A renda universal opera como um ajuste salarial necessário diante da nova configuração do trabalho, diz o pesquisador
Se a crise pandêmica está acelerando inúmeros processos que levariam décadas para serem implementados, de outro lado, as projeções sobre o aumento da pobreza, das desigualdades e as transformações no mundo do trabalho também recolocaram no debate público a urgência de desenhar um programa de renda universal. Esta proposta se diferencia de um programa de renda mínima ao assegurar uma espécie de salário a todos os cidadãos independentemente de condicionalidades, mas, para ser levada adiante politicamente, exige uma “mudança completa de mentalidade” para superar a sociedade salarial. “Hoje, mergulhados nas crises do século XXI, diante dos perigos autoritários representados pelos neopopulistas, precisamos ter a visão política para propor uma nova configuração do salário. Em vez de ficar reagindo com uma agenda negativa, é preciso repensar, reformular e reconstruir. A renda universal se insere nesse quadro estratégico mais amplo, como um ponto focal para uma agenda política de construtivismo institucional. O quantum vai depender das lutas, da capacidade de construir contrapoderes sociais”, afirma Bruno Cava na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line.
Segundo ele, o argumento de que a instituição de uma renda universal desincentivaria a produção não tem mais sentido nos dias de hoje, em que houve uma transformação no mundo do trabalho e, nesse sentido, assegura, a renda universal será o novo salário. “Hoje o valor se concentra na economia do conhecimento, no afetivo, na mobilidade e flexibilidade dos processos produtivos. O país tem uma potência produtiva imensa nos serviços, na economia informal, na cultura (em sentido amplo, processual e não-setorizado) e no trabalho autônomo. São atividades que geram valor, mas o trabalhador é mal remunerado, geralmente sem cobertura trabalhista e social”, descreve. E acrescenta: “Hoje, diante de novos perigos representados pelos neopopulistas, é preciso ter a visão política para propor uma nova configuração do salário”.
Diante das inúmeras crises do século XXI, Cava avalia que a renda universal deve estar no “centro da agenda política”. “O programa de renda do futuro não deve ser o resultado do ajuste de variáveis, mas a renda universal é que deve ser a variável de ajuste para o restante da economia. Se o trabalho vem primeiro, o salário (de novo tipo) também deve guiar as transformações, assim como aconteceu com o salário social do welfare, há cerca de cem anos”, argumenta. Na avaliação dele, a agenda de uma renda universal tem o potencial de unir pessoas de diferentes espectros políticos e posições ideológicas, mas num país tão desigual como o Brasil, sugere, a renda universal precisa estar acoplada a estratégias tributárias.
Bruno Cava (Foto: Cristina Guerini | Acervo IHU)
Bruno Cava é graduado em Engenharia pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica – ITA e em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, pela qual também é mestre em Filosofia do Direito, e oferece cursos livres presenciais e online, por meio do canal Horazul (Youtube). Autor de vários livros, como "A multidão foi ao deserto" (Annablume, 2013) e, com Alexandre Mendes, "A constituição do comum" (2017). No próximo semestre, juntamente com Giuseppe Cocco, lançará o livro "A vida da moeda; crédito, imagens, confiança", pela editora Mauad.
IHU On-Line - Já se falou em renda básica, em renda mínima e hoje fala-se em renda universal. Quais são as diferenças substanciais entre essas propostas e quem é o beneficiado em cada uma delas?
Bruno Cava - A renda mínima é focalizada e tem condicionalidades. Seu escopo é reduzir a pobreza e conduzir os atendidos ao emprego formal, por isso determina certas posturas e tarefas dos atendidos, as condicionalidades, e tem uma abrangência limitada. Já a renda universal é incondicional e abrange todas as pessoas, independente de critério. É um direito inato, como o direito à saúde ou à educação. A renda básica é um estágio intermediário e envolve uma torção importante no conceito de renda mínima: o objetivo não seria suprir uma carência dentro da lógica das necessidades, mas propiciar uma condição real de exercício da liberdade. A renda básica não é meramente assistencial, mas ponto de apoio para cada um poder desenvolver suas potencialidades, para trabalhar, estudar e/ou empreender mais e melhor. O marco teórico mais conhecido desta vertente é o economista belga Philippe Van Parijs.
A renda universal é a linha de chegada da transformação e envolve uma mudança completa de mentalidade, levando à superação da sociedade salarial. Ao desvincular o direito à renda do tempo de trabalho, remunera a dimensão produtiva da vida e o fato que no capitalismo já não existe mais distinção entre tempo de vida e tempo de trabalho. Nessa direção em que a renda universal exprime uma ruptura sistêmica, seja na direção de um novo modo produtivo baseado nos comuns, como na obra do economista Yann Moulier-Boutang, seja de recusa ao capitalismo, em filósofos marxistas como Toni Negri ou Karl Widerquist.
Na prática, ocorrem sobreposições e sincretismos na formulação das medidas reais. O mesmo programa, inclusive, pode evoluir ou refluir na linha entre mínimo e máximo. O Programa Bolsa Família - PBF, resultante da reunião de bolsas e benefícios mais antigos conjugada à massificação da cobertura, é considerado um dos maiores e mais bem sucedidos programas de renda mínima do mundo. Defensor há três décadas de políticas de transferência direta, Eduardo Suplicy enxergava nele um ponto de partida para a renda universal. Nesse sentido, a Lei da Renda Básica de Cidadania (2005) proposta por ele era a evolução natural, mas o governo Lula não a efetivou e caiu em desuso. O entendimento do governo sobre o programa refluiu com Dilma que, em 2008, afirmou que o Programa de Aceleração do Crescimento - PAC deveria ser a porta de saída para o PBF. Ou seja, o conceito norteador que prevaleceu foi uma renda mínima focalizada e transitória, como ponte para o emprego formal.
A discussão sobre a renda básica voltou a pleno vapor com a proposta do atual ministro Paulo Guedes de reunir Bolsa Família e auxílio emergencial, na Renda Brasil. Mais do que contabilidade e planos de gabinete, as lutas ao redor dessa proposta é que vão definir o conceito, o desenho institucional e o valor. São questões em aberto e que fazem toda a diferença.
IHU On-Line - Qual é o efeito da renda básica e da renda mínima sobre as desigualdades e a redistribuição de renda e qual poderia ser o efeito de uma renda universal no enfrentamento destes problemas?
Bruno Cava - Que o Bolsa Família e o Benefício de Prestação Continuada - BPC tenham reduzido a pobreza é um fato comprovado por mais de um estudo. O que não aconteceu paralelamente foi uma redução da desigualdade. A pirâmide de distribuição de renda se manteve inalterada no Brasil, apesar da transferência de renda.
Num país tão desigual, a renda universal precisa estar acoplada a estratégias tributárias. Quando da declaração de imposto de renda, se pode definir uma alíquota de restituição, proporcional à renda total da pessoa (incluído o benefício). Quanto maior a renda total, maior a fração do benefício que deverá ser restituída. A grande maioria na base não precisaria retornar nada, mantendo o caráter virtualmente universal da transferência; enquanto no topo da pirâmide, a restituição seria de 100%; e as camadas médias se distribuiriam por faixas percentuais de retorno entre 0 e 100%.
Por que, em vez de corrigir na tributação como expus acima, não se divide o benefício em faixas já na concessão, distinguindo os segmentos? Primeiro, porque se criaria uma divisão a priori, antes do cômputo da renda efetivamente auferida pela pessoa no ano fiscal. Segundo, porque segmentar os beneficiários pode provocar ressentimentos, inclusive da parte dos que recebem, como se estivessem recebendo uma ajuda envergonhada. Esse argumento que moraliza a política social é uma arma retórica de populistas que, com a gramática dos privilégios, têm conseguido mobilizar os não-atendidos (incluídos x excluídos). E terceiro, como estamos vendo no auxílio emergencial, é bem mais simples operacionalizar o programa com um valor único para todos os atendidos. Por essas razões, é melhor conceder universalmente o mesmo valor e depois ajustar retroativamente através do imposto de renda.
IHU On-Line - Em função da pandemia, o debate da renda universal voltou à cena. Alguns sugerem a renda universal como alternativa para enfrentar as consequências da pandemia, como o aumento da pobreza, do desemprego e da crise econômica, enquanto outros argumentam que ela permitiria a possibilidade de se constituir uma nova cidadania. Como vê essa discussão? Por quais razões seria importante instituir uma renda universal hoje e que tipo de cidadania ela permitiria?
