"Somente em fevereiro de 2022, como resultado da invasão em grande escala da Ucrânia pela Rússia, as potências ocidentais abandonaram sua política de cooperação limitada com o governo russo", afirma o pesquisador
O custo humano e o impacto nos mercados de alimentos são os efeitos mais graves da guerra entre Rússia e Ucrânia, segundo Simon Pirani, professor da Durham University, no Reino Unido. Na videoconferência intitulada "A transição dos combustíveis fósseis, a crise energética na Europa e a guerra na Ucrânia", ministrada no Instituto Humanitas Unisinos – IHU, ele destacou a situação dos refugiados e as restrições alimentares no Norte da África como consequências da guerra.
O risco de desabastecimento energético em alguns países europeus, sublinha, não só não se confirmou, como as empresas de energia lucraram na ordem de centenas de bilhões de dólares. "Somente as cinco maiores empresas petrolíferas ocidentais tiveram lucro de 134 bilhões de dólares em 2022. Há muito mais: uma pesquisa recente dos países exportadores do Golfo estimou que o superávit em conta corrente desses países, em 2022 foi, no total, mais de 600 bilhões de dólares", informa.
Na conferência, que publicamos a seguir no formato de entrevista, Pirani comenta a relação entre as potências econômicas ocidentais e a Rússia ao longo das últimas décadas em decorrência dos recursos energéticos e da negação das mudanças climáticas.
"Politicamente, as potências ocidentais viam Putin como alguém para proteger os interesses do capital no antigo espaço soviético. A Rússia foi bem recebida no chamado G7+1 das potências capitalistas mais fortes do mundo. (...) A política climática tinha de ser subvertida pela negação da ciência climática e a Rússia era importante, fundamentalmente, como fonte de petróleo, gás e carvão, que em 2008 estava despejando nos mercados mundiais em quantidades recordes. Putin era visto como um garantidor desses fluxos. A tensão política com ele era vista pelas potências ocidentais como um preço que valia a pena pagar e, esse cálculo, só mudou em fevereiro de 2022. A força motriz subjacente a esses processos foi a acumulação de capital e a necessidade de expansão econômica constante que caracteriza o capitalismo nesse estágio do seu desenvolvimento", explica.
Simon Pirani é escritor, historiador e pesquisador de energia. Também é professor honorário da Escola de Línguas e Culturas Modernas da Durham University. De 2007 a 2021, foi pesquisador sênior no Oxford Institute for Energy Studies, com um período como pesquisador visitante sênior em 2017-2019. Em 2018, publicou Burning Up: A Global History of Fossil Fuel Consumption, livro que retrata o crescimento do consumo como resultado da expansão econômica capitalista mundial.
IHU – Como as raízes da guerra e as da crise climática estão entrelaçadas?
Simon Pirani – Permita-me primeiro dizer o seguinte sobre o caráter da guerra: trata-se de uma guerra de agressão unilateral travada predominante em território ucraniano, voltada tanto à população ucraniana quanto ao exército e Estado ucranianos. O objetivo da Rússia é subjugar a Ucrânia que, durante séculos, foi a maior colônia do país. Minha própria atitude em relação à guerra baseia-se no princípio de que as vítimas do ataque imperialista têm o direito de resistir a ele. Espero que eu esteja sendo coerente com o apoio que tentei dar à resistência vietnamita à agressão dos EUA nos anos 1970 ou à resistência palestina ao apartheid israelense. Do ponto de vista político, vejo a Ucrânia da mesma forma. A diferença óbvia é que, enquanto os vietnamitas e palestinos enfrentaram a nação imperialista mais poderosa do mundo e/ou seus estados clientes, os ucranianos estão sendo aterrorizados por uma potência imperialista em declínio, que, em seu relacionamento com o capital global, é economicamente subordinado.
Uma das justificativas do Kremlin para a guerra é que a Rússia teme a aliança militar da Organização do Tratado do Atlântico Norte – OTAN, embora isso obviamente não sirva como desculpa política para assassinar e torturar civis ucranianos. Em minha opinião, também não serve como explicação para o relacionamento da Rússia com as potências ocidentais. Para entender essa relação, um ponto de partida óbvio é o desmembramento da União Soviética 32 anos atrás, após o qual a Ucrânia e outras ex-repúblicas soviéticas se tornaram totalmente independentes da Rússia pela primeira vez.
