11 Março 2022
Comprometido com uma reaproximação histórica com o Patriarcado de Moscou, o pontífice pediu o fim da “guerra”, mas não condenou formalmente a invasão russa.
A reportagem é de Cécile Chambraud, publicada por Le Monde, 10-03-2022. A tradução é de André Langer.
O Papa Francisco pede o fim da “guerra” na Ucrânia, mas um católico que apenas ouvisse a ele teria dificuldade para saber quem a começou. Desde o início da invasão russa, no dia 24 de fevereiro, o pontífice argentino não permaneceu inerte. Ele enviou dois cardeais próximos para a Ucrânia. Lamentou um “país martirizado” e pediu que “cessem os ataques armados”. Ele foi pessoalmente – um acontecimento sem precedentes – à Embaixada da Rússia junto à Santa Sé no dia seguinte ao início das hostilidades. Mas não se encontra vestígios de condenação formal da ofensiva russa em suas palavras.
Este notável impasse sobre as causas do conflito levanta perguntas até mesmo em Roma. Certamente, a Santa Sé tem o hábito de favorecer missões discretas de bons ofícios em vez de condenações públicas. Além disso, Francisco pediu no domingo, 6 de março, “negociações”, especificando que o Vaticano estava “disposto a fazer tudo para se colocar a serviço da paz”. No dia seguinte à sua inesperada visita à Embaixada da Rússia, ele ligou para o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky. O cardeal Pietro Parolin, número dois do Vaticano, por sua vez, telefonou para o ministro russo das Relações Exteriores, Sergei Lavrov, e confirmou, quarta-feira, 9 de março, estar disponível para uma mediação.
Mas esta omissão sobre o papel da Rússia na eclosão do confronto militar hoje leva os observadores a questionar a política muito pró-ativa de reaproximação com a Igreja Ortodoxa Russa perseguida pelo Papa Francisco, cujo preço alguns consideram exorbitante. Seu líder, o Patriarca Kirill, sempre mostrou sua proximidade com Vladimir Putin. Em 27 de fevereiro, em um sermão, ele chamou aqueles que “lutam pela unidade” entre a Rússia e a Ucrânia de “forças do mal”. “O Vaticano só tem olhos para Moscou, diz o historiador Antoine Arjakovsky, codiretor do Departamento de Política e Religiões do Colégio dos Bernardinos. Não é mais equilibrado, é até extremamente perigoso”.
Esta tentação de Moscou vem de longe. Após a queda do Muro de Berlim e a dissolução da União Soviética, a Ostpolitik liderada pelo Vaticano no pós-guerra deu lugar ao sonho de João Paulo II “de ir à Rússia para se curvar diante dos túmulos dos mártires do comunismo”, como resumiu o acadêmico. Mas nem o papa polonês nem seu sucessor alemão, Bento XVI, viram isso se tornar realidade. Francisco continuou a questão da reconciliação à sua maneira. Concretizou-se em seu encontro – o primeiro da história entre um papa e o chefe da Igreja Ortodoxa Russa – com o Patriarca Kirill, em 12 de fevereiro de 2016, no aeroporto de Havana, Cuba.
Preparado no maior sigilo, este encontro não foi sem concessões para a Santa Sé. A primeira diz respeito à Ucrânia. Dois anos antes, o Vaticano manteve um perfil discreto durante a anexação da Crimeia pela Rússia e a guerra em Donbas. Na declaração conjunta assinada em Havana, um parágrafo formaliza esta postura equidistante sobre “o confronto na Ucrânia”: “Pedimos a todas as partes em conflito a cautela, a solidariedade social e a ação pela paz”. A segunda concessão diz respeito à Igreja Greco-Católica, fiel a Roma, a terceira maior denominação cristã na Ucrânia atrás das duas Igrejas Ortodoxas, longe de ser negligenciável. Liderada por Sviatoslav Chevtchouk, arcebispo-mor de Kiev, há vários anos tem a sensação de suportar o peso da reaproximação com a ortodoxia russa, considerando o apoio do Vaticano não desprovido de relutância diante dos ataques contra ele do Patriarcado de Moscou, do qual está separado desde o século XVI.
No obstante, até a invasão da Ucrânia, Roma tinha toda a intenção de perseverar nesse caminho. Em dezembro de 2021, o Papa Francisco confirmou a preparação de um novo encontro com Kirill em um “horizonte não muito distante”. “E estou sempre pronto para ir a Moscou”, acrescentou. O metropolita Hilarion, encarregado das relações exteriores do Patriarcado de Moscou, estava em Paris pouco antes do início da ofensiva russa na Ucrânia para se preparar para esta reunião. No dia 12 de fevereiro, encontrou-se ali com o cardeal Kurt Koch, presidente do Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos.
“Hilarion é quem, há trinta anos, quebra açúcar nas costas dos greco-católicos, observa Antoine Arjakovsky, e é estranho que Francisco aceite isso”. Pesquisador em estudos russos e soviéticos e bom conhecedor da diplomacia da Santa Sé na região, Yves Hamant também critica a estratégia russa do papa argentino: “Neste assunto, o Papa Francisco se aconselha a si mesmo. Ele não conhece bem este mundo, não está equipado para entender o putinismo. Quanto à reaproximação com a Rússia, ele está convencido de que conseguirá fazer o que seus antecessores não conseguiram. Para isso, a Ucrânia parece quase um obstáculo. Ele pode ser tentado a sacrificá-la”. Na quarta-feira, no entanto, o cardeal Parolin deu a entender que a perspectiva de um novo encontro entre os dois líderes cristãos não era mais imediatamente relevante.
A opção russa também pesa nas relações que Francisco mantém com as diferentes famílias da Ortodoxia, divididas em cerca de quinze Igrejas autocéfalas (elas elegem seus líderes). Desde o início de seu pontificado, o papa jesuíta esteve muito próximo de Bartolomeu, o patriarca de Constantinopla, que, por razões históricas, tem preeminência sobre os demais patriarcados. No entanto, a ruptura foi consumada entre Kirill e Bartolomeu desde que este reconheceu em 2018 a autocefalia (independência) da Igreja Ortodoxa da Ucrânia, que anteriormente dependia do Patriarcado de Moscou. Bartolomeu condenou veementemente a “invasão russa” na Ucrânia.
“Por quanto tempo Roma será capaz de manter esse diálogo com os dois enquanto Moscou está devastando um país inteiro e alguns estão se distanciando dentro da Igreja Ortodoxa Ucraniana, dependente do Patriarcado de Moscou?", pergunta Antoine Arjakovsky. Torna-se embaraçoso para a Santa Sé estar tão próxima do principal ideólogo do mundo russo.”
De fato, a atual guerra na Ucrânia parece estar causando sérias tensões na Igreja ucraniana, que permaneceu fiel a Moscou. À sua frente, o Metropolita Onofre pediu aos ucranianos que resistissem à invasão russa. “Uma dúzia de bispos não reza mais por Kirill aos domingos”, como é a regra, observa Antoine Arjakovsky, para quem, se a situação político-militar na Ucrânia o permitir, “há todas as chances de que esta Igreja peça a sua adesão à Igreja autocéfala” ucraniana.
A ortodoxia de tradição russa na Europa Ocidental também é atravessada por uma certa indignação. Seu metropolita Jean de Dubna denunciou assim sem rodeios, em uma carta aberta, “esta guerra monstruosa e sem sentido” desencadeada pela “intervenção militar da Federação Russa na Ucrânia” e pediu a Kirill “intervir junto às autoridades políticas russas” para “parar este banho de sangue”, “esta guerra de agressão cruel e assassina”.
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Guerra na Ucrânia: os silêncios do Papa Francisco sobre a Rússia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU