18 Novembro 2015
Depois da "crise financeira" e da "crise dos refugiados", a guerra poderia matar a Europa, a menos que a Europa dê um sinal de existir diante da guerra. Esse é o continente que pode trabalhar para a refundação do direito internacional, vigiar para que a segurança das democracias não seja paga com o fim do Estado de direito, e buscar na diversidade das comunidades presentes no seu território a matéria para uma nova forma de opinião pública.
A opinião é do filósofo francês Etienne Balibar, professor emérito da Universidade de Paris X – Nanterre, em artigo publicado no jornal Il Manifesto, 17-11-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Sim, estamos em guerra. Ou melhor, já estamos todos dentro da guerra. Atingimos e nos atingem. Depois de outros, e, infelizmente, previsivelmente antes de outros, pagamos o preço e portamos o luto. Cada pessoa morta, certamente, é insubstituível. Mas de que guerra se trata?
Não é simples defini-la, porque é feita de diversos tipos, estratificados ao longo do tempo e que já parece inextrincáveis. Guerras entre Estado e Estado (ou, melhor, pseudo-Estado, como "Daesh"). Guerras civis nacionais e transnacionais.
Guerras entre "civilizações" ou que ainda se consideraram como tais. Guerras de interesses e de clientelas imperialistas. Guerras religiosas e sectárias, ou justificadas como tais.
É o grande êxtase do século XXI, que, no futuro – admitindo-se que saiamos vivos – será comparada a modelos antigos, a Guerra do Peloponeso, a Guerra dos Trinta Anos, ou mais recentes: a "guerra civil europeia" entre 1914 e 1945.
Essa guerra, em parte provocada pelas intervenções militares estadunidenses no Oriente Médio, antes e depois do 11 de setembro de 2001, intensificou-se com as intervenções posteriores, das quais já participam a Rússia e a França, cada país com os seus próprios objetivos.
Mas as suas raízes também afundam na feroz rivalidade entre Estados que aspiram, todos, à hegemonia regional: Irã, Arábia Saudita, Turquia, Egito e, em certo sentido, Israel – até agora a única potência nuclear.
Em uma violenta ab-reação coletiva, a guerra precipita todas as contas não pagas das colonizações e dos impérios: minorias oprimidas, fronteiras traçadas arbitrariamente, recursos minerais expropriados, zonas de influência em disputa, contratos gigantescos de fornecimento de armamentos. A guerra busca e encontra apoio entre as populações adversárias.
O pior, talvez, é que ela reative "ódios teológicos" milenares: os cismas do Islã, o confronto entre os monoteísmos e os seus sucedâneos seculares. Nenhuma guerra religiosa, digamo-lo claramente, tem as suas causas na própria religião: sempre há um "substrato" de opressões, conflitos de poder, estratégias econômicas. E riquezas grandes demais e misérias grandes demais.
Mas, quando o "código" da religião (ou da "contrarreligião") se apropria disso, a crueldade pode ultrapassar todos os limites, porque o inimigo se torna anátema. Nasceram monstros da barbárie, que se reforçam com a loucura da sua própria violência – como Daesh com as decapitações, os estupros das mulheres reduzidas à escravidão, as destruições de tesouros culturais da humanidade.
Mas proliferam igualmente outras barbárie, aparentemente mais "racionais", como a "guerra dos drones" do presidente Obama (prêmio Nobel da Paz), que, por enquanto é um fato, mata nove civis para cada terrorista eliminado.
Nessa guerra nômade, indefinida, polimorfa, dissimétrica, as populações das "duas margens" do Mediterrâneo tornaram-se reféns. As vítimas dos atentados de Paris, depois de Madri, Londres, Moscou, Túnis, Ancara etc., com os seus vizinhos, são reféns.
Os refugiados que buscam asilo ou encontra a morte aos milhares a uma pequena distância das costas da Europa são reféns. Os curdos alvejados pelo Exército turco são reféns. Todos os cidadãos dos países árabes são reféns, na garra de ferro forjada com estes elementos: terror de Estado, jihadismo fanático, bombardeios de potências estrangeiras.
O que fazer, então? Acima de tudo, e absolutamente, refletir, resistir ao medo, às generalizações, às pulsões de vingança. Naturalmente, tomar todas as medidas de proteção civil e militar, de inteligência e de segurança, necessárias para impedir as ações terroristas ou combatê-las, e se possível também julgar e punir os seus autores e cúmplices.
Mas, ao fazer isso, exigir dos Estados "democráticos" a vigilância máxima contra os atos de ódio em relação aos cidadãos e aos residentes que, por causa da sua origem, religião ou hábito de vida, são indicados como o "inimigo interno" pelos autoproclamados patriotas.
E também: exigir dos próprios Estados que, no momento em que reforçarem os seus dispositivos de segurança, respeitem os direitos individuais e coletivos que fundamentam a sua legitimidade. Os exemplos do "Patriot Act" e de Guantánamo mostram que isso não é óbvio.
Mas acima de tudo: recolocar a paz no centro da agenda, mesmo que alcançá-la pareça tão difícil. Eu digo a paz, não a "vitória": a paz duradoura, justa, feita não de covardia e compromissos, ou de contraterror, mas de coragem e intransigência. A paz para todos aqueles que têm interesse nela, nas suas margens deste mar comum que viu nascer a nossa civilização, mas também os nossos conflitos nacionais, religiosos, coloniais, neocoloniais e pós-coloniais.
Eu não tenho ilusões sobre as probabilidades de realização desse objectivo. Mas não vejo de que outro modo, para além do impulso moral que isso pode inspirar, as iniciativas de resistência à catástrofe possam se especificar e se articular. Vou dar três exemplos.
Por um lado, a retomada da efetividade do direito internacional e, portanto, da autoridade das Nações Unidas, reduzidas a nada pelas pretensões de soberania unilateral, pela confusão entre humanitário e securitário, pelo assujeitamento à "governança" do capitalismo globalizado, pela política das clientelas que se substituiu à dos blocos. Portanto, é necessário ressuscitar as ideias de segurança coletiva e de prevenção dos conflitos, o que pressupõe uma refundação da Organização – certamente começando pela Assembleia Geral e pelas "coalizões regionais" de Estados, em vez da ditadura de algumas potências que se neutralizam reciprocamente ou se aliam apenas para o pior.
Por outro lado, a iniciativa dos cidadãos de atravessar as fronteiras, superar as contraposições entre as fés e entre os interesses das comunidades, o que pressupõe, em primeiro lugar, poder expressá-las publicamente. Nada deve ser tabu, nada deve ser imposto como ponto de vista único, porque, por definição, a verdade não pré-existe à argumentação e ao conflito.
Portanto, é necessário que os europeus de cultura secular e cristã saibam o que os muçulmanos pensam sobre o uso de jihad para legitimar aventuras totalitárias e ações terroristas, e que meios eles têm para resistir a partir de dentro. Do mesmo modo, os muçulmanos (e os não muçulmanos) no Sul do Mediterrâneo devem saber em que ponto estão as nações do "Norte", dominantes no passado, em relação ao racismo, à islamofobia, ao neocolonialismo.
E acima de tudo, é preciso que os "ocidentais" e os "orientais" construam juntos a linguagem de um novo universalismo, assumindo o risco de falar uns com os outros. O fechamento das fronteiras, a sua imposição a despeito do multiculturalismo das sociedades de toda a região, isso já é guerra civil.
Mas, nessa perspectiva, a Europa praticamente tem uma função insubstituível, que deve honrar apesar de todos os sintomas da sua atual decomposição, ou para remediá-los, na urgência. Cada país tem a capacidade de arrastar todos os outros para o impasse, mas os países, todos juntos, poderiam construir saídas e construir barreiras de contenção.
Depois da "crise financeira" e da "crise dos refugiados", a guerra poderia matar a Europa, a menos que a Europa dê um sinal de existir diante da guerra. Esse é o continente que pode trabalhar para a refundação do direito internacional, vigiar para que a segurança das democracias não seja paga com o fim do Estado de direito, e buscar na diversidade das comunidades presentes no seu território a matéria para uma nova forma de opinião pública.
Exigir dos cidadãos, ou seja, de todos nós, que estejam à altura das suas tarefas é pedir o impossível? Talvez. Mas também é afirmar que temos a responsabilidade de fazer acontecer aquilo que ainda é possível ou aquilo que pode voltar a ser.
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Estamos dentro da guerra: é a morte da Europa? Artigo de Etienne Balibar - Instituto Humanitas Unisinos - IHU