A Rússia, a Ucrânia e outros ex-estados soviéticos foram rapidamente integrados aos estados mundiais e, no início da década de 1990, sofreram a pior recessão em períodos de paz de todos os tempos. Na época, como agora, a Rússia era um dos principais exportadores de petróleo, gás e metais do mundo. O capital ocidental, de maneira geral, não buscava se apropriar desses ativos, mas transformar a Rússia em um fornecedor de matérias-primas para os mercados mundiais. Durante a década de 1990, as potências ocidentais temiam que o Estado russo entrasse em colapso.
Quando Putin sucedeu a Boris Iéltsin, em 2000, as potências ocidentais o receberam como alguém que poderia fazer com que o Estado voltasse a funcionar de forma eficaz. A primeira ação de Putin foi esmagar as forças separatistas na República sulista da Chechênia. Elas haviam derrotado o exército russo em 1996 e conquistado certa autonomia. Putin ordenou que o exército atacasse a Chechênia, usando táticas de terra arrasada contra a população civil, que agora são usadas na Ucrânia.
As potências ocidentais apoiaram totalmente essa ação como chamada de guerra ao terror que elas próprias estavam travando no Afeganistão e no Iraque. Em seguida, Putin atacou os chamados oligarcas, os empresários politicamente poderosos que haviam assumido o controle de empresas de petróleo, gás e metais. Ele os obrigou a pagar alguns impostos e os advertiu para que ficassem fora da política. Alguns ativos, principalmente aqueles que compõem a empresa de petróleo Rosneft, foram retomadas como propriedade do Estado e o controle delas foi entregue aos antigos amigos de Putin que atuam no serviço de segurança.
IHU – Quais foram as consequências disso?
Simon Pirani – Durante os dois primeiros mandatos de Putin, de 2000 a 2008, os preços do petróleo estavam subindo constantemente e a economia russa prosperou. A queda no padrão de vida das pessoas, na década de 1990, foi revertida. Nos dois primeiros mandatos, o capital russo prosperou não por ter desenvolvido capacidades industriais ou tecnológicas, mas graças ao enorme lucro inesperado que recebeu das exportações de petróleo, gás e metais. As receitas dessas exportações eram, em grande parte, reexportadas. Os grandes problemas que preocupavam os economistas russos eram a fuga de capitais e a chamada maldição dos recursos naturais. Politicamente, as potências ocidentais viam Putin como alguém para proteger os interesses do capital no antigo espaço soviético.
A Rússia foi bem recebida no chamado G7+1 das potências capitalistas mais fortes do mundo. Foi nessa época que a OTAN se expandiu para o Leste da Europa. Sete países do Leste Europeu foram admitidos em 2004. Naquela época houve discussão sobre a adesão da Rússia à OTAN, embora não tenham dado em nada. No entanto, as potências ocidentais ficaram satisfeitas com o fato de Putin exercer o poder no antigo espaço soviético como bem entendesse. Por exemplo, eles fecharam os olhos para sua invasão da Geórgia, em 2008.
A crise financeira e econômica de 2008 e 2009 foi um importante ponto de virada. O capital russo foi abalado, os padrões de vida em todo o antigo espaço soviético estagnaram e começaram a cair novamente. Houve grandes movimentos e protestos na Rússia em 2011 e 2012, os quais o regime de Putin lutou para controlar. Toda essa instabilidade culminou com o levante de Maidan na Ucrânia em 2013 e 2014, a derrubada do presidente Viktor Yanukovich, o surgimento de forças separatistas no Leste da Ucrânia, a intervenção militar da Rússia em apoio a elas e a anexação da Crimeia pela Rússia.
Nesse ponto, as potências ocidentais intervieram para disciplinar Putin. Foram impostas sanções à Rússia, mas elas eram limitadas. Essas medidas não dissuadiram a Rússia de intervir na Síria em 2015 e em 2016 para apoiar a guerra do regime de Bashar al-Assad contra sua própria população. Os acontecimentos lá mostraram que, embora as potências ocidentais fingissem que não havia esferas de influência para exércitos imperiais concorrentes, essas esferas de influência de fato existiam. Somente em fevereiro de 2022, como resultado da invasão em grande escala da Ucrânia pela Rússia, as potências ocidentais abandonaram sua política de cooperação limitada com o governo russo.
IHU – Por que a dinâmica que levou à guerra da Ucrânia está relacionada com a dinâmica que levou à crise climática?
Simon Pirani – O Tratado internacional sobre mudança climática foi firmado no Rio de Janeiro em 1992. Antes disso, na década de 1980, os cientistas do clima haviam chegado a um consenso sobre os perigos do efeito estufa e ao fato de que as atividades econômicas humanas, principalmente a queima de combustíveis fósseis, eram a principal causa. O ano de 1992 marcou o ponto em que as evidências eram tão fortes que foram aceitas por todos os governos do mundo.
O tratado do Rio previa a adoção de medidas para evitar o aquecimento global perigoso, mas nenhuma delas foi adotada. Os EUA e outras potências resistiram ao princípio de que as nações deveriam adotar metas obrigatórias para reduzir suas emissões. Foi inventado um mito de que os mecanismos de mercado poderiam ser usados para fazer as mudanças necessárias, embora o único mecanismo que poderia ter algum efeito, um imposto global sobre o carbono, tenha sido rejeitado.
Esse mito foi a base do Protocolo de Quioto, em 1997, que previu o chamado comércio de emissões. O resultado foi que as emissões de gases do efeito estufa provenientes da queima de combustíveis fósseis aumentaram todos os anos desde 1992, exceto por breves pausas em 2009, devido à crise econômica, e, em 2020, devido à pandemia de Covid-19.
O volume de gases do efeito estufa que entra na atmosfera a cada ano é, agora, mais de 60% maior do que era em 1992. Esse é um fracasso desastroso dos governos mais fortes do mundo, pelo qual a sociedade como um todo pagará um preço terrível. Talvez isso possa ser comparado ao fracasso das potências europeias em evitar a Primeira Guerra Mundial em 1914.
Podemos olhar para trás, para o início dos anos 2000, e ver o contexto político desse fracasso. A União Soviética havia entrado em colapso, reforçando as ilusões do capital sobre seu próprio poder. A globalização foi turbinada pela tecnologia eletrônica e pela expansão das zonas financeiras offshore. O neoliberalismo estava em seu apogeu, travando uma guerra contra a regulamentação e a orientação keynesiana da política econômica. Naquele mundo, a política climática tinha de ser subvertida pela negação da ciência climática e a Rússia era importante, fundamentalmente, como fonte de petróleo, gás e carvão, que em 2008 estava despejando nos mercados mundiais em quantidades recordes. Putin era visto como um garantidor desses fluxos. A tensão política com ele era vista pelas potências ocidentais como um preço que valia a pena pagar e, esse cálculo, só mudou em fevereiro de 2022. A força motriz subjacente a esses processos foi a acumulação de capital e a necessidade de expansão econômica constante que caracteriza o capitalismo nesse estágio do seu desenvolvimento.
IHU – O que é a crise do petroestado russo?
Simon Pirani – Se aceitarmos que o Estado russo, sob o comando de Putin, é uma criatura do capital, na forma como o descrevi, poderemos entender melhor suas ações. Farei dois breves comentários sobre isso.
Primeiro, a função central do Estado russo – como de qualquer Estado – é o controle social. Se pensarmos em como o mundo parecia a partir do Kremlin, o controle era extremamente necessário aos seus olhos. Além do levante de Maidan, em 2014, na Ucrânia, houve, em 2020, uma enorme revolta nacional em Belarus contra a manipulação das eleições. Em 2020 e 2021, houve uma onda de protestos na própria Rússia. Em janeiro de 2022, houve disputas trabalhistas e distúrbios de rua no Cazaquistão que abalaram o governo local. Parece que a decisão de Putin de invadir a Ucrânia foi desencadeada pelo seu fracasso em fazer o presidente Volodymyr Zelensky recuar em questões de soberania ucraniana. Porém, esses momentos iniciais também o preocupavam muito e fazem parte do contexto da sua decisão de invadir.
O segundo comentário sobre isso é que, em tempos de crise, os Estados são conduzidos pelo caminho do autoritarismo, da promoção de ideologias nacionalistas, xenófobas, quase fascistas e fascistas, e do militarismo imperialista. Essas são ferramentas políticas e ideológicas de controle social que são usadas para mobilizar setores da população a favor do regime ou pelo menos para garantir a aquiescência da população. No governo Putin essas ferramentas têm sido cada vez mais usadas e, à medida que o militarismo imperialista se moveu pelo centro da política, vimos o uso de formações militares quase estatais. O grupo Wagner é o maior, mas não é, de forma alguma, o único. Essa abordagem culminou na rebelião do mês passado [junho de 2023] e com a instabilidade do regime. Agora, o uso dessas ferramentas ideológicas perpassa as funções de gestão econômica do Estado.
Na última década, o governo de Putin sacrificou várias vezes a gestão eficiente da economia capitalista em prol dessa política e ideologia. A indústria do petróleo, maior fonte de receitas de exportação em geral, não foi afetada por isso. Porém, a indústria do gás foi. Durante décadas, ela foi uma parte fundamental da relação comercial entre a União Soviética – e depois a Rússia – com a Alemanha e outros países europeus. Agora, essa relação foi rompida.
Da década de 1990 até 2021, houve constantes conflitos relativos ao gás entre a Rússia e a Ucrânia, especialmente com relação aos termos com que a Ucrânia compraria o gás e o transportaria para a Europa. Esses conflitos começaram, principalmente, como disputas comerciais, mas se tornaram cada vez mais políticos. O resultado final foi que em 2016 a Ucrânia interrompeu as compras diretas de gás russo e a indústria de gás russa perdeu seu segundo maior mercado de exportação depois da Alemanha. Enquanto isso, em 2016, as exportações de gás para a Europa continuaram, apesar das sanções impostas pela anexação da Crimeia.
Em 2022, em resposta à invasão total da Ucrânia, a Alemanha e outros países europeus não impuseram sanções ao gás russo, mas disseram que deixariam de comprá-lo por um período de anos. O governo russo decidiu, talvez na esperança de causar divisões entre os países europeus, que ele próprio cortaria a maior parte das entregas de gás para a Europa. A Gazprom, grande produtora de gás controlada pelo Estado, interrompeu as entregas com as quais estava comprometida com contratos de longo prazo. Então, em poucas semanas, as relações entre a Gazprom e as grandes empresas de energia europeia, que haviam sido construídas ao longo de décadas, foram destruídas. Em junho do ano passado, a Gazprom reduziu a zero os fluxos através do gasoduto Nord Stream do norte. Assim, quando ele foi explodido, em setembro, por pessoas desconhecidas, não havia gás passando por ele há três meses. Essa sanção autoimposta das exportações de gás é a manifestação mais recente e mais significativa da tendência do governo russo de minar os interesses comerciais do capital russo em prol de seus objetivos nacionalistas e militares ideologizados.
A terceira parte disso tem a ver com o esforço das potências ocidentais para controlar, mas não destruir o Estado russo. Embora a sanção autoimposta do gás pela Rússia tenha destruído o negócio de exportação que levou tanto tempo para ser construído, as sanções das potências ocidentais às exportações de petróleo russo foram amplamente ineficazes. O limite de preço de 60 dólares por barril, estabelecido em dezembro do ano passado, resultou no redirecionamento das exportações russas de petróleo para a Índia e outros países asiáticos. As empresas comerciais criaram esquemas para renomear e revender o petróleo russo. Como o preço do petróleo estava tão alto no ano passado, as receitas do orçamento russo também foram excepcionalmente altas. O importante é ressaltar que a ineficácia das sanções é, em parte, resultado de decisões políticas deliberadas.
Quando as sanções mais rígidas estavam sendo preparadas, alguns governos europeus sugeriram sancionar os serviços de transportes na Europa, dos quais os exportadores de petróleo russo dependem fortemente e não podem ser facilmente substituídos. Mas o governo americano interveio para impedir essas medidas porque temia que elas elevassem os preços globais do petróleo a um nível que colocaria em risco a recuperação econômica pós-pandemia. Agora, outras sanções, como as relativas à exportação de várias tecnologias para a Rússia, têm sido mais eficazes, mas têm pouco impacto imediato nos fluxos de caixa e levam tempo para produzir resultado. As sanções impostas aos fluxos financeiros também foram irregulares. Agora, na prática, é quase impossível aos bancos russos acessarem fundos de mercados internacionais, especialmente nos mercados ocidentais. Mas muitos dos mecanismos para armazenar e ocultar a riqueza da burguesia russa ainda estão funcionando muito bem. As organizações anticorrupção russas ainda estão produzindo relatórios, mês após mês, sobre criminosos de guerra cujos bens familiares não foram afetados pelas sanções de forma alguma. Em minha opinião, a conclusão é que as sanções foram criadas não para levar o governo russo à falência ou para impedi-lo de exportar petróleo, mas para limitar seu espaço de manobra e discipliná-lo.
IHU – Por que a crise energética de 2022 serviu ao poder corporativo?
Simon Pirani – O efeito combinado das sanções ocidentais, das sanções autoimpostas russas e da volatilidade do mercado no ano passado produziu um aumento acentuado nos preços do gás e um aumento nos preços de petróleo. Havia o temor de que a escassez de suprimento de gás para a Europa resultasse em algum racionamento no inverno, mas esses temores não se concretizaram, embora os mesmos problemas poderão se repetir no próximo inverno. Além disso, a longo prazo, as potências ocidentais declararam sua determinação em reduzir a dependência do fornecimento de petróleo e gás da Rússia, e a maioria, mas não todas, das grandes empresas petrolíferas ocidentais disseram que venderiam ou fechariam suas operações de produção de petróleo na Rússia. Agora, políticos executivos de empresas apresentaram isso ao público como sendo uma “crise energética”. Precisamos questionar esse termo e o discurso em torno dele. Apresento quatro motivos para isso:
1) Os efeitos mais graves da guerra não foram sobre a energia. Além da terrível destruição na Ucrânia, esses efeitos foram: a) o custo humano para milhões de pessoas que fugiram da Ucrânia como refugiados e b) o impacto nos mercados de alimentos, especialmente no Norte da África devido às restrições das exportações russas e ucranianas de produtos agrícolas.
2) O aumento do preço de varejo do gás e da eletricidade para residências, especialmente na Europa, resultou de decisões de grandes empresas de energias que atuam em mercados liberalizados e de decisões de governos que regulamentam esses mercados. A influência da guerra foi apenas indireta. Alguns governos, de fato, decidiram proteger as residências contra esses impactos e todos os governos poderiam ter feito isso.
3) As empresas de energia lucraram com esses eventos na ordem de centenas de bilhões de dólares. Somente as cinco maiores empresas petrolíferas ocidentais tiveram lucro de 134 bilhões de dólares em 2022. Há muito mais: uma pesquisa recente dos países exportadores do Golfo estimou que o superávit em conta corrente desses países, em 2022 foi, no total, mais de 600 bilhões de dólares. Esses governos estão literalmente se perguntando o que fazer com todo o dinheiro.
4) Este item é o mais relevante para a crise climática: todas as alegações sobre a “crise energética” pressupõem que há um nível fixo de demanda por eletricidade e combustíveis e que isso deve ser atendido a todo custo. Esse talvez seja o engano mais perigoso de todos. No ano passado, um instituto de pesquisa na Alemanha produziu relatórios detalhados mostrando como o investimento em isolamento de edifícios e bombas de calor – para reduzir a quantidade de gás usado para aquecimento –, em eletricidade renovável e mudanças nos processos industriais com uso intensivo de gás, poderiam reduzir a demanda de gás.
Em dois ou três anos, essas pesquisas argumentam, seria possível economizar o equivalente ao volume de gás russo importado pela Alemanha. Essa é uma grande oportunidade para introduzir políticas radicais para se afastar da dependência de combustíveis fósseis, políticas que, de qualquer forma, estão atrasadas há muitos anos devido à necessidade de evitarmos mudanças climáticas perigosas. As potências ocidentais, longe de abraçarem essa oportunidade, ao contrário, optaram por redobrar seu compromisso com os combustíveis fósseis e investir em novos suprimentos de petróleo e gás de fontes não russas.
Assim, até 2022 as empresas na Europa encomendaram novos terminais de equipamentos suficientes para importar gás natural liquefeito mais do que suficiente para substituir todas as importações de gás russo. Os EUA que exportam gás natural e liquefeito aprovaram instalações portuárias o suficiente para dobrar sua capacidade de exportação. Os governos também usaram cinicamente a chamada “crise energética” para aprovar novos investimentos em grandes campos de petróleo, como campo de Willow, no Alasca (EUA), e outro campo no mar do Norte (Reino Unido). Esses campos de petróleo levam anos para serem desenvolvidos e, portanto, eles não serão capazes de produzir petróleo por cinco ou mais provavelmente dez anos no mínimo.
Portanto, eles não terão impacto algum na escassez causada pela guerra. Entretanto, eles aumentarão o problema do aquecimento global em um momento em que a Agência Internacional de Energia, as Nações Unidas e os cientistas do clima estão alertando que nenhum novo campo de petróleo deve ser comissionado. Essas decisões nos dizem algo sobre as reais intenções dos governos que alegam estar lidando com a crise climática. Eles pretendem continuar queimando combustíveis fósseis muito tempo depois do ponto em que isso deveria parar, se quisermos evitar o aquecimento global perigoso. É uma perspectiva assustadora e precisamos encontrar maneiras de resistir a ela.
Voltando ao comentário que fiz no início, sobre as relações da causa de emergência climática e as causas da guerra, nas décadas de 1990 e 2000, o impulso predominante do capitalismo de se expandir a todo custo moldou a forma como as potências ocidentais abraçaram Putin e sua equipe como guardiãs da ordem, que poderiam supervisionar a integração da Rússia com os mercados globais. Restringir o nacionalismo imperialista desta equipe era a última coisa em que pensavam. Foi esse mesmo impulso que os levou a fracassar de forma catastrófica e encontrar alguma estratégia que pudesse implementar a redução ao uso de combustíveis fósseis cuja necessidade foi reconhecida no tratado da Rio 92.
IHU – Como as sociedades podem promover a transição dos combustíveis fósseis?
Simon Pirani – O processo das negociações internacionais depois do tratado do Rio não só falhou em desacelerar o aumento implacável do consumo de combustíveis fósseis e a emissão de gases do efeito estufa, como tem sido usado como ferramenta ideológica para produzir um discurso e convencer a sociedade de que as nações do mundo estão lidando do problema. Nos últimos anos, os perigos do aquecimento global se tornaram mais evidentes para milhões de pessoas devido a mudanças alarmantes no clima. Muitas centenas de milhares, talvez milhões, de pessoas muito jovens têm expressado suas preocupações profundas com as mudanças climáticas em greves escolares e outras ações. Tudo isso tem colocado uma tensão no discurso com relação às conversações sobre o clima. A distância entre as palavras e as ações é simplesmente muito grande.
Por um lado, vemos as negociações sendo retomadas mais abertamente pelas empresas petrolíferas. O presidente das negociações neste ano nos Emirados Árabes Unidos, o sultão Ahmed al-Jaber, chefe da empresa petrolífera estatal, resistiu a qualquer discussão sobre a redução da queima de combustíveis fósseis. Defendeu, ao invés disso, tecnologias de captura de carbono que não podem resolver o problema. Por outro lado, vemos cada vez mais ataques verbais às empresas petrolíferas. António Guterres, secretário-geral da Organização das Nações Unidas – ONU, atacou a proposta de al-Jaber, como um meio para as indústrias do petróleo se tornarem “destruidores do planeta mais eficientes”.
Menciono esses exemplos não porque acho que Guterres pode nos mostrar o caminho a seguir, mas porque acho que os discursos em torno das negociações internacionais estão se desfazendo. Ele não está conseguindo atingir seu propósito ideológico. Está falhando em nos convencer de que o governo tem o controle. Em minha opinião, o processo de negociação e os governos que participam dele são o problema e não a solução. A solução precisa ser encontrada pela sociedade em oposição a esses governos.
Esse problema está conosco há muitos anos e continuará conosco por muitos anos ainda. O sinal mais esperançoso é que há sinal para que seja formada uma ampla coalizão envolvendo os jovens que mencionei, o movimento trabalhista, amplas camadas da sociedade civil e os cientistas do clima, que até agora se sentiam isolados porque seus apelos aos políticos eram ignorados.
