A crise do coronavírus provocará mudanças na nossa relação com o corpo e nas relações sociais. Para o antropólogo e sociólogo David Le Breton, estamos enfrentando uma “ruptura antropológica” que pode não estar produzindo resultados positivos.
David Le Breton é professor na Universidade de Estrasburgo II, autor de A sociologia do corpo (Vozes, 2006) e Antropologia do corpo e modernidade (Vozes, 2011).
O artigo é publicado por La Vie, 18-03-2020. A tradução é de André Langer.
Eis o artigo.
Essa crise de coronavírus é muito pós-moderna. Ela provoca uma ruptura antropológica na relação com o corpo e no estatuto geral da pessoa. Ela isola cada indivíduo em sua casa, mas mantendo-o em contato com o mundo. Podemos encontrar semelhanças com o fenômeno hikikomori: esses adolescentes japoneses que vivem isolados e se recusam a sair de casa ao mesmo tempo que se comunicam com o mundo inteiro através das redes sociais. A presença não importa. A situação implica uma rejeição do corporal. Não vemos mais os rostos por trás das máscaras, a própria voz está suspensa, pois as interações vivas se dão à distância. Não há mais cara a cara, ou seja, uma relação com o rosto do outro.
Uma vitória do puritanismo
Esta é, de certa forma, a vitória do puritanismo: a atração provoca medo, assim como o encontro, a presença do outro. O corpo é uma ameaça: ele deve ser lavado, inspecionado e limpo de qualquer contato. As mãos devem ser limpas com gel hidroalcoólico. Nós não nos beijamos mais. Nesse contexto de reclusão, a comunicação via internet ou smartphone invadirá o mundo e ajudará a destruir ainda mais a conversação, uma das formas fundamentais da humanidade. O outro também se torna um obstáculo, um perigo. Assim, com a reclusão compulsória, assistiremos a um fortalecimento do individualismo. O indivíduo está criando um mundo cada vez mais só dele, mas constantemente se “comunicando” à distância.
Um sedentarismo compulsório
Estar em casa não será acompanhado por um ganho de interioridade. Difícil meditar ou operar um retorno sobre si mesmo, como na caminhada, através da contemplação da natureza e dos elementos, longe do vento total do mundo. O tédio nos espera, vamos andar em círculos, ruminando preocupações, preocupando-nos com os nossos entes queridos. A chegada da primavera, este momento de sacralidade, de renascimento, onde o sol e a natureza se convidam, onde a floresta começa a cantar novamente, é difícil viver atrás de sua janela.
Indivíduos ou casais provavelmente podem sair um pouco. Será mais difícil para as crianças. O relacionamento delas com o corpo no espaço público é mais delicado. Elas querem tocar em tudo. Não tenho certeza se essa reclusão ajuda a reaproximação familiar. Trata-se de um entre-si imposto, de uma coabitação que pode provocar tensões no casal, a fratria, ou nas relações mútuas. Não se pode impor a felicidade. O estilo de vida sedentário tão criticado pela saúde pública será adequado.
Depois da crise, o júbilo
Quando a crise acabar, haverá uma alegria por existir. As primeiras horas serão muito intensas. Será de encontros com os sentidos, um corpo a corpo com o mundo. Vamos nos dar conta de que se locomover é um grande privilégio que havíamos esquecido. Apenas ao preço do que podemos perder, e nossas rotinas nos fizeram escondê-lo. A privação torna desejável aquilo que temporariamente não está disponível. Esse é o gosto pela vida que nunca devemos perder e que as pessoas que experimentaram uma morte, uma separação, uma perda ou a experiência da doença sofrem. Será um renascimento. E não devemos esquecer este ensinamento propício ao encanto do mundo.
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