Bruno Cava - Um dos principais argumentos contra o auxílio tornar-se permanente é que desincentivaria a produção. A premissa é que haveria um setor produtivo que organiza a força de trabalho, enquanto a disseminação de renda promove uma entropia, mantendo a economia desorganizada. Essa é uma visão ultrapassada pelas transformações do mundo do trabalho. Hoje o valor se concentra na economia do conhecimento, no afetivo, na mobilidade e flexibilidade dos processos produtivos. A fábrica não é mais uma unidade em que o capital tem de agrupar os trabalhadores, como um princípio de disciplina da força de trabalho. A fábrica se derramou para fora dos muros, como uma instituição de produção difusa. Tenho em mente a leitura que Michel Foucault fez do neoliberalismo, em 1979: antes uma governamentalidade do que um programa de proletarização disciplinar.
É preciso evitar uma confusão que mistura a crítica da atividade em si com a crítica das condições a que é submetida. O país tem uma potência produtiva imensa nos serviços, na economia informal, na cultura (em sentido amplo, processual e não-setorizado) e no trabalho autônomo. São atividades que geram valor, mas o trabalhador é mal remunerado, geralmente sem cobertura trabalhista e social. A margem do trabalho grátis está alargada, particularmente na economia do cuidado ou da reprodução social, em que frequentemente a atividade não é sequer reconhecida como trabalho.
A mudança estrutural do trabalho que estamos vivenciando não produz um cenário de fim do trabalho, como se houvesse um setor produtivo essencial (trabalho produtivo) e todo o resto seria supérfluo, estético ou setor do lazer (improdutivo), de maneira que o capitalismo passasse a dispensar boa parte da população mundial. Este entendimento levaria ao conceito de uma renda mínima baseado na hipótese do fim do emprego, de um desemprego estrutural inevitável e naturalizado, como na obra de Jeremy Rifkin. O caso é que a otimização da eficiência através de sistemas colaborativos e integrados, o que Rifkin chama de "internet das coisas", não está zerando o custo marginal, pois o tempo de vida não é uma variável infinitamente elástica.
Em vez disso, a modernização, a automação e a digitalização do sistema produtivo na realidade multiplicam as formas de trabalho e reconfiguram a cartografia das relações entre tempo remunerado e tempo grátis. Para tomar ensinamentos do período em quarentena, a engenharia digital, o trabalho autônomo dos entregadores e a uberização dos serviços foram tão essenciais quanto a fabricação física de alimentos. A rigor, mesmo a produção de alimentos envolve uma rede complexa de biotecnologias, pesquisas, patentes, algoritmos logísticos, o que por sua vez implica não só uma multidão de técnicos, como também hábitos colaborativos e capacidades difusas pelo tecido da sociedade.
É nesse sentido, mais uma vez, que a renda básica ou universal opera como um ajuste salarial necessário diante da nova configuração do trabalho, quando a produção está baseada na força geral dos saberes sociais e científicos, o que Marx chamava de "General Intellect". A renda universal é uma contrapartida para a fração do iceberg que fica debaixo da linha da remuneração, sem direito a salário.
IHU On-Line - Que critérios deveriam ser utilizados para definir uma renda universal e qual deveria ser o valor desta renda?
Bruno Cava - O critério mais abrangente possível, inclusive com imigrantes e população carcerária. Quanto ao valor, a quantidade é qualidade e determina a diferença entre programas conjunturais voltados a apaziguar crises ou compensar distorções, e um programa estrutural, à altura das transformações das formas de vida. Vários grupos acadêmicos discutem neste momento os modos de viabilizar a renda universal e esta é uma discussão fundamental. Destaco o esforço de fazer a ponte entre academia e arena pública de Marcelo Medeiros e Monica de Bolle.
Existe uma questão preliminar ao debate mais técnico que é política. Se perguntássemos para a maioria dos economistas e especialistas em janeiro se seria viável um auxílio emergencial de R$ 600, com a abrangência com que foi concedido, diriam que a conta não fecha. Que seria impensável dentro da estrutura fiscal do país. O fato é que veio a pandemia e o auxílio emergencial se impôs de maneira inusitadamente unânime. O auxílio emergencial na nossa conjuntura, assim como o Bolsa Família no final do primeiro governo Lula, em 2005-06, teve um papel de estabilização política.
E é aí que a economia entendida como contabilidade acaba e começa a economia política. O nível do salário é uma variável eminentemente política e embute antagonismos poderosos. A fundação da macroeconomia com Keynes, um liberal heterodoxo, em boa medida se deu com a constatação da rigidez da variável salarial. Afinal, não existe um ponto natural de convergência do pacto entre empregados e empregadores que não seja dado por uma relação subjacente de forças, pois não existe uma justiça proporcional inscrita na ordem das coisas (como gostaria Aristóteles).
Num período de crise política e econômica, com a quebra da bolsa de Nova Iorque de 1929, ante o duplo avanço do fascismo e do estalinismo, a escola keynesiana mais política propôs reformar o sistema por meio da introdução do salário social. A questão da renda virou uma variável de ajuste mais política do que econômica. Ou seja, um sistema de welfare que se agrega à renda do trabalho através de instituições e serviços públicos. A conquista do welfare foi o produto das lutas do fervilhante sindicalismo norte-americano, que culminou nos desenhos institucionais do New Deal dos anos 1930, com reformas tributárias, monetárias, do sistema de proteção social.
Hoje, mergulhados nas crises do século XXI, diante dos perigos autoritários representados pelos neopopulistas, precisamos ter a visão política para propor uma nova configuração do salário. Em vez de ficar reagindo com uma agenda negativa, é preciso repensar, reformular e reconstruir. A renda universal se insere nesse quadro estratégico mais amplo, como um ponto focal para uma agenda política de construtivismo institucional. O quantum vai depender das lutas, da capacidade de construir contrapoderes sociais.
Somente com as lutas se pode escapar de um desenho da renda que prometa que tudo deve mudar para que tudo fique como está, um dos riscos dessa possível captura da pauta por um governo populista. Para evitar isso, temos que ter sempre em mente que a renda do futuro não deve ser o resultado do ajuste das variáveis. A renda é que precisa ser afirmada politicamente como a variável de ajuste do restante da economia. Se partirmos do princípio de economia política (liberal ou marxista) que o trabalho vem como condição primeira na geração de valor, então um salário de novo tipo deve ser a matriz para o futuro da organização da sociedade.
Para não deixar de oferecer um panorama tático: o melhor seria uma mobilização pela perenização do auxílio emergencial, no mesmo valor já concedido de R$ 600. Nesse primeiro momento, o auxílio coabitaria a cena com o PBF e o BPC, desde que não haja cumulação de benefícios. Daí partiriam linhas evolutivas, possivelmente, com um reforço do valor orientado para crianças e adolescentes. O mais importante é desencadear um processo de mobilização social centrado por essa agenda emergente. De dentro dele se formarão os caminhos para a renda universal.
IHU On-Line - A instituição de uma renda universal para todos poderá gerar que tipo de implicações no mundo do trabalho? Os empregos poderão ser, necessariamente, melhores e os trabalhadores teriam mais poder de barganha ou, ao contrário, a mão de obra poderá se tornar ainda mais seletiva e as desigualdades de renda maiores?
Bruno Cava - Um dos argumentos contábeis contra a renda universal é que, ao encarecer o preço do trabalho, termina por elevar os custos ao longo de toda a cadeia produtiva. Em certo sentido, isso é verdade. É parte inclusive do efeito redistributivo ou reorganizativo da renda universal, que implica alterar a composição das planilhas de formação dos preços de dentro, através da variável salário. Haverá processos produtivos que serão beneficiados e outros prejudicados. O pretenso equilíbrio anterior ao programa será afetado. É parte do processo, pois numa crise profunda, o reequilíbrio não deve se orientar pelo normal anterior, mas por um novo normal.
Isto significa, também, que a luta pela renda universal precisa se organizar mundialmente, numa rede transnacional de grupos, propostas e programas. Quando as classes trabalhadoras fordistas do Norte desenvolvido conquistaram através da luta instituições sólidas de welfare, com sindicatos atuantes e direitos reconhecidos, se iniciou quase imediatamente o contramovimento da deslocalização produtiva, na direção do Terceiro Mundo. O fordismo keynesiano do primeiro mundo tinha por pano de fundo o colonialismo e a exploração dos povos. Essa desconsideração pelas minorias internas e externas era a principal limitação dos programas assemelhados ao New Deal. Em resposta, as lutas antifordistas do ciclo de 1968 foram lutas anticoloniais levadas ao ponto mais avançado do sistema, assim como hoje as grandes migrações globais o fazem reeditando as fraturas da globalização neoliberal.
