10 Setembro 2020
“Estamos em um momento político de disputa na região, em que o neoliberalismo está em default, mas tenta escapar de sua própria falência. O resultado desse dilema dependerá tanto da capacidade da matriz neoliberal de se reinventar, mas fundamentalmente de como o progressismo avance, implemente soluções certeiras e cotidianas aos cidadãos e gere horizontes de acordo com os novos tempos”, escreve Alfredo Serrano Mancilla, doutor em Economia e diretor executivo do Centro Estratégico Latino-Americano de Geopolítica - CELAG, em artigo publicado por Público, 05-09-2020. A tradução é do Cepat.
O pior de um momento presente é quando nem sequer podemos imaginar o futuro. É exatamente isso que está acontecendo com o neoliberalismo. Vive um presente extremamente complicado, que é ainda mais agravado por sua incapacidade de traçar novos horizontes.
Após meio século de existência, o neoliberalismo enfrenta uma grande crise de ideias. Seu manual ficou obsoleto.
A decadência sempre é um processo lento e, em muitas ocasiões, também inaceitável para quem a sofre. O neoliberalismo vive seus meses mais complexos na América Latina. A pandemia da covid-19 expôs muitos de seus pontos fracos, que até agora haviam sido “acobertados” com grandes campanhas de comunicação com uma alta dose de pós-verdade (para não dizer mentiras). Veja, por exemplo, o que aconteceu em 2008: a última grande crise neoliberal na esfera econômica foi reescrita como um problema de bolha imobiliária e os cidadãos foram responsabilizados por todos os males, devido ao endividamento excessivo.
No entanto, desta vez, diante da atual Grande Recessão que vivemos no mundo, é praticamente impossível que possam mais uma vez nos culpar por tudo, apesar de tentarem. Neste momento, existe um grande consenso de que a culpa não é das pessoas, mas que o verdadeiro problema está em um modelo econômico e social muito pouco preparado para enfrentar as adversidades.
Todos os mitos neoliberais saltaram pelos ares justamente no momento em que as pessoas precisam enfrentar uma situação dramática. O neoliberalismo não consegue acertar nenhuma de suas respostas habituais. Por um lado, esquece a economia real em busca de uma entronização da financeirização e, por outro, continua defendendo a ausência do Estado, apesar de os cidadãos latino-americanos exigirem o contrário. Segundo os dados das pesquisas CELAG do último trimestre, na Argentina, 90% são a favor de um Estado muito mais presente e ativo, 70% no Chile, 60% no México e 75% na Bolívia.
Os sentidos comuns da região cavalgam em uma direção completamente oposta ao que preconiza o livreto neoliberal. O imposto sobre grandes fortunas tem grande apoio em muitos países latino-americanos (76% na Argentina, 73% no Chile, 67% no México, 64% na Bolívia e 75% no Equador), e o mesmo acontece com uma renda mínima, garantir publicamente saúde e educação como direitos, deter privatizações, suspender e renegociar dívidas, etc. Além disso, na maioria dos países da região, o sistema bancário, os meios de comunicação e o Judiciário têm uma imagem muito negativa.
Essa alienação dos políticos neoliberais (e de suas respectivas usinas) em relação ao que as pessoas pensam se reflete em muitas das fotografias que estamos vendo na região nos últimos tempos. Piñera sem saber o que fazer diante de uma maioria que já iniciou o processo constituinte para mudar o Chile. Lenín Moreno termina seu mandato no Equador com quase nenhuma aprovação (11%) pela implementação do projeto neoliberal. Áñez segue empobrecendo a Bolívia e, diante da próxima disputa eleitoral, conta com muito pouco apoio (11%).
Na Colômbia, o uribismo está em suas horas mais baixas com seu expoente máximo com um mandado de prisão e sem capacidade de enfrentar a pandemia. Macri, agora de férias na Europa, nunca conseguiu construir a hegemonia neoliberal na Argentina e deixou uma economia em pedaços. Bolsonaro, com mais de 100.000 mortes por Covid em suas costas e com grande dificuldade para garantir governabilidade e estabilidade política, econômica e social. E nesse panorama, de crise neoliberal, devemos considerar também o que acontece no Peru, onde o Congresso foi fechado no ano passado - e tem todos os seus ex-presidentes condenados por corrupção -, e no Paraguai, onde o presidente Abdo evitou o julgamento político in extremis, após ter vendido energia ao Brasil a “preço de banana”.
O neoliberalismo está em default, mas se recusa a desaparecer. Busca se reciclar e oxigenar. Dito de outro modo: está renegociando o seu futuro, mas com grande dificuldade em gerar horizontes que convençam e entusiasmem. No entanto, seria um erro grave subestimá-lo e considerá-lo morto, pois possui um grande poder estrutural que certamente estará disposto a se camuflar por trás de ideias progressistas.
O melhor exemplo é o FMI, que sem ter mudado sua composição “empresarial” passou a ter um tom mais conciliador em termos de dívida externa, ou o Banco Mundial defendendo programas de renda mínima, ou os bilionários que defendem mais impostos. São sinais inequívocos de que há uma tentativa de apropriação de ideias progressistas, inapropriadas para o neoliberalismo. Certamente para torná-las suas e reformulá-las, qualificá-las, ressignificá-las... Isso já aconteceu muitas vezes na história: quando o capitalismo estava em apuros, cedia o suficiente para não perder o seu domínio.
Estamos em um momento político de disputa na região, em que o neoliberalismo está em default, mas tenta escapar de sua própria falência. O resultado desse dilema dependerá tanto da capacidade da matriz neoliberal de se reinventar, mas fundamentalmente de como o progressismo avance, implemente soluções certeiras e cotidianas aos cidadãos e gere horizontes de acordo com os novos tempos.
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Neoliberalismo em default. Artigo de Alfredo Serrano Mancilla - Instituto Humanitas Unisinos - IHU