Dr. Fantástico voltou. Artigo de Fabrizio Tonello

Ilustração da capa do filme "Dr. Fantástico". (Foto: Reprodução)

08 Agosto 2022

 

"As negociações para o desarmamento não avançaram e a Ucrânia criou uma oportunidade para colocar de volta à mesa a ideia de que 'pequenas' ogivas nucleares poderiam ser usadas no front. Pura loucura, obviamente, enquanto há líderes mundiais que falam de forma superficial e irresponsável sobre esse tema, sem considerar o efeito devastador e duradouro que o uso de ogivas nucleares teria sobre a população e o meio ambiente", escreve Fabrizio Tonello, professor de ciências da opinião pública da Universidade de Pádua, na Itália, em artigo publicado por Il Manifesto, 06-08-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.

 

Eis o artigo.

 

Tomada externa, durante o dia. Imagens de um bairro degradado, mas não destruído, poderia ser o Bronx. Casas semiabandonadas, mas não em escombros. Estamos na rua, uma garota de calça preta e suéter de gola alta entra em cena, seu cabelo está preso em um coque e parece despachada, passa na frente de uma van branca aparentemente intacta e fala: "Houve um ataque nuclear, não me perguntem como ou por que, apenas saibam que The Big One aconteceu. Ok? O que fazemos agora?"

 

Fala com o tom de um corretor de imóveis, ou um vendedor de sofás apresentando ofertas especiais. As recomendações são aquelas que são dadas às crianças quando há uma forte tempestade: não fiquem na rua, entrem em casa rápido e fiquem lá.

 

Surge a dúvida que seja uma paródia porque a encenação pseudotranquilzadora parece boba demais para ser realmente um vídeo sobre o que fazer no caso de uma guerra nuclear.

 

A mensagem implícita é que mesmo depois da explosão da bomba, a vida continua, basta ficar em casa e seguir as instruções das autoridades.

 

Infelizmente não é uma paródia: é uma mensagem oficial da Proteção Civil de Nova York, que vem com números de telefone para contatar em caso de necessidade.

 

Hoje se passaram 77 anos desde aquela manhã de 6 de agosto de 1945, quando “Little boy” foi largada sobre a cidade japonesa de Hiroshima, matando imediatamente mais de cem mil pessoas e um número incalculável nos anos seguintes. As consequências de uma explosão de ogiva nuclear são bem conhecidas: a infame coluna de fumaça em forma de cogumelo, uma enorme bola de fogo, calor insuportável, danos às infraestruturas. No entanto, parece que as autoridades estadunidenses ainda não querem entender os efeitos devastadores que a radiação tem na saúde humana para aqueles que não forem mortos no momento do impacto.

 

Na realidade, a doença da radiação provoca graves danos ao corpo quando uma forte dose de radiação é absorvida em um curto período de tempo. Alguns sintomas ocorrem imediatamente: náuseas e vômitos, tonturas. Fraqueza, fadiga, queda de cabelo e diminuição da pressão arterial aparecem logo em seguida. Seguem-se diarreia, dor de cabeça, febre, sangramento descontrolado e problemas neurológicos. Por fim, os cânceres: leucemia e câncer de tireoide, pulmão e mama são os mais comuns. As autoridades estadunidenses negaram durante anos a existência desses efeitos, aliás revelados alguns meses após o bombardeio pelo jornalista australiano John Hershey, primeiro numa longa reportagem no New Yorker e depois no seu livro Hiroshima.

 

Depois do bombardeio de Hiroshima e Nagasaki, houve décadas de experimentos nucleares na atmosfera: primeiro os Estados Unidos, depois a União Soviética, depois a Grã-Bretanha, a França, a China. O mundo pôde, portanto, constatar que os efeitos da radiação não ocorrem apenas no local da explosão. O material radioativo vaporizado cai de volta à Terra como uma precipitação, mesmo a milhares de quilômetros da explosão, contaminando suprimentos de alimentos e água. Como o material radioativo usado nesses tipos de bombas (urânio enriquecido e plutônio) dura décadas, senão séculos, os solos, lagos e rios permaneceriam contaminados por um período de tempo muito longo, como inclusive sabemos após os acidentes nas usinas nucleares de Chernobyl e Fukushima.

 

No caso de uma guerra com o uso de numerosas ogivas atômicas, os cientistas também se preocupam com um possível "inverno nuclear" criado por grandes quantidades de fumaça e partículas projetadas na atmosfera, bloqueando parcialmente a luz solar. Um fenômeno que conhecemos porque também ocorre por ocasião de explosões vulcânicas catastróficas, como as que ocorreram em Krakatoa e Tambora no século XIX. Sem o sol, as colheitas obviamente não podem amadurecer e a produção de alimentos é insuficiente para evitar a carestia.

 

Tudo isso, claro, não aparece no vídeo de 90 segundos da Defesa Civil de Nova York, cujo objetivo é “tranquilizar” os cidadãos. Deve-se dizer que a garota eficiente que recomenda tomar um banho caso estiver ao ar livre no momento da explosão tem ilustres predecessores no campo da propaganda.

 

Durante a primeira Guerra Fria, embora o governo federal soubesse perfeitamente o quanto seria destrutivo o uso de armas nucleares, fez esforços titânicos para convencer os cidadãos estadunidenses de que a guerra não só era possível, mas que não teria consequências catastróficas se fossem tomadas as devidas precauções.

 

Era a época dos exercícios “Duck and Cover”, em que os professores obrigavam as crianças do ensino fundamental a se jogarem debaixo da carteira e taparem os olhos quando viam um clarão do lado de fora das janelas da sala de aula. Inaugurou-se um próspero mercado de abrigos antinucleares em cada jardim, onde as famílias estadunidenses poderiam ficar confinadas, bem protegidas das radiações. O Pentágono também alistou o mundo dos cartoons para convencer os cidadãos a se prepararem: foi criada a tartaruga Bert que, bem protegida em seu casco, dava um exemplo do que se deveria fazer.

 

Claro que tudo isso era e é insensato, pelas razões que mencionamos acima, bem como pelo fato de que seria necessário permanecer em um abrigo hermeticamente fechado por semanas ou meses. Se os governos, de Nova York ao Veneto (o governador Zaia propôs seriamente algumas "soluções simples" em um seu vídeo alguns meses atrás), insistem nessa linha, é porque se quer acostumar os cidadãos à ideia da guerra permanente, incluindo a guerra nuclear.

 

Não é por acaso que os Estados Unidos sempre se recusaram a assumir o compromisso solene de não serem os primeiros a usar armas atômicas: eles querem manter o privilégio de poder ameaçar outros países para obter vantagens militares e diplomáticas. Em 1984, Ronald Reagan, em seu discurso sobre o Estado da União, parecia ter entendido a dimensão do perigo: "Uma guerra nuclear não pode ser vencida e nunca deve ser travada", disse ele. Desde então as negociações para o desarmamento não avançaram e a Ucrânia criou uma oportunidade para colocar de volta à mesa a ideia de que "pequenas" ogivas nucleares poderiam ser usadas no front. Pura loucura, obviamente, enquanto há líderes mundiais que falam de forma superficial e irresponsável sobre esse tema, sem considerar o efeito devastador e duradouro que o uso de ogivas nucleares teria sobre a população e o meio ambiente.

 

Em 1991, com o fim da primeira Guerra Fria, o "Relógio do Juízo Final" - que o Boletim dos Cientistas Atômicos criou em 1947 para avaliar as consequências da introdução das novas armas – marcava 17 minutos antes da meia-noite. Desde então, o ponteiro se aproximou cada vez mais da meia-noite, ou seja, da catástrofe nuclear. Estamos de volta ao tempo do Doutor Fantástico, mas não temos mais Peter Sellers entre nós.

 

 

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