21 Outubro 2020
Lógica do mercado também se infiltrou na forma como percebemos o mundo. Apaga rebeldias. Semeia triunfos vazios. E instiga a culpa e o endividamento. Mas nem tudo é domesticável — e nas singularidades está a chave para o Comum.
Passados sete meses, o mundo contabiliza mais de um milhão de mortos pelo vírus causador da covid-19 e mais de 33 milhões de pessoas infectadas. O Brasil somava, até final de setembro, 142.161 óbitos e 4.748.327 casos de contaminação pelo novo coronavírus – números, infelizmente, que não param. A covid-19 foi caracterizada como uma pandemia, pela Organização Mundial da Saúde (OMS), em 11 de março de 2020.
Caracterizada como uma doença respiratória aguda causada pelo coronavírus da síndrome respiratória aguda grave 2 (SARS-CoV-2), ela foi identificada pela primeira vez em Wuhan, na província de Hubei, República Popular da China, em 1 de dezembro de 2019.
Apesar da alta letalidade e também ainda das desconhecidas sequelas que a doença pode causar, o mundo não está virado do avesso apenas por causa da contaminação do vírus, vive-se a tragédia, também, por conta de disputas no campo ideológico em diversos países, de políticas governamentais desencontradas ou deliberadamente genocidas, da proliferação ainda mais contaminante de fake news sobre a doença e o número de infectados e de mortes.
Diversos países foram e ainda são palco de manifestações negacionistas e antivacina. Os protestos sempre miram as indicações médicas e científicas para evitar a proliferação do vírus, como o distanciamento social e o uso de máscaras.
Ainda dentro dessa panaceia, não faltaram e não faltam exemplos de governantes que mais se aproximaram da tontice e do despudor em meio às milhares de mortes. O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, chegou a sugerir, em abril, que a luz solar ou injeções de desinfetante poderiam servir de tratamento para a covid-19. O seu correlato, no Brasil, Jair Bolsonaro, qualifica a infecção, altamente letal, vale repetir, como uma “gripezinha” e indica tratamentos médicos sem comprovação científica, como a ingestão de hidroxicloroquina.
É a balbúrdia em estado puro o que se vive no ano de 2020. Tudo isso é feito sem “roteiro” prévio? Podemos indicar que são apenas devaneios infantis, senis, irracionais de governantes, ou trata-se de crime pensando e executado contra a humanidade?
Entender a maior encruzilhada civilizatória e humanitária deste século XXI sem recorrer a uma análise microscópica, não do vírus, mas da subjetividade humana no ambiente neoliberal, é o que se propõe com esta entrevista, gentilmente aceita pelo psicanalista argentino Hernán Siculer, residente no Brasil desde 2001. Seguindo os ensinamentos de Sigmund Freud e Jacques Lacan, o especialista é formado em psicologia pela Universidade de Buenos Aires (Uba), instituição de ensino pública considerada a maior e mais importante da Argentina. Siculer, para atuar no País, fez a revalidação legal do diploma pela Universidade de São Paulo (USP).
Além do atendimento clínico, Siculer supervisiona equipe de psicólogos num projeto de uma agremiação sindical de funcionários da Justiça em Santos (SP); coordena grupos de estudos e participa de um projeto coletivo intitulado “Psicanálise aberta”.
A entrevista é de Rosângela Ribeiro Gil, publicada por Outras Palavras, 19-10-2020.
Estamos num momento que, até há pouco tempo, só imaginaríamos em filmes ou em livros, em intervenções artísticas e culturais. Todavia, há cinco meses, pelo menos, o mundo está diferente nos seus movimentos, em suas relações, nas cidades, nas atividades econômicas etc. A partir dessas mudanças, podemos dizer que a pandemia do novo coronavírus colocou tudo fora de ordem do ponto de vista da economia capitalista?
Cabe observar que, se não imaginamos uma situação como essa, hoje também sabemos que existiram inúmeras advertências sobre uma pandemia de proporções assustadoras. Em 2015, um virologista[1] [Ralph Baric, professor da Escola Global de Saúde Pública da Universidade da Carolina do Norte (EUA) e pesquisador veterano de coronavírus] publicou um trabalho mostrando que uma pandemia dessa proporção não demoraria muito a acontecer. O próprio [Barack] Obama[2] fez essa advertência pública num debate que, hoje, parece profética.
Não faço coro às teorias da conspiração, por isso não acredito que o capitalismo “criou”, propositalmente, essa pandemia. Acredito que foi um fenômeno aleatório, mas fica evidente que ele é impensável fora do capitalismo. Porque o capitalismo nunca deu muita importância às advertências da comunidade científica e dos militantes ambientais, por exemplo. A saúde pública não figura entre as preocupações inerentes ao sistema capitalista. Definitivamente a saúde não é objetivo primordial desse sistema. É claramente uma decisão política.
Aqui no Brasil, esse posicionamento ganha contornos ainda mais trágicos com o sucateamento escandaloso do SUS [Sistema Único de Saúde], que, desde 2019, já perdeu R$ 20 bilhões por conta da Emenda do Teto de Gastos. Isso é um exemplo paradigmático. As políticas de ajuste e privatização da saúde são evidências incontestáveis, um fenômeno que se repete no mundo inteiro, logicamente com diferenças e particularidades de cada país. Mas, de alguma maneira, hoje funciona como uma fórmula global, na medida em que o neoliberalismo se expande em todo o mundo, tirando algumas exceções.
Retomando essa ideia de que a saúde não é um objetivo prioritário, podemos lembrar o caso emblemático do segundo ministro da Saúde do governo Bolsonaro. Quando assumiu, [Nelson Luiz Sperle] Teich[3] questionou a compra de respiradores, dizendo que era um gasto desnecessário, que não teria utilidade depois. Já o primeiro ministro da Saúde [Luiz Henrique Mandetta] fez lobby, por muito tempo, pela privatização da saúde.
