portadores de infecções" e sustenta que apenas de maneira superficial a democracia abriga a troca de argumentos. No fundo, passa por um enfrentamento constante “entre epidemias, estratégias e vacinas” e o que se pretende apresentar como informação nada mais é do que uma rede de “emoção, envenenamento e destruição do juízo público”.
Em um diálogo que começou por telefone e migrou para o e-mail, quando o pensador detectou que o inglês estava atrapalhando sua fluência e preferiu responder por escrito em alemão, Sloterdijk apresentou propostas e ideias.
Ao mesmo tempo que esta pandemia evidenciou algo que já estava acontecendo - a visão do “outro” como uma ameaça -, também gerou uma espécie de empatia, pois pudemos perceber esse “outro” angustiado e confinado, tal como nós.
Sobre se esta última perspectiva poderia gerar algum impacto sobre o discurso de ódio que tem ocorrido nas redes sociais e na política, Sloterdijk apontou:
“O fato de que as pessoas muitas vezes tendem a ver o outro como uma fonte de perigo não é uma consequência da atual pandemia de coronavírus, nem é uma invenção do racismo pseudobiológico do século XIX. Claude Lévi-Strauss apontou, há muito tempo, que uma dose de xenofobia faz parte da herança ancestral da espécie homo sapiens. Com efeito, durante centenas de milhares de anos fomos criaturas de grupos pequenos. A convivência com pessoas estranhas em conjuntos maiores, em cidades, em nações, em impérios, teve que ser aprendida mais tarde e não sem esforço. E em nenhum lugar o aprendizado foi inteiramente bem-sucedido, como pode ser visto à luz de fenômenos como a criminalidade, antissocialidade e a erosão familiar”.
“Antes, prosperava uma ideia de família expandida. É claro que expandir a metáfora da família constitui uma manobra semântica sugestiva, mas, ao se fazer isso, esquece-se que a família é também o local dos clássicos crimes passionais e da origem das guerras civis. Além disso, historicamente a xenofobia não tem sido um mero preconceito, mas expressa uma experiência atávica de pessoas com outras pessoas. Todas as altas civilizações têm como antecedente a extensão da caça de animais à caça de humanos. Mas assim como nem toda caça de animais termina em matança, nem toda caça humana projetava matar os prisioneiros. A fobia aos estranhos não raramente se transformou em um sistema vicioso de hostilidade aos fracos e fugitivos, ao mesmo tempo que dispositivos afetivos mais antigos (pânicos existenciais, tabus alimentares, masculinismos, códigos de honra) tornaram-se disfuncionais no mundo moderno”.
No livro Las epidemias políticas, diz-se que os meios de comunicação modernos são portadores de infecções e que a democracia é o surgimento da epidemiologia.
A respeito de como esses conceitos extrapolados do universo científico atuam no campo social, o filósofo explica:
“A experiência da liberdade é contagiosa. Nessa observação, baseia-se a possibilidade de democracia. É a forma de vida em que os não-livres se deixam contaminar voluntariamente pela liberdade para depor os costumes de submissão. Nessa perspectiva, existe um antigo vínculo íntimo entre o político e o epidêmico. Isso traz ao mundo a contradição fundamental da civilização política moderna, aquela contradição entre a retórica dos valores universais e a persistência do abismo que separa brutalmente as formas de vida superprivilegiadas das desprivilegiadas”.
“Agora, quase nada é tão contagioso como o entusiasmo pelas ideias universalistas. Quando o universalismo fracassa, surge a crítica. Quando a crítica fracassa, surge furioso o ressentimento em massa. Quando a decepção não conduz à resignação, mas se expressa de forma ofensiva, surgem epidemias de ira. Essas epidemias transmitidas pelos meios de comunicação são realidades psicossociais. Mas o uso de termos como ‘infecção e epidemia’ não é puramente metafórico. A descoberta da transmissão de doenças e afetos é muito mais antiga que a dos micróbios”.
E sobre como isso funciona no contexto da pandemia, Sloterdijk destaca que, “hoje, acrescenta-se algo que nunca foi visto desta forma: a quase perfeita sincronicidade da pandemia microbiana com a informativa. É toda uma novidade com a qual teremos que lidar daqui em diante. Evidencia que a globalização realmente existe e que os bens, as pessoas, os micróbios e a informação viajam quase na mesma velocidade”.
Nesse cenário, descobre-se que a preservação individual não é a solução. Sobre se isso gerará um novo contrato social ou se o retorno à normalidade restaurará os pactos existentes, o filósofo alemão argumenta:
“Ainda não estamos em condições de olhar para além da pandemia atual. A esperança nas vacinas é plausível, mas não nos dá uma resposta à questão de como será a vida depois. Muitos aguardam com ansiedade o retorno à normalidade, ou seja, às suas preocupações primárias, à cotidiana frivolidade do modo de vida consumista. Mas acredito que com o tempo esta crise levará a uma transformação da consciência coletiva dentro do individualismo. Cada vez mais entenderemos que a imunidade não é um assunto privado. Assim como a seguridade”.
“Na Europa, o Iluminismo começou com a afirmação de que o bom senso é a coisa mais bem distribuída no mundo. Existem muitas razões para duvidar da veracidade desta tese.
As imunidades e seguranças definitivamente também não estão entre as coisas mais bem distribuídas no mundo. Com mais razão, é preciso velar pela sua melhor distribuição e por uma nova consciência da discrição humana e do distanciamento não aristocrático.
Esta preocupação de longo alento constitui a verdadeira definição de democracia”.
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“A crise atual levará a uma transformação da consciência coletiva dentro do individualismo”, afirma Peter Sloterdijk - Instituto Humanitas Unisinos - IHU