A Criação de Adão. Afresco de Michelangelo
Rodrigo Petronio, escritor e filósofo, doutor em Literatura Comparada e professor titular da Faculdade de Comunicação da Fundação Armando Álvares Penteado – FAAP, é um dos leitores mais profícuos da obra do filósofo alemão Peter Sloterdijk. Dentre os dois mestrados de Petronio, um deles (em Ciência da Religião pela PUC-SP) é sobre o filósofo contemporâneo e intitula-se “Uma Antropologia para Além do Humano: Religião e Hominização na Obra Esferas de Peter Slotedijk".
O IHU transimitirá na terça-feira, dia 21 de dezembro, às 10h, a conferência intitulada "Depois de Deus", a qual debaterá exclusivamente sobre o mais recente livro de Peter Sloterdijk, “Pós-Deus” [Editora Vozes, 2019].
Imagem: Card de divulgação do evento com Rodrigo Petronio.
Rodrigo possui uma vasta pesquisa que relaciona a obra do filósofo alemão com questões religiosas. Seja através da costura entre teologia, tecnologia e homonização ou mesmo os pertinentes apontamentos entre Filosofia da Religião e a crítica da Modernidade, Rodrigo Petronio analisa profundamente os diagnósticos e prognósticos da singular obra filosófica de Sloterdijk.
Peter Sloterdijk, segundo Petronio, compreende o ser humano como “um animal enraizado em uma experiência predeterminada de excentricidade”. Ao analisar a obra seminal “Esferas” de Sloterdijk nos Cadernos IHU Ideias edição 321, Petronio aponta que a interpretação do humanismo incutido nela “é resultado de tecnologias de domesticação, dentre as quais se destacam duas: a pedagogia e a escrita. O modelo psicagógico que a cultura letrada assumiu para educar a alma a partir do advento da escrita não foi vigente ao longo de toda a história do sapiens. Ele tem um ciclo temporal determinado, descrito com o surgimento da grande tecnologia de domesticação que é a escrita. O primado vitruviano da medida humana e do homem como medida de todas as coisas não é uma realidade eidética. É o resultado de uma sucessão de imagens do mundo organizada em torno do homem-centro. Essas imagens foram criadas pela possibilidade da relação a distância e pela translação das esferas-bolhas às esferas-globos, ou seja, pelo deslocamento da experiência das relações imediatas de convívio, intimidade e presença no mundo fático aos gigantescos envoltórios globais criados pelas narrativas metafísicas e pelas ontologias imperiais”.
Rodrigo Petronio (Foto: Arquivo Pessoal)
“Por meio desse deslocamento, os impérios puderam capturar as diversas tribos e hordas, envolvendo-as na esfera global de seu poder mediante a ação domesticadora da escrita e da pedagogia. Enquanto a primeira uniformiza a percepção do mundo e reduz os espaços heterogêneos a dimensões homogêneas, a segunda planifica os valores e propaga a normatização da vida a partir de centros emissores de sentido. Dessa maneira, a escrita possibilitou o advento da noção mesma de universalidade, pois a escrita é um centro vazio de emissão de significados que torna homogêneo o espaço heterogêneo e desenraiza as tribos, os grupos, as hordas e os povos do mundo da vida [Lebenswelt]. Nesse sentido, a escrita também tornou possível a universalização dos valores e a criação de uma protoimagem universal do ser humano, de matizes arcanos. Por meio dela, desde as antigas mitologias mesopotâmicas, foi possível moldar um regime de perfectibilidade humana centrado na imago, seja a imagem de deuses teriomorfos ou de homens-deuses. A dignitas e a humanitas do ser humano como ente passível de universalização é uma das criações dos discursos sobre a cultura e o cultivo do ser humano mediante a escrita. Não por acaso a passagem do cosmológico ao antropológico, presente em Platão, guarda ainda uma agonística com relação ao papel positivo-negativo e de remédio-veneno [phármakon] da escrita. Estão radicalmente atreladas ao cultivo das letras e à alfabetização. Se história e escrita se recobrem, à medida que o século XX produziu em uma dimensão global a falência da tecnologia da escrita e também dos sistemas pedagógicos tradicionais, levada a cabo pelos mass media, pode-se dizer que nesse mesmo século ingressamos também em uma ordem pós-histórica”, aponta.
Imagem: Capa dos Cadernos IHU Ideias , edição 321, de Rodrigo Petronio.
Com relação à definição de Modernidade, especialmente a forjada dualidade "homem-natureza", Petronio aponta o contato do pensamento sloterdijkiano nos ensaios filosóficos de Bruno Latour, outro filósofo contemporâneo de grande destaque para os desafios societários do antropoceno. Segundo ele, “Jamais fomos modernos – que é quase um manifesto – é uma obra importante para compreendermos a premissa de Latour e a definição dele de modernidade. A premissa dele é a da depuração, da purificação: os saberes são constantemente purificados e isso é nocivo porque perdemos a noção não de um todo – porque na teoria Gaia não existe necessariamente uma totalidade, e em Latour também não existe uma totalidade, assim como não existe na obra de Peter Sloterdijk, um dos autores seminais para o livro das oito conferências –, mas isso gera uma espécie de rasgo ou processo de desarticulação da rede por meio da qual teríamos que entender todos os saberes. Essa rede não é apenas um esforço transdisciplinar das ciências entre si, mas é uma teoria vasta que envolveria agentes e atores econômicos, sociais, políticos, científicos, ideológicos, produtivos, meramente não-humanos, tanto no sentido tecnológico e tecnocientífico envolvidos nos milhares de interfaces dos humanos com os animais, os vegetais e os processos biológicos de um modo geral”.
“Então existe mais um diálogo do que uma apropriação entre os autores. Vemos isso entre Latour e Peter Sloterdijk. Eles têm uma interlocução. Na obra de Sloterdijk, Latour aparece, assim como Sloterdijk aparece na obra de Latour – o próprio Latour, em uma conferência, chegou a se definir como um Sloterdijkiano”, assevera Petronio.
Sobre o livro “Pós-Deus”, David Bentley Hart, filósofo e teólogo ortodoxo estadunidense, comenta que “seria uma declaração contínua, concentrada e definitiva sobre os temas religiosos que Sloterdijk abordou com frequência no passado, mas apenas obliquamente”.
Hart aponta que “as dificuldades do presente correspondem ao diagnóstico do filósofo alemão, e a nossa necessidade de uma esfera global de solidariedade é tão urgente quanto ele afirma. Mas também é verdade que não estamos realmente destinados a viver ‘depois de Deus’, ou a buscar o nosso abrigo apenas após a partida de Deus”.
Segundo Hart, “Sloterdijk levanta questões genuinamente interessantes que nos provocam a pensar de formas novas e às vezes desconfortáveis sobre nós mesmos, ou a nossa cultura, ou o mundo como um todo; e as respostas que ele oferece costumam ser fascinantes, ou pelo menos frutiferamente enfurecedoras”.
“A inseparabilidade dos paradigmas cultural e psicológico é um princípio-guia do pensamento de Sloterdijk. Ele emprega a linguagem da psicologia e da psicoterapia com muito mais conforto do que a maioria dos filósofos, mas se sente livre para fazer isso em grande parte porque não limita o psicológico ao âmbito do temperamento individual”, relata Hart.
“Para Sloterdijk, o curso do desenvolvimento cultural e o curso da evolução psíquica são um mesmo processo visto de pontos de vista diferentes. Assim, ele frequentemente fala em termos de história ‘psicopolítica’ ou das diferentes épocas da ‘almificação’ humana. Ele vê a história humana não apenas como uma crônica de condições materiais e sociais em mudança, mas também como um registro das formas mutáveis de interioridade que definem a ‘essência’ humana”.
Corroborando com as elucubrações de Petronio sobre a obra “Esferas”, Hart comenta que “o drama da existência humana, portanto – tanto pessoal quanto social – sempre foi a busca e a criação de novas e mais duráveis esferas de imunidade da essência nua e inóspita do mundo; e o alcance dessas esferas, ao longo do tempo, expandiu-se, desde as mais animais e locais até as mais ideais e universais. A toca, a aldeia, o Estado, o império, a ordem liberal internacional; as exóticas generosidades da natureza, o campo cultivado, o vilarejo agrupado, a cidade ramificada, a Cidade do Homem; os temenos locais, o culto tribal, os deuses e espíritos da natureza, os poderes superiores dos céus, as autoridades espirituais cada vez mais universais, os princípios espirituais cada vez mais 'verticalmente' transcendentes – o Deus Altíssimo. Todas são esferas da comunidade e da 'coimunidade. Todas têm suas causas, ocasiões e calamidades 'psico-históricas'. E todas podem ser – e, de fato, foram – despedaçadas no curso da nossa jornada rumo ao nosso estado atual".
Sendo assim, Hart conclui que “o ser humano moderno não quer obedecer a um poder superior, mas quer ser esse poder. Assim que Deus e a alma foram liquidados, ficamos apenas com o mundo como um evento bruto. Nesse espaço ‘hiperimanente’, uma energia sem propósito desdobra-se à toa ao nosso redor, sem sinais para nos guiar através do terreno sem características próprias. O mundo realmente se tornou um monstro para nós, e nós, longe de encontrarmos abrigo em quaisquer terríveis esferas de coimunidade, descobrimos apenas que o êxodo controlado rumo à liberdade final que nos foi prometida pelo mito do Iluminismo, em vez disso, provou ser um deslizamento precipitado rumo à desintegração social e ecológica, uma errância psíquica e aquilo que Sloterdijk chama de ‘heteromobilidade desabrigada’”.
Rodrigo Petronio é escritor e filósofo e atualmente é professor titular da Faculdade de Comunicação da Fundação Armando Álvares Penteado - FAAP. Desenvolve pós-doutorado no Centro de Tecnologias da Inteligência e Design Digital - TIDD/PUC-SP sobre a obra de Alfred North Whitehead e as ontologias e cosmologias contemporâneas. Ainda é doutor em Literatura Comparada pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro - UERJ. Possui dois mestrados: em Ciência da Religião, pela PUC-SP, sobre o filósofo contemporâneo Peter Sloterdijk, e em Literatura Comparada, pela UERJ, sobre literatura e filosofia na Renascença.
Entre suas publicações destacamos História Natural (São Paulo: Gargântua, 2000), Assinatura do Sol (Lisboa: Gêmeos R, 2005), Pedra de Luz (Lisboa: A Girafa, 2005), entre outros.
Divide com Rodrigo Maltez Novaes a coordenação editorial das Obras Completas do filósofo Vilém Flusser pela Editora É, que prevê a publicação dos primeiros 20 títulos entre 2018-2020.
Diante de Gaia: Oito conferências sobre a natureza no Antropoceno
O texto e a rede: Latour e suas referências