25 Setembro 2006
Juan José Tamayo, diretor da Cátedra de Teologia e Ciências das Religiões da Universidade Carlos III de Madri e autor de Fundamentalismos y diálogo de religiones Trotta, Madri, 2005, escreve o seguinte artigo no jornal espanhol El País, 20-9-2006.
"O discurso de Bento XVI na Universidade de Regensburg, que irritou sírios e troianos, situa-se dentro da lógica de seu pensamento desde que iniciara o giro conservador na década dos setenta do século XX. Como presidente da Congregação para a Doutrina da Fé, o cardeal Ratzinger condenou vários teólogos que estavam elaborando uma teologia do pluralismo religioso em diálogo com outras religiões. O ceilandês Tissa Balasurya foi suspenso a divinis e posteriormente reabilitado. O jesuíta belga Jacques Dupuis, professor de Teologia durante quase quarenta anos na índia, sofreu um longo calvário por sua obra Para uma teologia do pluralismo religioso, acusada de graves erros contra princípios fundamentais da fé divina e católica. Também foram condenadas algumas obras do jesuíta índio Tony de Mello. Porém os três tiveram defensores de luxo: a conferência d provinciais jesuítas da ísia se pronunciou a favor de Tony de Mello; o arcebispo de Calcutá, Henry d"Souza, e o arcebispo emérito de Viena, cardeal Franz König, se definiram a favor de Dupuis; numerosas instituições teológicas do mundo se colocaram do lado de Tissa Balasuriya.
O maior ataque de Ratzinger contra o diálogo inter-religioso foi a Declaração da Congregação para a Doutrina da Fé Dominus Iesus, de 2000, que abriu uma brecha profunda entre as igrejas cristís, ao mesmo tempo em que dinamitou todas as pontes que vínhamos tendo teólogos e teólogas das diferentes religiões, líderes religiosos, intelectuais e políticos. Ratzinger afirmava ali que a Igreja católica é "a Igreja verdadeira" e que as "Igrejas particulares" (ortodoxas) e as comunidades eclesiais (protestantes e anglianas) "não são Igreja em sentido próprio" (n. 17). O tom era igualmente excludente com relação às religiões não cristís. "Se bem é certo "" dizia "" que os não cristíos podem receber a graça divina, também é certo que, objetivamente se acham numa situação gravemente deficitária quando se compara com a daqueles que, na Igreja, têm a plenitude dos meios salvíficos" (n. 22, itálico meu).
A denúncia da "ditadura do relativismo" é uma constante no pensamento de Ratzinger. Na Dominus Iesus condenava as teorias de tipo relativista que tratam de justificar o pluralismo religioso, "não só de facto, senão de iure", o subjetivismo, o indiferentismo, etc. Ainda ressoam em meus ouvidos as severíssimas críticas lançadas contra o relativismo na missa anterior à celebração do conclave no qual seria eleito Papa. Críticas feitas com a consciência de possuir a verdade em exclusividade, não a partir da busca conjunta.
A crítica do relativismo leva diretamente à simplificação, deformação e falseamento das posições do contrário. Estes desvios são os que se dío no discurso da Universidade de Ratisbona de 12 de setembro, a partir de uma citação, ao meu juízo desafortunada, do imperador bizantino Miguel II Paleólogo, que oferece uma idéia beligerante da religiío muçulmana e uma imagem violenta do profeta Maomé. A própria citação, independentemente de que dela se compartilhe ou não, não é casual, revela já a tendenciosidade do discurso e, objetivamente, situa o discurso do Papa no horizonte da teoria do choque de civilizações de Huntington, para quem o Islí é "a civilização menos tolerante das religiões monoteístas", e no posicionamento etnocêntrico de Sartori, que qualifica o islamismo como religiío totalitária e incompatível com a sociedade pluralista, já que, diz, continua pensando na espada."Deve ficar claro "" afirmava Ratzinger em 1996 "" que não se insere no espaço de liberdade da sociedade plural".
Bento XVI podia ter escolhido outros testemunhos da época, mais respeitosos com o Islí, como os de Francisco de Assis, de Raimon Llull em O gentio e os três sábios, ou de Nicolau de Cusa em A paz da fé.
Francisco de Assis se mostrava partidário do diálogo islâmico-cristío e contrário à cruzada contra os muçulmanos, por considerar que o Evangelho manda amar os inimigos e não fazer-lhes guerra. Uma vez convocada a cruzada, ele se dirigiu ao campo de batalha e se entrevistou com o sultío. Os dois dialogaram num clima pacífico e rezaram juntos. Estes testemunhos teriam sido mais conformes ao objetivo do diálogo das culturas que o Papa dizia propor-se.
Além do mais, a violência não pertence à essência do Islí, nem a guerra santa é um de seus pilares, menos ainda, um dever dos fiéis muçulmanos. Constitui, antes, uma perversão, uma patologia da religiío muçulmana, como o é também do cristianismo. Como se encarregaram de demonstrar os estudiosos do Islí, resulta incorreto e tendencioso traduzir yihad por guerra santa. Seu verdadeiro significado é esforço.
Segundo Sayyid Abul al" Mawdudi (1903-1979), escritor e político muçulmano índio, yihad é antes de tudo uma luta moral no interior da comunidade islâmica, orientada à sua reforma, que consiste na mudança tanto pessoal como social. Sem mudança pessoal nas motivações, nos pontos de vista, nos objetivos e na personalidade de cada indivíduo, não servem de nada as mudanças políticas e econômicas. Mudança que há de levar-se a cabo de maneira gradual e através da educação, não pela força. Junto à mudança pessoal é preciso lugar contra as injustiças e pelas reformas sociais, fomentando a cooperação para a obtenção de melhores condições de vida para todas as pessoas, com atenção especial às pessoas mais necessitadas, como as viúvas e os órfíos, os aleijados e incapacitados.
É preciso agradecer as escusas de Bento XVI e valorar positivamente a aclaração de que ele não se identifica com o testemunho de Miguel II Paleólogo. Mas, o problema não está numa citação ou num parágrafo da alocução do Papa. É o discurso em si, em seu conjunto, cristocêntrico e eurocêntrico, que é preciso revisar em profundidade, porque não contribui ao diálogo. E optar pelo paradigma intercultural, inter-religioso e inter-étnico, em sintonia com a teologia libertadora das religiões e em convergência com a diversas iniciativas de paz no plano internacional.
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O discurso de Regensburg. Uma análise do teólogo Juan José Tamayo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU