05 Agosto 2023
No último sábado, 29 de julho, completou-se o décimo aniversário do desaparecimento na Síria do padre Paolo Dall'Oglio, vítima ilustre do conflito que assola o país do Oriente Médio há mais de 12 anos. Desnecessário dizer que o rapto do jesuíta que escolhera a Síria como sua terra de eleição é apenas um dos mais de 100.000 casos (mas o número quase certamente é subestimado) registados por muitas organizações internacionais envolvidas na defesa dos direitos humanos e atribuídos na grande maioria dos casos ao regime de Bashar al Assad e não faltam crimes semelhantes cometidos pelo Isis e por outros grupos armados fundamentalistas (como justamente aquele do padre Dall'Oglio).
Tanto que, ainda que bastante tardiamente, a assembleia das Nações Unidas decidiu em 30 de junho passado, criar um órgão específico para investigar os desaparecimentos forçados que ocorreram na Síria nos últimos 12 anos.
A reportagem é de Francesco Peloso, publicada por Domani, 03-08-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Segundo o diplomata brasileiro Paulo Sérgio Pinheiro, presidente da comissão de inquérito da ONU sobre a Síria: "Esta é uma resolução histórica e um passo há muito esperado pela comunidade internacional, que finalmente vem em socorro das famílias de todos aqueles que foram feitos desaparecer pela força, sequestrados, torturados e mantidas em condição de detenção arbitrária e em isolamento nos últimos 12 anos”.
Palavras que parecem ecoar aquelas pronunciadas pelo secretário de Estado Pietro Parolin, dedicadas ao padre Dall'Oglio em 29 de julho: “Nos últimos anos, muitos apelos foram feitos, sobretudo pelo santo Padre Francisco. Nós os repetimos diante do altar para que por todos os meios nos empenhamos para encontrar o padre Paolo e as outras pessoas desaparecidas. Nem que seja para realizar aquele gesto de misericórdia que não pode ser negado a ninguém, ou seja, aquele de prantear dando uma sepultura digna a seus corpos".
Mas quem era o padre Paolo Dall'Oglio? Um homem de diálogo, repetiu-se nos últimos dias, um construtor de pontes entre o Islã e o Cristianismo e dentro do próprio mundo árabe, um homem de paz e de reconciliação, o fundador de uma comunidade monástica, a de Mar Musa, no coração da Síria.
Certamente tudo isso é verdade, mas o retrato assim tracejado seria bastante incompleto caso se esquecesse sua adesão à revolução síria iniciada em 2011; começada como uma revolta popular que reivindicava liberdade, democracia, melhorias econômicas e sociais no impulso das Primaveras Árabes, a revolução democrática foi depois esmagada pela imensa onda do fundamentalismo islamista que se tornou instrumento de terror, capaz de se opor ao terrorismo de Estado do regime de Damasco, num braço de ferro que esmagou o povo sírio, manteve intacto o poder da família Assad e reprimiu toda instância de libertação.
Padre Paolo Dall'oglio. (Foto: Reprodução | Youtube)
No entanto, durante dois anos, de 2011 a 2013, o padre Dall'Oglio tentou desesperadamente abrir uma brecha na indiferença da comunidade internacional em relação ao que estava acontecendo ao povo sírio.
Uma linha, a dele, que não foi compreendida no início, nem por boa parte da igreja institucional, e nem mesmo de sua própria ordem, a Companhia de Jesus.
Para não falar das hierarquias eclesiais do Oriente Médio, acostumadas há anos a buscar refúgio à sombra de ditaduras mais ou menos violentas, mas capazes de oferecer proteção às minorias religiosas em troca de um apoio cego e absoluto.
Essa situação foi denunciada justamente pelo Padre Dall'Oglio por meio de uma petição pública dirigida ao Papa Francisco, divulgada em 2013, na qual, entre outras coisas, podia se ler: “Estou empenhado em tempo integral pela defesa dos direitos dos sírios e pela legitimidade de sua revolução. Hoje, sabemos, a Síria serve de ringue para uma luta geopolítica regional até a morte. Em tudo isso as igrejas não souberam reagir a tempo e os cristãos agora estão presos nas zonas de guerra e simplesmente tendem a deixar o país. Infelizmente, o regime sírio tem sido muito hábil em usar um certo número de clérigos, homens e mulheres, para se promoverem no Ocidente como o único e último baluarte em defesa dos cristãos perseguidos pelo terrorismo islâmico".
“Esta operação de manipulação da opinião – acrescentava – conseguiu desacreditar em grande parte o esforço revolucionário sírio, no local e no exterior, aos olhos dos cidadãos de meio mundo e, portanto, conseguiu uma paralisia da diplomacia e da política europeias que, em definitivo só fortalece os grupos mais extremistas e enfraquece a sociedade civil".
O religioso, portanto, era odiado pelo regime porque denunciava suas crueldades, pelos fundamentalistas porque colocava em crise, com sua ação, o princípio de um irredutível choque de civilizações, e pelos patriarcas cristãos e católicos da Síria e de parte do Oriente Médio, porque expunha seus comprometimentos com as ditaduras.
Interessante, a esse respeito, o que disse o núncio apostólico na Síria, futuro cardeal, Mario Zenari que, comentando no momento o rapto do jesuíta, observou: “O que temos de nos perguntar é a quem serve esse sequestro".
Mas Dall'Oglio também foi criticado por ter invocado, enquanto a situação no país se deteriorava, o princípio da autodefesa armada de uma população submetida a gravíssimas violências.
Ficou famoso seu apelo, para evitar uma escalada militar, a Kofi Annan, na época dos acontecimentos enviado especial da ONU para a Síria, no qual explicava: “Três mil capacetes azuis e não trezentos são necessários para garantir o cumprimento do cessar-fogo e a proteção da população civil da repressão, para permitir uma recuperação da vida social e econômica... Há também a necessidade de 30.000 ‘acompanhantes’ não violentos da sociedade civil global que venham para ajudar no local o início capilar da vida democrática".
Expulso da Síria pelo regime de Assad, em 2013 o padre Dall'Oglio refugiou-se no Curdistão iraquiano, de lá partiu em missão para Raqqa, cidade síria onde operava a componente democrática da revolução, mas onde o Isis já havia entrado e estabelecido um seu quartel general; um pouco mais tarde, Raqqa se tornaria a capital do Isis sírio.
Quanto ao porquê de uma viagem tão perigosa, várias teorias foram apresentadas, a maioria delas descreve o jesuíta empenhado em uma tentativa de libertar vários reféns nas mãos dos fundamentalistas. Mas, mais recentemente, outra versão aflorou do passado.
Graças ao trabalho de pesquisa realizado pelo jornalista Riccardo Cristiano e contido no livro Uma mano da sola non applaude. La storia di Paolo Dall’Oglio letta nell’oggi (publicado pela Ancora), veio à tona uma segunda hipótese, ou seja, que o padre Dall'Oglio fosse portador de uma mensagem dos curdos para o Isis, a fim de impedir a expansão do conflito.
Riccardo Cristiano observa que “Muhammad al-Haj Saleh, ou seja, o membro da família de confiança de padre Paolo, aquele que o hospedava em Raqqa”, a outro parente de um dos sequestrados do qual Dall'Oglio deveria pedir a libertação, escreveu anteriormente em um post público no Facebook, depois confirmado por ele mesmo, que o jesuíta estava levando uma mensagem da liderança do Curdistão iraquiano para os líderes do Isis.
A hipótese, observa o jornalista, não é totalmente nova. De fato, “um dissidente sírio que se refugiou na Alemanha, Fawaz Tello, havia dito isso imediatamente e com certeza, mas com menor precisão, ao New York Times”.
Por outro lado, explica Cristiano, “a liderança do Curdistão iraquiano só podia olhar para o que estava para acontecer com a maior preocupação. Naquela época, o Isis não havia tomado o controle nem de Raqqa nem de Mosul, onde ainda viviam os cristãos, como na planície adjacente de Nínive, assim como os Yazidis, curdos de religião pré-islâmica. Mas todo líder previdente sabia que tudo isso estava por um fio, prestes a se romper."
Como de fato aconteceu, deixando milhões de sírios e outros no pesadelo de uma guerra sem fim.
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Paolo Dall'Oglio: o jesuíta incompreendido que desapareceu no pântano sírio - Instituto Humanitas Unisinos - IHU