Eu diria que essa coalizão pode se basear em alguns princípios fundamentais e sugiro sete:
1) Exigir que os governos adotem orçamentos de carbono e não metas de zero carbono. Esse é um conceito científico válido; é a ideia de que precisamos chegar a um estado em que o volume de gases do efeito estufa bombeados para a atmosfera, menos o volume retirado pelas florestas, seja zero.
Mas este conceito tem sido mal utilizado pelas empresas petrolíferas e seus amigos que pressionaram politicamente os cientistas para que incluíssem projeções completamente irrealistas de remoção artificial de gases do efeito estufa em seus cenários.
Essencialmente é disso que trata a tensão entre Guterres e al-Jaber. Agora, os orçamentos de carbono evitam esses problemas estabelecendo a quantidade de emissões a qual a economia de qualquer país deve ser limitada a fim de garantir que as mudanças climáticas perigosas sejam evitadas, assumindo zero remoção artificial de gases do efeito estufa.
2) Esses orçamentos de carbono devem ser elaborados com base em princípios de equidade entre o sul e o norte global. Os países ricos, que são historicamente responsáveis pela maior parte das emissões de gases do efeito estufa, devem não só fazer os maiores e mais rápidos cortes no uso de combustíveis fósseis, mas também prever seus impactos, que já estão sendo sentidos no sul global, denominados “perdas e ganhos”.
3) A sociedade deve interromper, por todos os meios necessários, novos projetos de petróleo e gás e novas infraestruturas que utilizem intensivamente combustíveis fósseis como estradas e aeroportos.
4) A base de fornecimento de energia deve ser a eletricidade, produzida a partir de fontes renováveis. Devemos trabalhar para que essa energia seja fornecida como um direito e serviço, e não como commodity por entidades públicas. Embora os grandes parques solares e eólicos farão parte do sistema, as fontes descentralizadas controladas diretamente pelas comunidades, pelos municípios, devem ser usadas na medida em que forem tecnologicamente possíveis.
5) Devemos questionar sistematicamente as alegações das grandes corporações de que as alegações técnicas, como a produção em larga escala de hidrogênio ou a substituição de carros movidos a gasolina por carros elétricos, são os principais meios para resolver a crise climática.
6) O “crescimento verde” é uma ficção e a ideia de que o crescimento verde cria empregos, que são os melhores que os trabalhadores podem esperar, é uma ficção. Contra isso, precisamos de políticas econômicas que sustentem a transição tanto para longe dos combustíveis fósseis quanto em direção ao trabalho criativo e significativo.
7) Devem ser priorizadas políticas que reduzam o consumo de combustíveis fósseis e, ao mesmo tempo, melhorem os serviços que eles oferecem. O isolamento das residências para reduzir ou evitar a necessidade de aquecimento artificial combinados com bombas de calor elétricas é um exemplo. Outro exemplo é o desenvolvimento de sistemas de transporte urbano que substituam o transporte público e mudanças no projeto urbano e no uso de carros particulares nas cidades.
Não sei como esses objetivos podem ser alcançados, mas posso fazer algumas observações gerais sobre isso.
Primeiro, é importante não fingir que no fim tudo ficará bem e promover um falso otimismo. Milhões de pessoas já tiveram suas vidas arruinadas por fenômenos meteorológicos relacionados ao clima e outros milhões sofrerão, aconteça o que acontecer. Ao mesmo tempo, não devemos perder a esperança. O processo de transição dos combustíveis fósseis precisa ocorrer em uma escala de tempo muito curta em termos históricos, em duas ou três décadas. Mas pode ser feito.
Em segundo lugar, a desobediência civil desempenhará um papel cada vez maior nesse moinho. Estamos vendo isso no Reino Unido e na Europa e também estamos vendo um policiamento cada vez mais autoritário desses protestos. Esse conflito vai se intensificar.
Em terceiro lugar, devemos focar nas diversas maneiras pelas quais as políticas podem, simultaneamente, se afastar dos combustíveis fósseis e mudar a maneira como vivemos para melhor. Enfrentar as mudanças climáticas e viver uma vida melhor não são contraditórios, são a mesma coisa. Se não colocarmos essas ideias no centro das ações, nunca mobilizaremos a sociedade como um todo em torno da questão.