No longo prazo, a renda universal deve ir se disseminando por vários países. Do contrário, corre-se o risco de remontagem de cadeias produtivas mais exploratórias onde a deflação salarial é vantagem competitiva. Isso se deu, por exemplo, com a China depois das reformas econômicas de Deng Xiaoping, nos anos 1980, disparando a longa marcha como fábrica mundial. Atualmente, com a multidão de chineses constantemente irrequietos e sublevados, com níveis insuportáveis de poluição nas regiões mais industrializadas, o governo chinês diversificou sua máquina produtiva para o Sudeste Asiático e a África Oriental, que viraram a "China da China".
IHU On-Line - Quais são as diferenças e as consequências, para os trabalhadores, de se reivindicar uma renda universal para todas as pessoas e não um salário justo para todos?
Bruno Cava - Nenhuma. A luta pela renda é a luta pelo salário, isto é, por melhores condições de viver e trabalhar. Cada vez mais as formas de trabalho são imediatamente formas de vida. Existem muitas críticas ao neoliberalismo vindas inclusive da esquerda que estão completamente deslocadas. Como se o neoliberalismo fosse sinônimo de flexibilização e mobilidade, uma liberdade perversa. Ora, como diria Foucault, o neoliberalismo é uma governamentalidade. Tem eficácia e tem vencido justamente por se acoplar bem com a flexibilidade e a mobilidade e não por ser o criador delas.
Pulsa um desejo no âmago do neoliberalismo que é sua força motriz. Ao repararmos nas novas gerações, veremos que são bem mais fluidos. Em vez de carro próprio, vão chamar um Uber, em vez de casa própria, Airbnb, compartilhar casa, encontrar outros arranjos. Mesmo os relacionamentos e amizades se fractalizaram, o gênero e a sexualidade viraram canteiros permanentes de obra, mais do que uma edificação rígida.
Na sociedade fordista, cujo ápice foi o sonho americano do segundo pós-guerra, se ambicionava emprego formal, carreira estável, carro, casa e família estruturada. Todo aquele imaginário da casa tranquila no subúrbio, com o ônibus amarelo buscando a criança em casa. Esse sonho desabou não porque surgiu uma nova ideologia, mas porque o desejo se moveu para outras formas de vida, formando outras margens de liberdade, assim como de exploração, novos regimes de trabalho e métricas de produtividade social.
Se trouxermos essa reflexão de crítica do fordismo para o Sul global emergente, vamos ver que em nossa história econômica jamais fomos fordistas, com exceção de bolsões localizados de industrialização intensiva no Sul-Sudeste. A potência da economia está em se virar na precariedade, em arranjos flexíveis, famílias ad hoc, num empreendedorismo criativo, sempre em condições difíceis de subsistência. Não é romantização, mas reconhecimento do paradoxo. O nosso problema é não termos desenvolvido um sistema de proteção social que desse conta dessa realidade. A própria palavra "informal" pode sugerir que o padrão almejado seria o emprego formal, como se houvesse um déficit constitutivo na autonomia e nas linhas flexíveis.
A renda universal valoriza e reconhece uma realidade que já existe, mas que fica desprotegida. No sentido emancipatório, a luta pela renda universal busca desarmar o neoliberalismo de dentro de seu maquinário, não o subestimando como uma simples perversão.
IHU On-Line - A renda universal precisaria ser combinada com outros programas, como de garantia de emprego?
Bruno Cava - Neste momento, é importante separar as propostas, ou se corre o risco de enchê-la de penduricalhos. A luta pela renda tem um potencial de reunir pessoas das mais diferentes preferências políticas e humores ideológicos.
Essa pretensão de pleno emprego a serviço do desenvolvimento do país parte da premissa que as pessoas estariam ociosas, sem emprego, à espera de uma chance para trabalhar numa indústria ou obra. Não falta às pessoas o que fazer, o que falta é renda para que elas possam fazer o que poderiam.