Por isso, infelizmente, a morte de milhares de pessoas é um “bom negócio” para o sistema capitalista. Porque ela reduz gastos para a saúde. Ou seja, no fundo há uma lógica perversa que é um projeto de extermínio, um modo particular de necropolítica. Uma assessora[4] do ministro da Economia chegou a manifestar isso explicitamente, falando que a quantidade de mortos iria ajudar o problema previdenciário. É extremamente perverso. A pandemia mata principalmente idosos e doentes, pessoas que não podem ser incluídas mais no mercado de trabalho. Tudo isso, reforça essa ideia de que tudo o que está acontecendo é um bom negócio para a economia capitalista.
Outro problema que se apresenta é que o saber científico se mostra perdido, desorientado, vacilante, incompleto. A comunidade científica parece estar em frangalhos, não sabe o que fazer. O vírus apresenta muito mais interrogações do que certezas. Uma funcionária[5] da própria OMS [Organização Mundial da Saúde] um dia de manhã disse que pacientes assintomáticos não passavam o vírus, e depois reformulou o que disse.
Parece que o vírus irrompe de repente na realidade e a desorganiza, como se se tratasse de um objeto extraído da realidade e retorna a ela bruscamente e a desorganiza, quebrando esse campo unificado de uma realidade organizada. Nesse sentido, você tem razão quando diz que a covid-19 colocou tudo fora de ordem. De qualquer forma, isso não significa que caminhamos para uma nova ordem ou estrutura. Ainda não sabemos qual será o desenlace político, econômico e subjetivo de tudo isso. O mundo que virá depois da pandemia ainda é uma incógnita.
Estamos, como tantos vêm dizendo por aí, num novo normal? Você acredita realmente numa espécie de novo sujeito a partir dessa pandemia? Em quebras de paradigmas?
As readaptações e alterações da vida cotidiana evidentemente reestruturam a nossa vida drasticamente – o distanciamento social, o confinamento, a relação do sujeito com o outro e com ele mesmo, porque no confinamento se produz uma sorte de encontros com ele mesmo que a correria diária não permitia. Então, esse encontro consigo mesmo traz perguntas, como: quem sou, o que quero, qual o sentido da minha vida. São perguntas que ficavam eclipsadas. Para as pessoas que não estavam acostumadas com essas interrogações acaba gerando uma angústia. Frente a esse estado de angústia, um dos “antídotos” que o sujeito abraça é o negacionismo, que não é o mesmo da perversão. Aqui ele assume a dimensão de reconstruir a realidade que se desorganizou pela irrupção do vírus. É o que estamos vendo muito agora, inclusive.
A relação com o tempo, com o trabalho, tudo mudou. Nada é como antes. Nesse sentido, vivemos uma nova realidade. Nos distraímos menos com coisas que encontrávamos fora de casa, externamente. Todavia, em princípio, isso não significa que as coisas se orientem para uma mudança de paradigma, entendendo paradigma como um determinado modelo, organização e funcionamento social. Como falei, e insisto nisso, até agora não se visualiza o surgimento de um novo sujeito histórico e político.
As manifestações do ano passado tão numerosas no Chile[6] e no Equador[7], e, neste ano, nos EUA a partir do assassinato de [George] Floyd[8], os movimentos antirracistas etc., começaram com muito entusiasmo e adesão, mas vão passando os dias e os protestos se dissolvem, perdem força. Parece-me que isso ocorre porque falta uma proposta política concreta capaz de ser uma alternativa contra esse inconformismo. Então, na medida em que isso não se concretiza numa alternativa real e com uma articulação política com uma direção específica tudo se perde.
Como disse [Fredric] Jamenson[9], é mais fácil imaginar o fim do mundo do que do capitalismo. Desde 1989, com a queda do muro de Berlim, que dividia o mundo em duas partes, o mercado se globaliza e a opção de um modelo anticapitalista passou a ser inexistente. A partir daí, não vai surgir nenhum sujeito pós-neoliberal. Esse modelo devora o mundo e o que se observa é que mesmo nessa situação caótica que é a pandemia tudo deve continuar funcionando da mesma maneira.
O exemplo mais trágico e evidente aqui no Brasil é a reabertura da economia sem um critério técnico que balize a medida, ela responde pura e exclusivamente a um apelo econômico, a saúde não tem nenhuma importância. Inclusive responde a um critério econômico que também fracassa porque na medida que abre e fecha os benefícios econômicos também não aparecem. É um desastre anunciado.
Poderíamos pensar que qualquer preocupação sanitária é só para que tudo volte para funcionar e não pela saúde. Realmente não é possível, neste momento, vermos a emergência de um sujeito político. A própria esquerda hoje me parece trabalhar para tentar humanizar o neoliberalismo, não propõe uma ruptura total com o sistema. Na verdade, o que se apresenta como alternativa seria, como disse Walter Benjamin[10], puxar os freios de emergência, poder amenizar e parar a voracidade destrutiva do neoliberalismo que está consumindo o mundo. Poder colocar algum limite, tentar cuidar daquilo que ainda não foi destruído. Mas não parece tão claro que o mundo esteja interessado em parar de consumir. A maior parte das próprias experiências latino-americanas, na década passada, com os governos progressistas, nacionais e populares não saiu do caminho das políticas neoliberais. Foi uma alternativa menos nociva, mas não por fora do neoliberalismo.
