04 Agosto 2023
"O Islã sempre foi percebido como um desafio para os cristãos. Mas podemos dizer que o mesmo aconteceu e está acontecendo para o mundo onde os fiéis do Islã vivem em maior número quando se observa o mundo ocidental (no próprio imaginário 'cristianizado'), que se joga nas dinâmicas de sua realidade árabe, por exemplo", escreve Francesco Paolo Mônaco, professor da Pontifícia Universidade Gregoriana, em artigo publicado por Settimana News, 29-07-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Desde 29-07-2013 não temos mais notícias do padre Paolo Dall'Oglio. Dez anos após seu desaparecimento, além da experiência direta de quem o conheceu, permanecem seus escritos e o testemunho do mosteiro de Mar Musa. A vida monástica desse local remonta ao século VI e terá estado ligada ao rito siro-antioquiano. Da inscrição no muro pode-se ler que a atual igreja do mosteiro data de 450 da Hégira (1058 d.C.).
Característica da inscrição são as palavras tipicamente corânicas: “Em nome de Deus, o Misericordioso, o Compassivo”. No século XVI, o mosteiro foi parcialmente reconstruído e ampliado, embora tenha sido posteriormente abandonado pelos monges que ali se reuniam aos domingos de manhã e que talvez tivessem alguma dificuldade em fazê-lo naquelas condições.
Por volta de 1850, a propriedade passou para a Eparquia Siríaco-Católica de Homs, Hama e Nebek e a paróquia local tentou preservá-la da melhor maneira possível, pois cristãos e muçulmanos costumavam fazer visitas devocionais. Os afrescos assumem particular importância e, na terceira camada, após os últimos restauros, lemos: "Concluído no ano seiscentos e quatro [da Hégira, 1208 d.C.] pela mão do decorador Sergio, filho do padre Ali, filho de Barran. Deus tenha misericórdia dele e de todos os que vêm a este abençoado oratório e que sejam curados. Amém" [1].
O Pe. Paolo Dall'Oglio empenha-se em conseguir fundos para recuperar totalmente a estrutura, trazer água, eletricidade, revitalizar todo o vale. De várias formas tentou envolver o governo sírio e também o italiano, recuperando parte dos fundos necessários que vêm também de vários benfeitores do território e também da Europa.
A comunidade presente é mista, inter-religiosa, consagrada ao diálogo islâmico-cristão.
O que caracteriza a comunidade monástica pode ser resumido em três prioridades e um horizonte [2]:
A primeira prioridade, a vida contemplativa, inspira-se na tradição siríaca e no contexto do oriente próximo e árabe islâmico.
O empenho no trabalho manual parte do exemplo da família de Nazaré, que reúne em si a experiência 'concluída' onde se unem o corpo e o espírito, a materialidade e o horizonte do Reino.
Em todas as épocas, os monges praticaram a hospitalidade; “hospitalidade feita de serviço, misericórdia e perdão, hospitalidade de sabedoria e direção espiritual, hospitalidade da mesa comum e do silêncio, hospitalidade do acolhimento do outro em sua riqueza e na necessidade, no seu carisma particular e na sua sede espiritual”; uma hospitalidade abraâmica.
O horizonte é o de uma consagração especial ao amor de Jesus Redentor pelos muçulmanos. Nesse quadro, a comunidade monástica apresenta-se como um 'fermento evangélico na comunidade muçulmana' com um espírito de amor mútuo na consideração e no respeito recíproco dando a devida atenção a esse trabalho de diálogo que permite também aos próprios cristãos ter uma forma a mais para permanecer naquele território.
Na direção dessa consideração e no respeito recíproco, o padre Paolo reconhece pelo menos três funções do Islã [3].
A primeira diz respeito à produção das grandes Escrituras. Por meio do Alcorão é como se uma etapa humana tivesse sido concluída. Não que não existam novos textos sagrados ou grupos religiosos, mas estes aparecem como um 'enxame sísmico' após um grande terremoto. Nesse sentido, Maomé é o último dos profetas e “isso não significa que a dimensão profética da humanidade se esgotou para sempre, pelo contrário. Deve ser redescoberta e é uma responsabilidade compartilhada por todos”.
A segunda função vê a 'fé como revelação natural'. Retomando Louis Massignon em Les Trois prières d’Abraham, que diz: "Se Israel está enraizado na esperança e a Cristandade devotada à caridade, o Islã está centrado na fé", o muçulmano vê em Abraão a pessoa a quem Deus confia uma revelação. Abraão é o amigo de Deus e é um modelo de uma aliança em que a confiança, digamos mútua, é de todos os dias, de todos os momentos. Mas é também a aliança como objetivo final, escatológica e, portanto, de fé.
Depois, há uma terceira função que é a do desafio. O Islã sempre foi percebido como um desafio para os cristãos. Mas podemos dizer que o mesmo aconteceu e está acontecendo para o mundo onde os fiéis do Islã vivem em maior número quando se observa o mundo ocidental (no próprio imaginário 'cristianizado'), que se joga nas dinâmicas de sua realidade árabe, por exemplo.
O Pe. Paolo também nos faz refletir em outra direção quando nos convida a ler a história da Idade Média, por exemplo. Como teria terminado a história, que rumo teria a fé cristã sem a "limitação" do mundo pelos seguidores de Maomé? Fala daquele mundo cristão, representado em vários afrescos e mosaicos, por uma impressionante força imperial e totalizante, certamente não de matriz estritamente evangélica.
Aquele limite, para uns e para os outros, representa uma oportunidade para se reencontrar na própria fé e no encontro com o outro. O desafio inicial, portanto, não é converter um ou outro, mas é converter-se à obra de Deus [4].
As respostas não virão da arqueologia ou da história, de dogmas ou teologias, apenas de instituições ou religiões; as respostas serão dadas por encontros que farão histórias e teologias com homens religiosos, em instituições e a partir da base. Encontros que já começaram em Mar Musa, como no mundo, e que precisam de maior continuidade, além de serem representados de forma mais decisiva.
Paolo quis cunhar um termo que ecoa constantemente na comunidade de Mar Musa: islamofilia [5]. Ao contrário da islamofobia, medo do Islã (em muitos aspectos, deriva de uma fobia cegante), a islamofilia de alguma forma completa o caminho iniciado com sua viagem em direção ao Islã; poderia tornar-se o paradigma de uma nova viagem pessoal para a qual apontar experiências de diálogo igualmente novas.
Há um primeiro Encontro que possibilita outros encontros. Esse Encontro recorda a primeira prioridade da comunidade monástica de Mar Musa. É colocado como princípio e pedra angular da experiência do padre Paolo. É o caráter, é o selo do cristão que não pode ter medo do encontro com qualquer outro, depois de ter estado e estar com o Outro. O mais entusiasmante é que é possível viver isso não de forma extemporânea e ocasional, mas no cotidiano, no dia a dia, com uma possibilidade infinita de repetições, de afastamentos e de aproximações.
O empenho do trabalho manual oferece uma concretude e, como os monges da cidade, é como se cada dia, em todas as tarefas corriqueiras, essas possibilidades de encontro, aparentemente tão distantes no espírito, fossem continuamente possibilitadas graças às relações cotidianas. Quanto mais essas relações se tornam encontros resolutamente humanos, mais nos tornamos divinos. Quanto mais se renova essa experiência, mais nos renovamos. O outro, encontra espaço na hospitalidade abraâmica de um diálogo.
“Um diálogo bem-sucedido deixa um sentimento de comunhão: o que parecia ser oposto agora está em harmonia. O que era diferente passou a ser complementar. O que causava medo a partir de então alimenta a confiança. O que deveria ser perdido, os fardos mútuos, está realmente perdido. Ao final de um bom diálogo, cada um cobre o pecado do outro, perdoa a si mesmo. Já não somos estranhos uns aos outros: formamos um só povo.
O mundo moderno é uma arena de surdos conversando entre si. Como naqueles talk shows da televisão onde o apresentador se diverte ativando a loucura verbal dos interlocutores, as palavras do mundo fluem, mas ninguém as escuta.
Se esses discursos não nos interessam, se não nos atraem, é porque temos uma sensação de intolerância, que vem de um medo profundo e distante: que Deus nos abandone, que não seja fiel a nós. Por isso procuramos fazer melhor que ele, protegemos nossas identidades, nossos particularismos, nos apegamos ao que conhecemos. Mas Deus é fiel! Cada desenho da vida tem uma beleza extraordinária” [6].
Esse mosteiro pode ser considerado um laboratório de virtude? Ouvimos falar cada vez menos das virtudes na linguagem comum, como se fosse um termo anacrônico que, ao contrário, parece cada vez mais necessário. As virtudes do padre Paolo, do mosteiro de Mar Musa, poderiam ser úteis para a nossa vida quotidiana, para este nosso mundo?
Não podemos confiar este momento histórico tão importante a poucos amadores, vítimas, de diversas formas, de medos mais ou menos explícitos que, precisamente por causa desses medos, muitas vezes tendem a agredir em vez de escutar. Não podemos nem sequer ser incluídos entre aqueles que, apanhados no vórtice da vida quotidiana, se esquecem de si próprios.
O apelo a se formar sem se deixar cativar, conhecer sem dar por certo, se dispor a conhecer o outro sem fechar-se nos próprios preconceitos, reconhecer valores comuns a todos, crentes e não crentes, deve e pode ter respostas em todos os homens que querem ser melhores, que aplicam simples as virtudes do bom senso, rumo ao belo, ao bem, ao justo, ao verdadeiro, rumo a um ethos global de referência: há muitas pessoas nesse caminho.
Trata-se de um “monaquismo” possível que corrige os falsos apelos ao afastamento de si mesmos, para consumismos, dispersões existenciais, superficialidades. Num mosteiro interior, espiritual em dote para cada homem, onde poder estar em cada cidade, em cada lugar da vida.
Mar Musa parece dizer que é preciso manter esse espaço de encontro como o mais ambicionado.
Para que esse encontro aconteça, o diálogo é um método. A vantagem de um instrumento é que, além de agilizar as etapas do seu trabalho, enquanto você se torna um especialista, não sai mais de você e você não sai mais dele. Os encontros feitos de diálogo são intensos, vivem da empatia, sempre colocam cada um dos interlocutores em uma nova posição, regeneradora.
Poderá o terraço do Mar Musa, onde ao entardecer se encontram os hospedes vindos de vários lugares, de diferentes religiões, ser o espaço de diálogo como proposto nestas páginas, mais do que os canais virtuais da globalização? Aquele terraço de Mar Musa pode ser um espaço de laboratório para os terraços e praças da Europa e do mundo?
Sem diálogo há um terror que fica dentro, que pode ficar ali ou pode se manifestar fora, nas expressões mais díspares e, às vezes, desesperadas. O diálogo interior como forma de oração, expressão de um encontro, do Encontro, é fonte de boa operosidade. A concretude do trabalho comum em Mar Musa pode ser um sinal de uma operosidade dialogante necessária que segue as nossas liturgias. É uma atividade prática criativa, construtiva e social que torna visível a experiência do Encontro e dos encontros.
Paolo Dall'Oglio, participando da Marcha pela Paz em Lecce em 31-12-2012, compartilhou o sentimento que o unia ao povo sírio e, embora expulso, amadureceu a ideia de retornar à terra atormentada por amor ao seu povo. Era aquele povo que o chamava à responsabilidade pessoal, mais do que o medo de voltar, mais do que o possível cerceamento da sua liberdade, mais do que a própria morte que poderia sofrer, narrava que não poderia deixar de testemunhar o que acontecia na Síria, não só na Itália ou na Europa, mas também e sobretudo naquela terra atormentada.
Ele dialogava aqui, mas sentia a responsabilidade social de dialogar lá, mesmo sem ser bem-visto pelo regime. Assim ainda hoje ele nos ensina uma nova forma de contemplar, de unir-se à oração-grito das vítimas do ódio gerado por interesses partidários, ele nos fala de uma acolhida abraâmica professada e possível, mesmo que, infelizmente, não tenhamos mais nenhuma notícia dele há 10 anos.
É assim que, talvez, ao custo da sua ausência, pode resultar o bilhete do nosso empenho em procurar e encontrar vias de Diálogo em toda nossa circunstância.
[1] P. Dall’Oglio, Innamorato dell’Islam credente in Gesù, Jaca Book, Milano, 2013, p. 2-3.
[2] Cf. P. Dall’Oglio, Innamorato dell’Islam credente in Gesù, op. cit., p. 185.
[3] P. Dall’Oglio, Innamorato dell’Islam credente in Gesù, p. 30-31.
[4] Ib., p. 85.
[5] Ib., p. 178.
[6] P. Dall’Oglio, L’uomo del dialogo, a colloquio con Guyonne de Montjou, p. 199.
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Paolo Dall'Oglio: homem de diálogo, homem de fé. Artigo de Francesco Paolo Mônaco - Instituto Humanitas Unisinos - IHU