Nos Estados Unidos, esse debate ebuliu nas primárias do Partido Democrata. Lideranças da Nova Esquerda Populista, como Alexandria Ocasio-Cortez e Bernie Sanders, defenderam um Programa de Garantia de Emprego (Job Guarantee). Os adeptos da Moderna Teoria Monetária (MMT, na sigla em inglês) também atrelam sua quebra de paradigma macroeconômico ao papel centralizador do governo em organizar a produção e estimular o emprego. Um outro candidato, Andrew Yang, foi noutra direção e montou toda sua campanha ao redor de uma renda básica de US$ 1.000 para todos cidadãos americanos maiores de idade (Freedom Dividend).
Ainda é difícil avaliar como a MMT se adaptaria ao cenário brasileiro, mas essa diretriz em particular parece reverberar com programas econômicos do fordismo-keynesianismo, de que é preciso planejar e organizar a produção a partir de instâncias estatais, como uma direção política. Seria a retomada da posição de um Roberto Simonsen na Controvérsia do Planejamento, que precisaria ser repensada para as condições atuais. Ou podemos terminar equipando o museu das velhas novidades, como nos anos Dilma ou nas mais recentes caricaturas de um Plano Marshall à brasileira, que, no interior do governo Bolsonaro, já se apresenta como linha alternativa à ortodoxia chicaguista de Paulo Guedes.
IHU On-Line – Pode explicar a sua proposta sobre a necessidade de uma evolução dos sistemas de proteção social, que passariam de um modelo baseado no emprego formal para um modelo de flexibilização e mobilidade das redes produtivas?
Bruno Cava - O ponto máximo do imaginário da vitalidade e alegria da classe operária aconteceu, nos anos 1950, com o Partido Comunista Italiano - PCI, sob a liderança de Palmiro Togliatti. O PCI foi a maior agremiação de matiz socialista num país capitalista e deu grande ímpeto à visão de um estado nacional-popular, baseado na organização de base da classe trabalhadora. O encanto quebrou, logo depois, com as revoltas operárias de Piazza Statuto (Turim), em 1962, dando início à fase operaísta das lutas na Itália. Uma geração de migrantes das regiões meridionais do país engrossou uma luta que se orientava por recusar o trabalho fabril, por quebrar a espinha do pleno emprego do período fordista.
No Brasil, houve um processo parecido, noutras coordenadas, quando, no fim dos anos 1970, migrantes do Norte-Nordeste ajudaram a impelir as greves do ABC. Ali se formava uma oposição ao sindicalismo tradicional que não louvava o uso do macacão, a ideia getulista de elogio ao bom trabalhador. Pelo contrário, era uma luta de recusa ao trabalho fordista e à proletarização fabril e manifestava um desejo do operário em rasgar o macacão. Essa contradição permanece até hoje; enquanto parte da esquerda tem um fetiche pelo macacão, pelo uniforme de trabalho, os trabalhadores buscam qualidade de vida para além da fábrica ou obra. Quando Keynes escrevia sobre como construir pirâmides ou cavar e tapar buracos funcionaria como estímulo ao pleno emprego, ele provavelmente estava longe de um canteiro de obras real.
No Brasil da redemocratização dos anos 1980, se difundiram lutas de novo tipo, na busca de autonomia, que o sociólogo Éder Sader descreveu com tanta precisão no clássico "Quando novos personagens entram em cena: experiências, falas e lutas dos trabalhadores da Grande São Paulo, 1970-80" (1988). A autoconstrução da moradia popular, os mutirões, o movimento das mulheres e da saúde, tudo isso indicava uma linha de reconstrução da proteção social bem diferente do que o pretendido por planejamentos estatizantes, por exemplo, no marco das reformas de base.
A mobilização pela renda universal pode ser entendida como um prolongamento da autovalorização da multidão, para além dos planos de dirigentes produtivistas do Governo Grande (Big Government).
Se pensarmos a proposta da renda universal como transformação sistêmica, então ela é o pivô para uma reorganização das instituições e dos serviços sociais. Sim, e na verdade essa reorganização já está em curso, de maneiras implícitas.
Tomemos a uberização como exemplo. Uma crítica vulgar ao neoliberalismo se limitaria a criticar os regimes de exploração modulada do trabalho, que se dá pela desregulamentação e terceirização. É verdade, quanto à compressão dos direitos efetivos. Mas essa crítica se torna lírica, apenas para amentar o óbvio, se não explicar por que preferimos pegar um Uber a pegar táxi, por que programas de otimização dos circuitos de oferta e demanda funcionam com tanta força produtiva (Amazon, Airbnb, Rappi, Tinder). E por que a uberização conseguiu dissolver de vez o sonho de ter um automóvel particular, o emblema do fordismo.
Por que pegamos um Uber, mas não entraríamos em carros particulares dirigidos por estranhos? Porque a Uber é um protocolo de confiança. A empresa oferece credibilidade ao usuário. O curioso é que o usuário não só paga pelo serviço, como é ele quem trabalha pela Uber na acreditação dos seus funcionários. Somos nós que avaliamos os motoristas e relatamos os problemas. A Uber é uma empresa virtual, com um aplicativo relativamente simples.
Outro exemplo são os entregadores que, na pandemia, se mostraram tão essenciais. Antigamente, o normal era cada estabelecimento manter os seus próprios entregadores. Eles vestiam uniformes e às vezes as motos também eram fornecidas pelo patrão. Ao pedir entrega desse lugar, passávamos a conhecer os entregadores pelo nome. O modelo de negócio uberizou: agora há um pool de entregadores que disponibiliza a oferta e os aplicativos simplesmente usam um algoritmo de eficiência alocativa para ligar os pontos, entre estabelecimentos e consumidores. Novamente, somos nós mesmos que avaliamos a eficiência e segurança das operações, realimentando o algoritmo.
Aí vem duas questões. Como os entregadores vão se organizar? Não vai ser com um sindicato à moda fordista, como uma luta de categoria, pois eles não têm uma classe de empregadores contra quem lutar. Quem é o patrão do empregador? Vai ser necessário a luta também. Os entregadores querem aumentar a sua renda reapropriando-se do valor social difuso (General Intellect) no qual estão implicados: serviço essencial da sociedade como um todo.
IHU On-Line - Há uma crítica de que programas sociais como o Bolsa Família, apesar da sua contribuição social, favoreceram enormemente o setor financeiro. O mesmo pode ocorrer em relação a uma renda universal? Como evitar essa consequência?
Bruno Cava - Essa crítica parte do princípio que o dinheiro seria entesourado, permitindo que o banco o reemprestasse a juros, multiplicando os lucros sem uma atividade real por trás. É uma premissa equivocada inclusive do ponto de vista dos bancos privados, que precisam que o dinheiro emprestado tenha retorno financeiro em aplicações produtivas, sob o risco de apenas aumentar a inadimplência. Simplesmente relançar a liquidez no mercado de crédito, atrás de um lucro de curto prazo que não passa de uma bolha especulativa, não interessa ao mercado bancário.
Se houve um favorecimento oriundo da massificação de programas sociais como o PBF ou o BPC, foi que promoveu o desenvolvimento diferenciado de regiões mais pobres ou afastadas dos grandes centros. Além disso, o aumento do consumo local e regional favoreceu os entes municipais, que recolhem tributos dos circuitos comerciais. Parte das transferências diretas retornam por meio da tributação sobre o consumo. Parte delas será convertida em papel-moeda e vai circular na economia informal, com um retorno tributário. Neste caso, no entanto, não é ruim que não retorne, pois a tributação não deveria mesmo onerar os mais vulneráveis nem atrapalhar circuitos de renda e produção. Ainda há a questão adicional do efeito multiplicador social das transferências, como já estudado nos casos do PBF e do BPC. Ao promover a mobilização produtiva das pessoas, aumenta o nível de oferta de bens e serviços ao longo da variável tempo, propiciando um saldo em relação ao afluxo original.
Com mais renda, as pessoas evoluem como fatores reais de produção. O salário é uma variável híbrida, ao mesmo tempo financeira e real, pois está atrelado à capacidade da pessoa de viver, trabalhar, produzir. Esse é um argumento produtivista para a renda, visto que a renda universal é um novo tipo de salário.
O maior risco consiste em aumentar a inflação. Como resposta à crise global de 2008, as políticas de 'Quantitative Easing' (facilitação monetária ou, em tradução livre, Dinheiro Fácil) no Primeiro Mundo multiplicaram a base monetária por 10, 20, 60 vezes, e não repercutiu em explosão da inflação nem da taxa de juros. O funcionamento da macroeconomia não se comportou conforme os modelos tradicionais que correlacionam oferta de dinheiro e nível de preços. O economista André Lara Resende tem escrito artigos didáticos sobre como a teoria macroeconômica evoluiu para uma relação mais nuançada entre emissão de dinheiro e nível dos preços.
Segundo a interpretação heterodoxa, a inflação é gerada quando o excesso de demanda agregada pressiona a capacidade produtiva instalada, não conseguindo aumentar o produto. Isto provoca um giro em falso do dinheiro, que pode desequilibrar os preços. Num país com baixa produtividade e histórico de inflação inercial, o equilíbrio monetário é uma variável delicada.
O grande xis da questão, aqui, é como medir essa produtividade? O que conta como capacidade instalada? Como interpretar e qual a métrica do que seria uma situação keynesiana de pleno emprego? Aí precisaríamos compor as explicações macroeconômicas com discussões de sociologia do trabalho, teoria da globalização e microeconomia. Como mediríamos, por exemplo, a economia do cuidado ou a promoção da saúde mental? Essas perguntas precisam ser desenvolvidas com pesquisas e análises.
Para colocar os pés no chão, diria que, à luz do passado latino-americano de hiperinflação, é importante manter um olho na transferência de renda e outro na inflação, com eventuais recalibragens dos programas na medida de seus efeitos macroeconômicos. Do mesmo modo como o Banco Central opera sob o regime de metas da inflação.
IHU On-Line - Quais são as possibilidades de financiar uma renda universal?
Bruno Cava - O primeiro empecilho é jurídico, pois o arcabouço consolidado das finanças públicas no país está estruturado sobre a noção de equilíbrio fiscal. Uma solução noutras circunstâncias histórico-políticas seria criar um orçamento paralelo, ancorado num fundo soberano, tratando o gasto público com a renda como emissão primária de dinheiro. Seria aproveitar elementos teóricos da MMT, mas em vez de um programa neokeynesiano de pleno emprego mais tradicional, na velha cartilha dos programas modernizantes voltados ao capital nacional, um programa de renda universal com investimento direto nas pessoas.
O problema desta abordagem é que ressoaria com o nosso passado de desorganização financeira e econômica. Na época da ditadura, o governo desenvolvimentista chegou a funcionar com três orçamentos separados (fiscal, monetário e Banco do Brasil) e ainda mantinha uma planilha para Gastos Extra-Orçamento. Gastava-se com "recursos a definir" e se emitia dinheiro através da cornucópia da "conta-movimento", existente num limbo monetário entre o BC e o BB.
Levando isso em conta, conjecturar orçamentos paralelos e adotar a teoria funcional das finanças públicas da criação de dinheiro através do gasto do governo (os famosos "recursos a definir") vai enfrentar uma justa resistência teórica e política. Some-se à herança pré-Plano Real o que Lara Resende chamou de "estresse pós-traumático" devido aos rombos, escândalos e desequilíbrios mais recentes dos anos neodesenvolvimentistas do governo Dilma.
O caminho mais factível parece ser uma reforma tributária associada a uma nova gestão do passivo do governo consolidado, contabilizando a renda como tributação negativa, nos termos neoliberais de Milton Friedman. Considerando a divisão constitucional de funções entre Banco Central e Tesouro, o primeiro com a gestão do passivo monetário (reservas), e o segundo com o passivo fiscal (títulos), será necessário coordenar as instituições de maneira democrática, sem recair no centralismo dos czares econômicos. A ideia não vai funcionar se tivermos um Delfim Netto da Renda Universal, ao gosto dos neopopulismos nacionalistas. O programa precisa ser plural e inclusivo, com horizontes alargados no tempo e no espaço, e sintonizado com as novas lutas do trabalho contemporâneo.
IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?
Bruno Cava - Se a macroeconomia mundial virou de ponta cabeça com políticas de facilitação monetária depois da crise de 2008 e, no caso de 1929, com o New Deal e o keynesianismo, por que não teríamos imaginação para reinventá-la noutro sentido? Não devemos ficar empanturrados das categorias e conceitos do passado. As teorias são ferramentas, os autores de estimação nos acompanham, mas não devemos ser comandados por eles. Numa grande crise, a inteligência colocada em movimento pelas lutas é a via para reabrir a história.