O capitalismo funciona como uma força acéfala que se reproduz constantemente, que, sempre frente a qualquer crise, tende a se reorganizar e continuar com o seu movimento ilimitado, gerando cada vez mais pobreza, desigualdade e injustiça social. Escandalosamente [a injustiça social] está cada vez mais naturalizada e, hoje em dia, parece que não incomoda demasiado, se considera como uma consequência inevitável para que o sistema funcione.
O Estado nacional não poderia ser um contraponto neste momento de tão alta dramaticidade e excepcionalidade, mesmo sabendo que ele se compõe com a lógica neoliberal para que esta prospere em suas ações que avançam em tudo o que é público e que signifique lucro?
No cenário pandêmico, o Estado nacional poderia tentar se qualificar com uma ação ativa e como agente econômico, já que o capitalismo mostrou que não dispõe de estruturas nem interesse para combater a pandemia. Seria o momento no qual o Estado poderia sair fortalecido. Nessa mesma linha, assim como é um momento do Estado, poderia ser “um momento” marxista no sentido em que os trabalhadores poderiam perceber claramente que, sem eles, não há trabalho, a economia não funciona.
No início de julho, vimos o exemplo dos trabalhadores de aplicativos de entrega [delivery] que fizeram uma greve numerosa e significativa [no Brasil]. A classe trabalhadora deveria ter neste momento essa percepção, entender que não são os gerentes, os chefes, os managers que fazem com que as coisas funcionem. Mas essa sacada que tiveram os entregadores de aplicativos parece mais uma exceção do que uma regra.
Por que os trabalhadores não fazem essa leitura da sua importância para o sistema?
Estendo essa indagação para todas as pessoas: por que os seres humanos atentam contra seus próprios interesses, por que escolhem governos que não os favorecem? Por que a sociedade escolhe caminhos que não a beneficia? Por que a sociedade é injusta, cruel?
Do ponto de vista de uma linha da psicanálise, isto não se explica exclusivamente pela luta de classes, pela opressão das classes dominantes, mas existe algo mais que está além do domínio político e econômico. Para poder entender esse fenômeno, não podemos prescindir do conceito freudiano[11] da pulsão de morte – que é uma força, energia, intensidade psíquica que leva o sujeito a tentar contra o outro e a si mesmo. Às vezes, esse atentar contra si mesmo encontra uma satisfação na submissão, trata-se de uma certa posição masoquista. De alguma maneira todos estamos atravessados por essa pulsão de morte. A partir desse conceito podemos pensar o porquê da servidão e da posição sacrificial que vemos nas sociedades.
Esse novo normal, conforme chamam a situação atual ou pós-pandemia, se transformará em algo distinto ou quando passe tudo isso se voltará ao estado anterior, o que seria uma pena, porque se perderia a chance de se pensar as estruturas do neoliberalismo. Mostrar como o neoliberalismo já não tem a mínima condição de subsistir, que é um sistema que entrou em colapso e que pode levar ao próprio fim da humanidade.
Com o cenário pandêmico, surgem ainda mais discussões sobre a nossa saúde mental, orientações de cuidados para não cairmos no estresse etc. O que é saúde mental para uma economia capitalista? E para a psicanálise?
É verdade que essa nova realidade que estamos vivendo pela covid-19 nos confronta de um modo mais direto com diversas problemáticas. As pessoas passaram a se interrogar mais sobre sua vida. Mas tem outro ponto que se relaciona mais especificamente que é não saber muito ainda sobre a covid-19, o vírus provoca muitas incertezas, desde quanto tempo vamos permanecer assim e como vamos sair. Essa incerteza acaba gerando angústia que atualiza a sensação de desamparo. O que podemos chamar, de maneira geral, que a saúde mental fica fragilizada. Mas precisamos saber ao que nos referimos quando falamos em saúde mental e pensamos no neoliberalismo.
Digamos que as pessoas geralmente são capazes de se adaptarem com êxito relativo a condições que a sociedade impõe e exige. Na psicanálise chamamos de “fantasma” a realidade pela qual o sujeito vê o mundo, a interpretação que faz da realidade. O “fantasma” do sujeito hoje se adapta quase que automaticamente às regras do mercado. Ou seja, ele adapta a sua realidade psíquica às regras do mercado.
Quanto melhor constituído e mais fortalecido esteja esse “fantasma” mais normal será o sujeito nesse ponto adaptativo, quanto mais responde ao imperativo neoliberal mais normal será considerado esse sujeito. Mas, se algo se desequilibra, tudo precisa ser restabelecido rapidamente, para voltar ao estado anterior e novamente se readaptar ao discurso do capitalismo que ocupa o lugar dominante. Ou seja, obedecer ao imperativo que exige a felicidade como objetivo último para o qual se impõe, como exigência, o consumismo.
Quem é o sujeito do século XXI a partir do neoliberalismo? Quem somos?
O neoliberalismo como projeto tecnocrático se constrói num tripé que articula o discurso da ciência, da tecnologia e da lei do mercado. Isto implica considerar um sujeito sem história, sem memória, sem legados, sem tradições simbólicas, sem intenções sociais. Um sujeito, de certa forma, robotizado e uniformizado. E ainda: tudo deve ser classificado, rotulado, descritivo, utilitário, pragmático e objetivo. Essas são as características fundamentais de um sujeito moldado a partir dessa lógica. Não tem lugar para o mistério, para o enigma. Um sujeito onde tudo deve ser explicado, sem lugar algum para o indecifrável.
No campo da saúde mental essa uniformização da ciência que recusa a singularidade criou as neurociências, e um campo cada vez maior de terapias alternativas. As neurociências, logicamente, estão associadas a psicofarmacologia. Nessa linha, se exclui a singularidade, a subjetividade e tudo se explica como se tratasse apenas de um funcionamento cerebral. A subjetividade se reduz a um conjunto de neurônios e neurotransmissores.
