Ratzinger. Um balanço. Entrevista com Andrea Grillo

Foto: Cathopic

20 Janeiro 2023

Papa Francisco: “Devemos dizer o que sentimos que devemos dizer”

Depois do último consistório, no qual se falou da família, um cardeal me escreveu dizendo: pena que alguns cardeais não tiveram a coragem de dizer algumas coisas por respeito ao papa, talvez acreditando que o papa pensasse algo diferente. Isso não é bom, isso não é sinodalidade, porque é preciso dizer tudo o que no Senhor se sente que é preciso dizer: sem respeito humano, sem medo. E ao mesmo tempo, é preciso escutar com humildade e aceitar de coração aberto o que os irmãos dizem. Com essas duas atitudes se exerce a sinodalidade. Por isso vos peço, por favor, estas atitudes de irmãos no Senhor: falar com parresia e escutar com humildade.

Assim se expressou o Papa Francisco aos participantes do Sínodo Extraordinário sobre a família. Parresia, a maneira direta e franca com que os primeiros cristãos proclamavam o Evangelho. O Novo Testamento emprega frequentemente esse termo, nascido em âmbito político, para conotar a pregação dos apóstolos e a torna uma das chaves do seu sucesso, apesar da resistência dos opositores.

A entrevista é de Daniele Rocchetti, publicada por La Barca e il Mare, 19-01-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.

Um teólogo, leigo, pai de dois filhos: Andrea Grillo

No entanto, por muitas razões, essa virtude não é muito praticada hoje dentro da comunidade eclesial e isso explica, provavelmente, a razão pela qual o Papa Francisco continua a relembrá-la e pede para praticá-la. Andrea Grillo, sob esse ponto de vista, é verdadeiramente uma voz solitária. Com competência e parresia, justamente, intervém frequentemente em torno de alguns nós da Igreja contemporânea. Teólogo leigo e pai de dois filhos, filósofo, leciona, desde 1994, Teologia dos sacramentos e Filosofia da Religião em Roma, no Pontifício Ateneo S. Anselmo e Liturgia em Pádua, na Abadia de Santa Giustina. É autor de numerosos textos, alguns dos quais, em particular aqueles de liturgia, são estudados nos seminários e nas faculdades de teologia. Em suma, um crente que acompanha com seriedade o caminho de muitos, ajudando a discernir continuamente entre tradição e tradicionalismo, entre o que realmente importa para o Evangelho e os adornos (demasiados?) com que muitas vezes foi sobrecarregado. Com ele tentei fazer um balanço sobre Ratzinger, teólogo e papa.

 

Eis a entrevista. 

Qual é a sua opinião sobre a teologia de Joseph Ratzinger?

Estamos perante um autor que desde muito jovem desenvolveu um pensamento muito elegante, linear, com uma síntese de sabedoria patrística e de pensamento dogmático, porém profundamente marcada por um traço apologético e polêmico que, ao longo do tempo, se tornou cada vez mais saliente em seu autor, especialmente desde que assumiu responsabilidades episcopais e magisteriais. A partir de 1984, marcado de forma emblemática pelo livro-entrevista “Relatório sobre a fé”, a leitura que J. Ratzinger fez da tradição mais recente foi dominada por um conceito de "vigilância" bastante unilateral e quase sem esperança em relação ao mundo moderno tardio. A igreja parecia encontrar e conservar a si mesma apenas no passado.

Como interpretou o Concílio Vaticano II?

O juízo sobre o Concílio Vaticano II, evento no qual, como teólogo, deu uma contribuição notável com inspiração e mediação doutrinal, e do qual foi, portanto, "pai", pareceu cada vez mais dominado por uma espécie de "paternidade arrependida", amadurecida a partir do trauma de "1968", que Ratzinger viveu de forma muito complicada. É como se o olhar sobre o Concílio tivesse se achatado sobre uma chave interpretativa demasiado unilateral, como se fosse apenas uma espécie de “rendição às novas evidências do movimento de 1968”, que agora pareciam quase como o começo do fim e, portanto, como caminhos a serem evitados. Tanto mais duro foi esse juízo, quanto mais o autor se havia identificado como jovem, pelo menos parcialmente, com aquelas posições. A condenação do 1968 soava assim, de alguma forma, como uma autocondenação com vistas a um arrependimento. Vale para Ratzinger, com as devidas adaptações, o que Juengel disse de Karl Barth: a condenação da "experiência liberal" foi tão forte justamente porque, na realidade, tinha sido “sua” posição anterior.

Você escreveu que a maior limitação é justamente a irrelevância da "índole pastoral" na teologia do Ratzinger maduro. O que significa que a tradição não pode sofrer traduções. Você poderia nos explicar?

Este talvez seja o cerne da dificuldade experimentada por Ratzinger diante do Concílio, relido a posteriori. Em sua opinião, a "índole pastoral", que está escrita na porta de entrada do Concílio, e que deve ser interpretada precisamente como uma perspectiva qualificadora no plano doutrinário, que cultiva a esperança de "traduzir a tradição", é facilmente reduzida a uma espécie de "gazua" contra a tradição, para subvertê-la e esvaziá-la. Para resistir a essa tentação, nos anos seguintes, Ratzinger identificou cada vez mais a tradição com a teologia tridentina. O que, como tal, resulta intraduzível, sem trair a fé. Daí os tons apocalípticos e peremptórios sobre muitas expressões não tridentinas da fé, amadurecidas logo após o Concílio Vaticano II, em todos os campos: moral, sacramental, litúrgico, ecumênico, inter-religioso, etc. Não são traduções legítimas, mas traições perigosas. Para não trair, é preciso ficar parado. O movimento desejado pelo Concílio é substituído por uma estase tranquilizadora, mas que acentua a incomunicabilidade entre história e história da salvação.

Um dos pontos mais discutidos de seu pontificado, sem dúvida, continua sendo a publicação da “Summorum pontificum". Qual sua opinião?

Parece-me a verificação mais evidente do que acabei de dizer. Se é verdade que a tradição se identifica em sua forma tridentina, a Igreja tridentina resulta estruturalmente e eu diria ontologicamente insuperável. Por isso o rito tridentino, na visão do documento Summorum pontificum, aparece como uma espécie de "pai patrão intrusivo” para cada rito romano subsequente. Aqui fica claro que o Concílio é "salvo" apenas ao preço de um gravíssimo esvaziamento, quase reduzindo-o à irrelevância. O aspecto talvez mais interessante é que nesse documento, como costuma acontecer em boa parte dos escritos de Ratzinger, sobre o rigor racional e sobre a lógica da fé prevalece um "afeto nostálgico" que resolve as questões a seu favor. Deixa-se o diálogo entre fé e razão para ser gerido por um sentimento que ameaça tanto a unidade da fé quanto a coerência racional. Efetivamente, a convivência paralela de duas formas rituais, das quais a segunda nasceu justamente para corrigir a primeira, pensada como "caminho de paz" é racionalmente pouco argumentável e teologicamente um perigoso princípio de anarquia.

O que restará do pontificado de Ratzinger?

O risco é que do pontificado reste apenas o ato de resistência ao Concílio Vaticano II. Isso seria grave se o legado do pensamento de Ratzinger fosse deixado em mãos mal-avisadas de seus intérpretes mais reacionários. Isso, sem dúvida, trairia as intenções do homem e o pastor. No entanto, deve-se reconhecer que um dos momentos mais evidentes da "desconforto" de Bento XVI tenha sido precisamente a lembrança da noite de 11 de outubro de 2012, 50 anos depois da famosa noite do "discurso da Lua". Quando um papa, ao recordar o Concílio, chega a afirmar: "Naquela época éramos felizes...depois descobrimos que existe o pecado original”, é evidente que ele não está enfrentando em primeiro lugar um evento, mas um trauma. Essa teologia "traumatizada" permanecerá, historicamente, como uma passagem de uma hermenêutica bastante negativa e sem saídas do Vaticano II. Que no entanto é interrompida e de alguma forma desmascarada pela "renúncia ao exercício do ministério petrino", que permanecerá certamente, como um paradoxal ato de esperança.

"Santo dubito", foi a manchete do il Manifesto (trocadilho de Santo Subito, nt). Independentemente da brincadeira, como você interpretou o pedido de alguns, inclusive de renome, de uma canonização rápida e de um reconhecimento como "doutor da Igreja"?

Ter autoridade, na Igreja, não é simplesmente um fato, mas uma vocação. Se um Bispo, Cardeal ou um teólogo, diante da morte de Bento XVI, fala da imediata proclamação como Santo ou como Doutor, demonstra, justamente com essas palavras apressadas, não saber o que é autoridade, não conhecer a história e querer replicar, com o sucessor, a simplificação demasiado rápida do legado do Papa predecessor. Acredito que o próprio Ratzinger teria contestado duramente palavras tão improvisadas. A qualidade de santo ou de doutor é sempre fruto de um amadurecimento lento, que não acontece nas bocas dos cardeais, ou nos ofícios romanos, mas nas vidas, no culto e na cultura do povo de Deus, que se move mais lentamente e menos precipitadamente. A situação ficará clara nas próximas décadas.

Quais são as convulsões mais profundas que você está vendo no corpo da Igreja hoje?

Em tempos de transição, a Igreja Católica, com sua estrutura moderna desejada pelo Concílio de Trento tem dificuldade para acompanhar a história e tende a pensar que a unidade só é garantida pela uniformidade. Esse é um problema para o papado, para a estrutura dos dicastérios, para a própria presença episcopal no corpo eclesial. O que significa "dar palavra à autoridade do Evangelho" é uma questão que o Vaticano II começou a reformular, mas estamos apenas no começo. Num certo sentido é necessária uma grande "despolitização", ou seja, uma reformulação das formas de exercício da autoridade. Essa é a tarefa mais espiritual do nosso tempo. Um caso exemplar: durante o tempo da pandemia, muitos bispos (não o bispo de Roma) falaram apenas com "decretos disciplinares". Esta é a velha linguagem, que não só não basta mais, mas que se torna contraproducente, esconde o Evangelho e as coisas últimas e se detém nas coisas penúltimas.

Qual é a sua opinião sobre as respostas do Papa Francisco?

O Papa Francisco intuiu, desde o início de seu pontificado, que esse é o horizonte no qual deve mover-se como Bispo de Roma. E pôs em jogo a autoridade da Igreja, que antes havia sido de alguma forma "autocensurada", delimitando-as às formas de exercício tridentinas. Ele fez muito até agora para uma retomada do "remédio da misericórdia", mesmo que não apenas tenha que lutar contra numerosas formas de resistência interna e externa, mas também deve lutar contra formas expressivas e experienciais que parecem " constitutivas" da tradição católica. Por exemplo, a visão do ministério ordenado, mesmo com todas as aberturas sobre os ministérios instituídos, ainda está entregue a uma linguagem integralmente tridentina, sem um verdadeiro repensamento. Isso torna muito difícil promover realmente novas formas litúrgicas e eclesiais. Inverter a pirâmide eclesial não é retórica, mas implica uma profunda revisão das categorias ministeriais. Caso contrário, presta-se a um uso retórico.

Alguém evoca a possibilidade de um cisma. O que você acha disso?

É evidente que, em grande parte, são discursos instrumentais, espantalhos para intimidar, levantados por aqueles que pretendem que o catolicismo deva identificar-se por estatuto originário com a forma tridentina. Não excluo que alguns já se colocaram em condição de cisma. O verdadeiro problema não diz respeito ao povo de Deus, mas a alguns episcopados dominados por essa ideologia tridentina, que não se atém apenas às formas litúrgicas, mas ao modo de formar os sujeitos, de exercer o ministério e de pensar o centro do Evangelho. Nesse nível decisivo, a próxima geração tem muito a fazer, sobretudo em termos de anúncio, formas de vida e formação espiritual. Uma Igreja que saiba ser uma autêntica criadora de cultura evangélica é a esperança que não esmorece.

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