04 Fevereiro 2023
"Agora que Joseph Ratzinger nos deixou, talvez possamos reler sua obra com mais objetividade. Não encontraremos nela os fundamentos da teologia do século XXI, mas poderemos serenamente interpretar muitos de seus niets como questionamentos críticos em relação ao percurso que em todo caso deverá ser empreendido", escreve Fulvio Ferrario, teólogo italiano e decano da Faculdade de Teologia Valdense, em Roma, em artigo publicado por Confronti, fevereiro de 2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Por ocasião do desaparecimento de Bento XVI, não faltaram avaliações hiperbólicas sobre sua importância como teólogo. Um expoente do governo italiano, do qual, até agora, não se conhecia a competência teológica, chegou a declará-lo o maior teólogo do século passado, acompanhando o juízo com comparações afoitas com Hans Küng e Karl Barth.
Como não é possível, nesta sede, uma apresentação resumida da obra de Ratzinger, limitar-me-ei a narrar um pequeno, mas a meu ver interessante caso teológico, que mostra como um docente de certo prestígio torna-se, num período razoavelmente curto, um dos autores mais influentes do catolicismo.
Depois de ter produzido, como docente em Tübingen, uma apresentação do Credo Apostólico (Introdução ao cristianismo), Ratzinger transfere-se para a sede bávara mais tranquila de Regensburg, onde há menos teólogos católicos “progressistas” e menos estudantes contestadores. Aqui ele escreve um texto intitulado Escatologia, ou seja, dedicado à ressurreição dos mortos e temas afins.
Ele tem um ponto de vista muito tradicional, muito diferente em particular dos outros dois teólogos católicos, Gerhard Lohfink e Gisbert Greshake, que tentam expressar os conteúdos da fé em termos mais próximos da linguagem bíblica, por um lado, e do pensamento moderno, pelo outro. Se tudo tivesse acabado aí, teria sido uma discussão entre alguns professores mais "inovadores" e um colega mais “conservador”.
Mas o que acontece quando um professor de teologia se torna arcebispo? Neste caso acontece que a Congregação para a Doutrina da Fé (que Ratzinger ainda não presidia), publique uma breve, mas clara, declaração sobre escatologia, na qual afirma que Ratzinger está certo e os outros errados.
Os desafortunados, portanto, pensavam estar discutindo com um colega e se viram contra Roma: a carreira do interlocutor, depois, piora ainda mais a situação. Lohfink se converte ao ratzingerismo (não só sobre a escatologia, mas em tudo o mais), argumentando que o dissenso era mais aparente do que real; Greshake, que de sua parte é um católico de estrita observância, mantém o ponto, encontrando-se contra um bom grupo de colegas (homens e mulheres), ansiosos para se alinhar ou, pelo menos, atentos para não se passar por dissidentes.
Naturalmente, Joseph Ratzinger é um personagem demasiado inteligente e inclusive intelectualmente honesto para corroborar sua própria teologia "pessoal" através do cargo: mas na realidade não precisa disso.
O sistema produz uma espécie de homologação espontânea, citar o ex-colega bispo, depois prefeito, depois papa, torna-se praticamente obrigatório; o famoso professor pode talvez, ocasionalmente, se permitir uma dissidência velada, mas o simples professor de um instituto diocesano de ciências religiosas ou de um seminário deve ter cuidado: algum zeloso pequeno Ratzinger provinciano poderia revogar seu cargo ou, simplesmente, não o renovar; aliás, Roma poderia negar o nihil obstat eclesiástico, necessário para as faculdades católicas, para uma nomeação decidida por uma universidade estrangeira: isso também aconteceu.
Seria preciso falar da singular obra sobre Jesus, que sobrevoa sobre alguns séculos de exegese bíblica, mas a expressão mais famosa do pensamento de Ratzinger é a Conferência de Regensburg de 2006.
Ela passa para os registros (eu deixaria a história em paz), por um parágrafo erroneamente interpretado por alguns como anti-islâmico. Na verdade, trata-se de uma invectiva contra o pensamento moderno que, a partir de suas raízes medievais tardias, teria dissolvido a síntese harmônica e perfeita entre mensagem bíblica e filosofia grega.
Um “tradicionalíssimo” cavalo de batalha conservador que, no entanto, na boca dos cantores do “papa teólogo” (melhor se teologicamente analfabetos) torna-se um sabre de luz sobre a história do pensamento
Agora que Joseph Ratzinger nos deixou, talvez possamos reler sua obra com mais objetividade.
Não encontraremos nela os fundamentos da teologia do século XXI, mas poderemos serenamente interpretar muitos de seus niets como questionamentos críticos em relação ao percurso que em todo caso deverá ser empreendido.
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Quando um teólogo se torna papa. Artigo de Fulvio Ferrario - Instituto Humanitas Unisinos - IHU