Está claro obviamente que se trata, como diria [Michel] Foucault, de um projeto de biopoder[12] disciplinador, evidentemente que o psicofármaco entra disciplinando e readaptando o sujeito a essa demanda, adormecendo-o, passivamente, para reforçar a ideia de um sujeito apático, sem contradições, sem questões, totalmente funcional ao discurso neoliberal, onde todos parecem ser iguais. O inconsciente que faz a cada um de nós único é totalmente anulado. É nessa atuação que se produz uma colonização da subjetividade. É assim que opera o neoliberalismo na saúde mental.
A saúde mental não é isso para a psicanálise, porque o sujeito nunca pode ser capsulado totalmente dentro de uma categoria. A psicanálise trabalha com o sujeito do inconsciente, com aquilo que escapa a qualquer rótulo, nomeação, algo que não consegue nunca ser totalmente decifrado e classificado. Essa parte estranha, única, incompreensível que faz de cada um de nós um universo único sai da lógica de qualquer conjunto fechado.
O inconsciente nos faz a todos diferentes, ou seja, nunca será igual a relação que o sujeito estabelece com sua família, seus amigos, laços amorosos, erótico e com os seus próprios objetos. Por isso, é muito importante diferenciar, como faz com muita precisão o escritor e psicanalista Jorge Alemán[13], sujeito e subjetividade. A subjetividade é aquela parte que é colonizada e domesticada. Há uma subjetividade criada pelo neoliberalismo, mas este não consegue capturar completamente o sujeito. Há algo próprio do sujeito que nunca vai poder ser massificado. Nesse sentido, a psicanálise é o avesso das terapias de cunho uniformizante e homogeneizante, como as neurociências. Se pudéssemos entregar a produção de um sujeito ao poder, aí o crime seria perfeito. E aí o neoliberalismo, por exemplo, conseguiria capturar completamente o sujeito, e não restaria nada de singular. O sujeito não é somente o resultado de uma construção sócio-histórica, insisto nisso porque é muito importante essa diferença. Há algo que será sempre inapropriável. É aqui onde a psicanálise tem algo a dizer.
Por que?
A psicanálise está a favor do desejo, que é sempre singular. Poderíamos dizer que a dimensão terapêutica peculiar da psicanálise não implica o retorno a um estado anterior, ou forçar ou convencer que uma determinada pessoa coincida com determinados ideais universais, não se trata de adaptá-lo a semblantes ou padrões universais. O analista não dirige o paciente a alcançar nenhum ideal particular imposto, mas para que ele encontre o seu próprio desejo. O objetivo é que o sujeito se encontre com o seu próprio desejo – este desejo não está ligado necessariamente a um objeto sexual.
A psicanálise não orienta sua prática em nenhuma direção moral libertina, conservadora, vitoriana, pós-moderna nem neoliberal. Ela não é imoral nem moral, é amoral. Esse é o seu compromisso ético com a verdade singular de cada sujeito. Ela é antiautoritária, anti-totalitária e guarda o mais absoluto respeito aos modos singulares e satisfação de cada sujeito. Reconhecer as diferenças qualquer movimento autoritário o faz, mas trata-se de reconhecer e ter o mais absoluto respeito às diferenças. Portanto, existem todas as diferenças entre a saúde mental entendida a partir da singularidade e a saúde mental a partir de uma ordem pública constituída e vista como uma política adaptativa.
Algumas medidas ou a falta delas por parte de governos de diversos países, como o Brasil, mostram, ironicamente, que a pandemia tem de se adaptar à economia; e não ao contrário. E essa postura acaba sendo reproduzida por quem é prejudicado pelos desmandos governamentais e pelo capital. É nessa ordem que entendemos a colonização da subjetividade?
Ao invés do mundo se adaptar à pandemia, vemos que é ela que tem de se adaptar ao neoliberalismo. É mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo. Quando vemos as pessoas se aglomerarem, fazendo filas para entrar no shopping, ou quando a farmácia ou supermercado parecem menos essenciais do que a academia [de ginástica] ou o salão de beleza, inevitavelmente nos confrontamos com um exemplo pragmático e irrefutável que confirma essas duas frases sobre a primazia do mercado sobre a preocupação sanitária – que é uma preocupação fundamental para que as coisas continuem funcionando. Quando a gente vê a praia cheia, por exemplo, ou quando o prefeito de Itabuna [Fernando Gomes/PTC], na Bahia, disse que iria abrir tudo a partir de 9 de julho e que “morra quem morrer”; um exemplo mais ilustrativo e trágico que esse é impossível de encontrar.
Tudo se sustenta no núcleo central da subjetividade que entende a vida e a existência a partir do consumo, como já disse José Pepe Mujica, ex-presidente do Uruguai, quando se confunde o ter com o ser ou como também falou Eduardo Galeano, escritor uruguaio, que o cartão de crédito parece te dar o direito à existência. Então, se produz uma forma de ser, de pensar a vida, de subjetividade que está colonizada e narcotizada e que se satisfaz consumindo e identifica a felicidade com a posse de bens materiais.
Nesse sentido, é interessante pensar, hoje, o conceito de pobreza, porque, efetivamente, a partir dos anos 1980, vem se produzindo uma mutação nessa conceituação. A pobreza não se caracteriza mais pela carência, como foi historicamente, mas pelo excesso. O consumo é o elemento central da subjetividade da nossa época e isto foi antecipado com muita lucidez e grandiosa genialidade por [Jacques] Lacan[14] quando ele conceitualizou uma fórmula que vou explicar de maneira simplificada e resumida: o discurso capitalista explicaria a produção e criação de objetos (gadget) que estão destinados a cobrir a falta, para preencher o vazio. Dito em termos psicanalíticos: para anular a castração, a falta, o vazio estrutural do ser humano.
Sempre vai existir uma falta para os seres humanos. Estamos condenados a uma falta impossível de preencher. No caso do neoliberalismo, se inventa esses objetos que é também uma forma de negar a impossibilidade estrutural do ser humano, de negar que a satisfação plena para o ser humano está perdida, de que a felicidade de forma geral é sempre parcial, nunca plena. O discurso capitalista nega essa impossibilidade estrutural do próprio ser humano. Oferta esses objetos para criar ilusoriamente que podemos preencher essa falta, que constitui o ser humano. Para essa perda pura se imagina um objeto que a cobriria. É como uma satisfação mentirosa em termos de totalidade, isso dá sentido a uma relação autista. Por exemplo, uma pessoa com o seu celular, há um gozo parcial, porque esse objeto nunca vai conseguir completar a falta; ao mesmo tempo se produz uma ruptura dos laços sociais, porque se cria uma satisfação não com o outro, mas com o objeto. Essa lógica de funcionamento do discurso capitalista é uma forma de entender como funciona hoje a sociedade no mundo neoliberal, que degrada e desintegra o laço social porque favorece, alimenta e articula uma saída individualista e egoísta através do consumo.
Nessa lógica é interessante poder entender de alguma forma porque se deu o fracasso da quarentena, do confinamento, porque a maior parte das pessoas não está disposta a renunciar as suas satisfações individualistas, não está disposta a renunciar as suas pulsões narcísicas. Não posso renunciar a nada, não posso deixar de me satisfazer. Não há uma posição ética de renunciar a satisfação própria em função da saúde pública e do bem comum. Por isso, justamente esta saída individualista e antissolidária, explica de certa forma porquê de não respeitar a situação atual.
Interessante, falava sobre os objetos (gadget) que viriam ilusoriamente cobrir a falta, mas ao contrário, esses bens podem proporcionar certo prazer para o sujeito ao mesmo tempo que significam uma perda. Ou seja, consigo algo, mas o que fica como saldo é que ele não me completou. Prevalece mais o que faltou para completar o meu prazer absoluto do que propriamente o prazer que dá. Sempre se exige mais e mais, esses objetos nunca serão suficientes. A satisfação, o gozo, a felicidade nunca serão plenos, porque o objeto dá uma satisfação parcial. Nunca se encontra o que se busca.
[Zygmunt] Bauman, autor do livro “Amor líquido”, mostra que tudo, hoje, obedece à lógica da liquidez. Ele faz um comentário de que antes, para se ter uma boa vida, era necessário esperar e economizar; agora, ao contrário, com a oferta desenfreada de crédito, o slogan é outro: não postergue a realização de seu desejo. Tudo tem que ser agora. Desfrute agora, e pague depois. Como se existisse efetivamente um objeto que completaria a falta.
Isso é importante para entender outro elemento fundamental do neoliberalismo que é o seu saldo trágico, porque ele produz o sujeito com dívida e culpa. Com culpa porque nunca está à altura ao que supostamente deveria estar, porque é sempre uma exigência ilimitada que nunca se alcança; e com dívida porque esse gozo pleno que nos proporcionaria a felicidade só se alcança consumindo, e para consumir tem que se endividar. Essa é a lógica do funcionamento neoliberal, culpa e dívida.
Aqui faço um destaque importante: além do enfrentamento ao coronavírus, temos a “pandemia” da depressão. Isso acontece porque os sujeitos, no capitalismo contemporâneo, se esforçam para obter algo que é impossível. Esse esforço sempre vai redundar em fracasso, o que vai causar o sentimento de culpa e que vai resultar na depressão.
A depressão, hoje, deixou de ser um conceito psicopatológico e passou a explicar a consequência da subjetividade neoliberal. Um exemplo incontestável é o Brasil ter 63 milhões de brasileiros endividados, que não estão pagando[15].
Um sujeito que podemos pensar também na perspectiva de um país. Frente a essa crise sem precedente na economia que o novo coronavírus instaura, vemos que os Estados optam por endividamento no lugar de taxar grandes fortunas, optam por se endividar e não aumentar a arrecadação cobrando dos poderosos aquilo que deveriam cobrar.
Outra questão que levanto, como uma intuição minha, é com relação ao crescimento das igrejas de orientação neopentecostais, que ofertam a plenitude imediata, agora. Para que esperar a morte se eu posso e devo ter a obrigação de ser feliz e realizado em vida? E essa felicidade se entende a partir do consumo também. Quem já não ouviu depoimentos de fiéis que estavam cheios de dívidas e que Deus lhe proporcionou muito dinheiro, ou seja, signos próprios do consumo? Essas igrejas estão completamente alinhadas à lógica neoliberal. O evangelismo neopentecostal é a religião do neoliberalismo; e no campo da saúde mental, a neurociência.
Ou seja, o sujeito tem que ser feliz, triunfante, vigoroso, não pode fracassar, já não se trata do sujeito histórico trágico freudiano, hoje se trata do homem que tem que gozar, ser feliz, que não tem que ter história, memória, não tem contradições, e que é medicado em caso de desvio para se readaptar à demanda do mercado. Baixar a cabeça, silenciar e consumir. O medicamento entra para fortalecer essa via, um sujeito sem fala, sem rebelião completamente domesticado para o consumo.
Quem ou o que somos para o capitalismo contemporâneo e como superar ou enfrentar isso? Ou não é possível um sujeito pós-neoliberalismo?
Existe uma visão majoritária, hegemônica talvez, que entende o neoliberalismo apenas como um modelo econômico, onde, por exemplo, a macroeconomia se apropria da microeconomia, os monopólios, oligopólios. Diferente do capitalismo industrial clássico, o sistema produtivo se transformou num sistema financeiro. Por outro lado, e considero isso como o elemento principal, devemos entender o neoliberalismo como um dispositivo que produz uma nova subjetividade. Na verdade, ele cria e produz um novo tipo de subjetividade. E isto não aconteceu em outro tempo histórico, a nova subjetividade neoliberal se edifica sobre quatro pilares fundamentais, que estão articulados: o consumo, o individualismo, o egoísmo e a meritocracia.
Aproveitemos a pandemia para fazer a leitura desses pilares. Temos a quarentena. Como entendermos a adesão tão baixa, primeiro ponto: o individualismo. Poucas pessoas parecem estar dispostas a renunciar a satisfação individual em função de cuidar da saúde púbica e do bem comum. A renúncia ética hoje não conta. O neoliberalismo encontrou no neofascismo uma forma de subsistir, perdendo qualquer compromisso com a verdade e a ética. Se antes tinham grandes dificuldades com a verdade e a ética mas ainda mantinham um fio muito sútil com essas duas questões, hoje se perdeu completamente. Nesse sentido, isso explica as direitas no mundo se opondo à quarentena e estimulam a saída das pessoas às ruas.
Isso marca algo muito importante que é pensar uma inversão histórica, que é um signo da época. Sempre foi um repertório da esquerda ocupar as ruas, hoje isso se inverteu, uma questão histórica muito importante a se considerar. Hoje a direita é que toma as ruas, e a esquerda assume a posição ética da solidariedade. Nesse sentido, o confinamento é uma forma de militância e resistência.
Quem hoje aparece como uma referência simbólica no mundo defendendo esse discurso ético da solidariedade é o Papa Francisco, como uma autoridade simbólica muito forte, e por isso é atacado permanentemente por todas as direitas do mundo. Em Espanha, por exemplo, onde temos um partido de ultradireita, o Vox, que vem crescendo de forma assustadora, se referiu ao Papa como o cidadão Bergoglio, ou seja, se tirou a investidura simbólica do Papa que ele representa. E o governo espanhol, que é uma coalização de esquerda, se serve do discurso do Papa como referência para a sua forma de atuar e das políticas que tenta implementar. Em Espanha, onde a direita sempre foi reacionária, ultraconservadora e ultracatólica hoje não reconhece a figura do Papa; entretanto, a esquerda, que sempre foi laica, utiliza os discursos do Papa nos seus posicionamentos.
Se pensamos todas essas questões a partir da psicanálise podemos pensar no imperativo categórico kantiano que Freud utiliza para falar do superego, instância psíquica, que é o de não renunciar a nada é outra característica da nossa época. Na época de Freud, essa instância crítica exigia do sujeito a renúncia a sua satisfação pessoal para viver em sociedade. O problema é que nenhuma renúncia era suficiente e isso marcava um mal-estar na civilização na época de Freud. Hoje, esse imperativo categórico do superego se inverteu: ele assume a narrativa neoliberal de satisfação plena, você não deve renunciar a nada. Gozar hoje é o imperativo categórico atual. Então, essa inversão marca um mal-estar da época atual, que antes vinha da renúncia, hoje vem da impossibilidade da satisfação plena.
O sujeito não entende que é uma impossibilidade estrutural alcançar a plenitude. Esse sujeito acredita que não alcança essa plenitude por culpa dele mesmo. O mesmo superego que exige o gozo pleno, quando não é alcançado, critica e condena o sujeito à culpa, dizendo: “Está vendo? Você é um fracassado.” Esse é o mal-estar da civilização atual. Por isso, o neoliberalismo deixa como saldo o sujeito com culpa e com dívida.
Ainda na questão dos pilares com relação à pandemia, temos o egoísmo: saio de casa e não me importo com o outro, porque primeiro sou eu. Preciso sair, preciso consumir, porque a partir do consumo eu sou. Tem uma frase da qual gosto muito e que se instalou na sociedade argentina, nos governos de Nestor e Cristina Kirchner e volta a ter força no governo Alberto Fernandez – perdeu força, obviamente, no governo [Mauricio] Macri –, e que muitos jovens tatuaram: “A pátria é o outro”. Ela me parece sensacional para mostrar como, de alguma forma, o governo Kirchner, nesse caso particularmente, tentou recuperar pelo menos algo da solidariedade perdida, porque o neoliberalismo é também um atentado à solidariedade. Essa frase é uma maneira de tentar revalorizar a importância fundamental que tem o comunitário, a visão pelo outro, a ética dentro de uma sociedade.
Nesse ponto, queria fazer uma resenha histórica e comentar como surge o neoliberalismo: primeiro como vocábulo, depois se transforma no que vemos atualmente. Na crise de 1929, quando cai a bolsa de Nova York, surge um novo liberalismo com características diferentes ao tradicional, que se aproxima um pouco mais das ideias socialistas que estão funcionando no bloco soviético e onde essa crise não afetou tanto. Surge a ideia de um Estado forte, modelo keynesiano, como agente econômico, desenvolvimentista, a social-democracia, tudo isso é bastante sabido. Mas o importante é que esse modelo surge não para se aproximar do socialismo, mas para salvar o liberalismo que se sentia ameaçado pela sedução que o modelo socialista poderia provocar nas grandes massas de trabalhadoras. Não poderia existir o risco de uma grande revolução e da morte do capitalismo. Então, o capitalismo prefere essa manobra, ceder alguma coisa na sua ação de acumulação para não perder tudo. Os salários aumentam, a capacidade de consumo aumenta, tem o Estado do bem-estar. Isso vai sair muito caro para as empresas que têm o aumento de impostos e diminuem o lucro do capital.
Com a queda simbólica do Muro de Berlim [em 9 de novembro de 1989], onde o bloco socialista desaparece e já não existe uma expressão anticapitalista, porque o capitalismo se universaliza, aí o neoliberalismo vai pelo todo. Se antes cedia algo para não perder tudo, agora não precisa ceder mais nada, porque agora não tem nada que o coloque em xeque ou rivalize, não tem uma força oposta.
Hoje não se vislumbra nenhum sujeito político histórico que venha mudar a história, não há nenhum sujeito pós-neoliberal neste momento, que cumpra a função que suspostamente o proletariado ocupou no modelo marxista. E isso tem uma explicação relativamente clara: a partir do crescimento do neoliberalismo, nos anos 1980, foi se produzindo um processo de despolitização da população, uma devastação das lideranças simbólicas, onde os referentes ideológicos se perderam. Existem manifestações, crises de legitimidade, mas elas não se transformam numa proposta alternativa emancipatória de um novo sujeito ou de num novo modelo.
Hoje se fala muito em meritocracia mesmo.
A meritocracia é um conceito hipócrita e tendencioso. O discurso do sistema é que “se você quer, você pode”. Sabemos que não é assim, que não é verdade. Primeiro, temos os próprios empecilhos internos. A sociedade não dá igualdade de possibilidades. Quando essa pessoa não consegue, ela vai se sentir culpada, e que não conseguiu porque é burro ou porque não se esforçou devidamente. A grande questão é que o sujeito realmente vai acreditar que ele não consegue porque é burro e que não fez tudo por merecer. Quando a meritocracia fracassa aparece a culpa. O avesso da meritocracia é a culpa.
Que classes de sujeitos temos hoje?
Temos apenas consumidores, que são sujeitos com culpa e dívida. Quando se fala em liberdade de escolha, na verdade, ela não existe, existe apenas um caminho que é o consumo, que conta com a cumplicidade dos veículos de comunicação que vão modelando a opinião pública. É interessante pensar que cabe essa crítica à esquerda, particularmente no Brasil, nos governos do PT, onde se conseguiram muitas conquistas sociais e na vida das pessoas, milhões saíram da extrema pobreza, outras tiveram acesso à universidade, se avançou muito no circuito do consumo, mas se trabalhou muito menos pela cidadania. Não se discutiu com a população a importância de assuntos fundamentais, como os direitos humanos. É um tema central que teria evitado ter um Presidente da República como se tem hoje – que quando era deputado e no dia do impeachment da presidente Dilma Rousseff dedicou o seu voto para o pior torturador da história brasileira. Uma pessoa que idolatra um torturador e depois disso se torna Presidente da República indica uma sociedade que não dá nenhum valor aos direitos humanos. Uma crítica severa aos governos do PT é não ter trabalhado com responsabilidade sobre alguns assuntos, como os direitos humanos e o valor à soberania, tecnologia e a ciência. Se trabalhou apenas dentro da lógica neoliberal, produzindo consumidores e não cidadãos.
Vamos ver a segunda fase desse novo liberalismo surgir, em 1973, no Chile, como um laboratório e só pode ser implantado numa ditadura feroz e violenta como a de [Augusto] Pinochet. Esse neoliberalismo que conhecemos hoje já não cede nada, o liberalismo que o iniciou cedia alguma coisa. Tanto é assim que os governos latino-americanos progressistas, da década passada, Argentina, Brasil, Uruguai, Paraguai, Bolívia, Equador, o Chile de [Michelle] Bachelet, Venezuela, com exceção de Peru e Colômbia, tentaram suavizar os efeitos nocivos e da desigualdade do neoliberalismo, tentaram colocar um breque de mão – como dizia Walter Benjamin – a essas medidas tão acentuadas e duras, mas sem propor uma ruptura. Mesmo assim esses governos foram derrocados, um a um. Não com golpe de Estado direto, mas com golpe midiático, parlamentar e jurídico, com exceção da Bolívia que foi golpe militar mesmo. E foram derrocados porque o neoliberalismo não está disposto a ceder absolutamente nada, apenas eram governos que tentavam diminuir a desigualdade e que tinham uma orientação pela justiça social e que pretendiam ser soberanos politicamente e independentes economicamente, mas não fora do neoliberalismo, mas mesmo assim foram destruídos.
Como seguimos tão presos ao neoliberalismo e ainda com o agravante da emergência da extrema-direita no Brasil e no mundo? Como não sucumbir a tudo isso?
Talvez pensar como criar uma nova subjetividade a partir de um novo conceito do comunitário, de cidadania para a emergência desse sujeito pós-neoliberal. Até agora, insisto, isso não se visualiza. De toda a forma, acredito se isso surgir em algum momento não vai ser pelos modelos tradicionais de partidos políticos, dos trabalhadores, dos sindicatos. Creio que isso estará mais próximo dos movimentos sociais, negro, LGBT+, feminismo, MST [Movimento dos Trabalhadores Sem Terra] etc., porque são modelos que começam a pensar o sujeito de outra maneira, não como uma totalidade fechada, não propondo um modelo uniformizante e homogêneo. São movimentos que pensam a construção do comum a partir das diferenças, que não significa somos todos iguais, mas que construímos juntos a partir das diferenças.
Essa é a grande questão: a emergência do novo sujeito tem que ser contemplando, considerando e construindo a partir das diferenças. E aqui não se trata de reconhecer as diferenças identitárias, reconhecer as diferenças é fácil, o fascista, o nazista reconhecem a diferença, se trata de reconhecer, aceitar, assimilar e construir a partir da diferença. Esse é um projeto do comum que leve em consideração a forma em que o sujeito está constituído que é um “não todo”, que significa que ninguém se enquadra totalmente em nenhuma categoria, sempre há algo do sujeito que não é capturado por um determinado modelo, porque senão o poder mudaria completamente o sujeito. O poder pode criar uma subjetividade, mas há algo do sujeito que escapa, porque é sempre singular e não consegue ser capturado ou se adaptar plenamente a uma subjetividade.
A construção, a emergência do novo sujeito político tem que considerar esse aspecto, qual seja de que nenhum modelo pode absorver essa singularidade, que sempre vai ficar algo em sombra.
Temos de pensar a política assim, graças ao aporte que a psicanálise nos proporciona, a partir do não todo, onde a sociedade pode ser composta por singularidades que se integram, mas não se completam. Algo sempre vai ficar em sombra. Com a singularidade você pode construir algo comum, com o individualismo, não.
Para a construção do comum é necessário a singularidade. Já o neoliberalismo se vale do individualismo.
[1] Blog do CES/RJ – O cientista que alertou sobre o novo coronavírus em 2015 está procurando uma cura e está avaliando o atual surto. Disponível aqui.
[2] Foi em 2 de dezembro de 2014, quando visitou o campus do National Institutes of Health (NIH) em Bethesda, Maryland, para pedir mais financiamento para a pesquisa do ebola. À época, o vírus devastava a África Ocidental. Disponível aqui.
[3] “É um investimento enorme desnecessário…De repente vc dobra a tua quantidade de ventiladores mecânicos, o que você vai fazer com eles depois?”, em entrevista a um webinar/podcast em 09/04/2020. Disponível aqui.
[4] Economista Solange Vieira: “É bom que as mortes se concentrem entre os idosos… Isso melhorará nosso desempenho econômico, pois reduzirá nosso déficit previdenciário”, afirmou a economista que comanda a Superintendência de Seguros Privados. Disponível aqui.
[5] A Organização Mundial da Saúde (OMS) esclareceu durante coletiva de imprensa nesta terça-feira (09/6/2020) a declaração de que é “raro que pessoas assintomáticas possam transmitir o novo coronavírus”, dada aos jornalistas 24 horas antes pela chefe do programa de Emergências, Maria van Kerkhove. Disponível aqui.
[6] Protestos no Chile em 2019 (também chamados de «Santiagaço» [apenas no início], «18/10», «18/O», «Crise no Chile em 2019», «Explosão social no Chile em 2019», «O Chile despertou», «Primavera do Chile», «Revoltas no Chile em 2019», «Revolução dos trinta pesos» e «Surto social»)[19][20][21][22] são uma série de protestos civis, atualmente em pausa, em várias cidades do Chile. Disponível aqui.
[7] Os protestos no Equador em 2019 foram uma série de protestos e revoltas, que ocorreram entre 3 e 13 de outubro, contra o cancelamento dos subsídios aos combustíveis e contra outros ajustes econômicos (denunciados como austeridade) adotados pelo presidente do Equador Lenín Moreno e sua administração. Disponível aqui.
[8] George Perry Floyd Jr. (Fayetteville, 14 de outubro de 1973 – Minneapolis, 25 de maio de 2020) foi um homem afro-americano que foi assassinado em Minneapolis no dia 25 de maio de 2020, estrangulado por um policial branco que ajoelhou-se em seu pescoço durante uma abordagem por supostamente usar uma nota falsificada de vinte dólares em um supermercado. Disponível aqui.
[9] Fredric Jameson (Cleveland, Ohio, 14 de Abril de 1934) é um crítico literário e teórico marxista, conhecido por sua análise da cultura contemporânea e da pós-modernidade. Entre seus livros mais importantes estão Pós-Modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio, O Insconsciente político e Marxismo e Forma. Atualmente Jameson trabalha na Duke University, em literatura comparada e romance. Disponível aqui.
[10] ”Marx havia dito que as revoluções são a locomotiva da história mundial. Mas talvez as coisas se apresentem de maneira completamente diferente. É possível que as revoluções sejam o ato, pela humanidade que viaja nesse trem, de puxar os freios de emergência”, Waler Benjamin. Disponível aqui.
[11] Sigmund Freud, criador da psicanálise. Disponível aqui.
[12] Termo criado originalmente pelo filósofo francês Michel Foucault para referir-se à prática dos estados modernos e sua regulação dos que a ele estão sujeitos por meio de uma “explosão de técnicas numerosas e diversas para obter a subjugação dos corpos e o controle de populações”.
[13] Psicanalista e escritor de origem argentina.
[14] Jacques-Marie Émile Lacan (Paris, 13 de abril de 1901 — Paris, 9 de setembro de 1981) foi um psicanalista francês. Depois dos estudos em Medicina, Lacan se orientou em direção à Psiquiatria e fez seu doutorado em 1932. Depois de ser analisado por Rudolph Loewenstein, ele passou a integrar a Sociedade Psicanalítica de Paris (SPP) em 1934, e nesta é eleito membro titular em 1938. É depois da Segunda Guerra Mundial que seu ensino toma importância. Teve contato com a psicanálise através do surrealismo e a partir de 1951, opondo-se aos pós-freudianos que promoveram a Psicologia do Ego, propõe um retorno a Freud (disponível aqui).
[15] O número de brasileiros com dívidas em cheque pré-datado, cartão de crédito, cheque especial, carnê de loja, empréstimo pessoal, prestação de carro e seguro atingiu o percentual mais alto da história em junho, segundo a Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC). A proporção de famílias endividadas, medida pela Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (Peic), chegou a 67,1%, renovando o maior patamar da série – iniciada em janeiro de 2010 –, registrado, até então, em abril deste ano (66,6%). O índice apresentou aumento mensal de 0,6 ponto percentual e anual de 3,1 pontos percentuais.
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Como o ultraliberalismo colonizou nossa subjetividade - Instituto Humanitas Unisinos - IHU