Por: João Vitor Santos | Tradução: Moisés Sbardelotto | 30 Julho 2018
O economista italiano Andrea Fumagalli aposta que o pensamento de Karl Marx ainda serve como subsídio para análises das dinâmicas do século XXI. Mas, para ele, tão importante quanto apreender as elaborações do autor, é observar o que o faz chegar até elas. “A atualidade de Marx está no fato de que ele nos lembra que todo economista, principalmente hoje, deveria ter uma sólida base filosófica e epistemológica. Infelizmente, hoje, vigora a regra oposta”, aponta. Ou seja, concebendo a economia não como algo estanque e duro, se é capaz de avançar as análises diante de transformações mais contemporâneas. “Não existem leis imanentes na economia política. A atual metafísica econômica (imposta pelo neoliberalismo) não faz sentido”, dispara. E, na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, acrescenta: “a análise de Marx (mas não em todo o marxismo) é uma análise ‘humanista’”.
É, por exemplo, o caso da “teoria do valor” que, embora pensada por Marx num contexto específico, mantém linhas de fuga capazes de fazer avançar as análises em outros cenários. “A teoria tradicional do valor do trabalho deve ser revista em relação a uma nova teoria do valor, em que o conceito de trabalho é cada vez mais caracterizado por ‘conhecimento’, ‘reprodução social’ e é permeado pela vida humana e pelo tempo de vida. Podemos chamar essa passagem como a transição a uma teoria do valor-vida”, analisa. Fumagalli ainda observa que a matriz marxiana pode ser empregada como instrumental para observar os avanços da biotecnologia nos contextos sociais e produtivos de hoje, bem como as movimentações do capital nesses cenários. “Com o advento do capitalismo biocognitivo, que é uma extensão do capitalismo cognitivo, em que a vida humana inteira é transformada em valor, entramos em uma nova fase da relação capital-trabalho”, indica.
Andrea Fumagalli
Foto: João Vitor Santos/IHU
Andrea Fumagalli é doutor em Economia Política pela Università Bocconi e Università Cattolica di Milano, Milão, graduado em Economia e Ciências Sociais pela mesma instituição e posteriormente desenvolveu atividades de pesquisa em parceria com a École des Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris, e a New School for Social Research (Nova York). Professor no Departamento de Economia Política e Método Quantitativo da Faculdade de Economia e Comércio da Università di Pavia, Itália.
Entre suas publicações, destacamos a edição em espanhol do livro Bioeconomia y capitalismo cognitivo (Madri: Traficantes De Sueños, 2010), a edição em inglês do livro Cognitive Capitalism, Welfare and Labour: The Commonfare Hypothesis (Londres: Routledge, 2010) e o artigo O conceito de subsunção do trabalho ao capital: rumo à subsunção da vida no capitalismo biocognitivo, publicado em Cadernos IHU ideias número 246.
Em 2017, publicou Economia politica del Comune. Sfruttamento e sussunzione nel capitalismo bio-cognitivo [Economia política do Comum. Exploração e subsunção no capitalismo biocognitivo] (Roma: Derive Approdi, dezembro de 2017).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Quais os limites e as potencialidades das ideias marxistas para orientar reflexões acerca do mundo do trabalho em nosso tempo?
Andrea Fumagalli – A principal potencialidade e a grande atualidade de Marx está na abordagem metodológica. Em particular, em relação a dois aspectos. O primeiro deriva da constatação de que, no centro da análise marxiana, está o “sujeito humano”. A análise de Marx (mas não em todo o marxismo) é uma análise “humanista”. O “humanismo” de Marx deriva da sua abordagem filosófica juvenil, que se condensa principalmente nos Manuscritos histórico-filosóficos de 1844, quando Marx começa a delinear alguns instrumentos conceituais, como alienação e fetichismo, que somente mais tarde seriam conjugados em chave mais econômica. Mesmo depois da “descoberta” da economia política burguesa, graças à investigação de Engels sobre a condição social da classe operária inglesa, e, portanto, do desenvolvimento de uma rigorosa análise do funcionamento da acumulação capitalista (os três volumes de O Capital), a referência à subjetividade, contudo, não desaparece e retorna prepotentemente nos Grundrisse. A atualidade de Marx está no fato de que ele nos lembra que todo economista, principalmente hoje, deveria ter uma sólida base filosófica e epistemológica. Infelizmente, hoje, vigora a regra oposta.
O segundo elemento de potência da análise marxiana está em reconhecer que toda análise social e econômica é sempre uma análise a definir e, portanto, dinâmica, resultado de um processo dialético em constante metamorfose. A abordagem historicista nos diz que a compreensão de uma dinâmica social só pode ser válida dentro de um contexto histórico e/ou espacial bem definido e delineado. Não está dito que aquilo que pode valer hoje pode valer amanhã. Não existem leis imanentes na economia política. A atual metafísica econômica (imposta pelo neoliberalismo) não faz sentido.
Aqui também está o limite não tanto de Marx (cuja análise sempre deve ser avaliada em relação ao seu tempo histórico), mas sim de um certo marxismo, que podemos definir como “científico”, que tem a ambição de formular uma análise social (e, consequentemente, a identificação dos processos de sua transformação) que tende a permanecer inalterada ao longo do tempo, através da definição de conceitos básicos e de agregados sociais definidos de modo “a-histórico”.
IHU On-Line – De que forma o capitalismo cognitivo reconfigura o cenário pensado por Marx no século XIX?
Andrea Fumagalli – A hipótese do capitalismo, como definida por Carlo Vercellone
"o termo capitalismo designa a permanência, na metamorfose, das variáveis fundamentais do sistema capitalista: em particular, o papel-guia do lucro e da relação salarial, ou, mais precisamente, as diferentes formas de trabalho dependente das quais se extrai a mais-valia; o atributo cognitivo evidencia a nova natureza do trabalho, das fontes de valorização e da estrutura de propriedade, sobre as quais se fundamenta o processo de acumulação e as contradições que essa mutação gera",
se insere na análise marxiana. Ela indica o declínio de uma metamorfose da relação social capital-trabalho na sequência da crise da valorização fordista, graças ao desenvolvimento de um novo paradigma tecnológico, de novas formas de valorização (financeirização e internacionalização da produção) e de novos processos de governança do mercado de trabalho e dos processos de subsunção. Como se sabe, Marx havia antecipado no “fragmento sobre as máquinas”, nos Grundrisse, o papel cada vez mais relevante do conhecimento na definição da relação capital-trabalho e entre trabalho morto e trabalho vivo.
IHU On-Line – Como Marx compreende o conceito de trabalho?
Andrea Fumagalli – O tema do trabalho em Marx é bastante complexo. Ele, o trabalho, “não é a fonte de toda a riqueza. A natureza é a fonte dos valores de uso (e nestes consiste a riqueza efetiva!) tanto quanto o trabalho, que, em si, é apenas a manifestação de uma força natural, a força de trabalho humana”, escreve Marx no primeiro parágrafo da Crítica ao Programa de Gotha (1875). E, depois, acrescenta que tal afirmação é verdadeira no mesmo momento em que há um equilíbrio com a natureza e, ao mesmo tempo, uma diferença. Equilíbrio que não é dado no capitalismo, uma vez que o trabalho capitalista nada mais é do que pura extrinsecação (via exploração) da força de trabalho (ou seja, capacidade de produzir valor de uso) voltada à produção de valores de troca.
Trinta anos antes, nos Manuscritos histórico-filosóficos de 1944, Marx havia escrito:
O animal produz unicamente aquilo que lhe é imediatamente necessário para si ou para os seus nascidos; produz de modo unilateral, enquanto o homem produz de modo universal; produz apenas sob o império da necessidade física imediata, enquanto o homem produz também livre da necessidade física, e só produz verdadeiramente quando está livre dela; o animal só reproduz a si mesmo, enquanto o homem reproduz toda a natureza (...) O animal só constrói de acordo com a natureza e a necessidade da espécie a que pertence, enquanto o homem sabe produzir de acordo com a medida de cada espécie e, por toda a parte, sabe predispor a medida inerente àquele determinado objeto; portanto, o homem também constrói de acordo com as leis da beleza.
Marx, portanto, considera a atividade laboral “livre” como um fator instituinte da subjetividade humana. A esse respeito, acredito que pode ser útil distinguir entre trabalho (no sentido capitalista do termo: que produz valor de troca: labor) e obra (atividade que produz valor de uso: opus).
Nas palavras do Marx de O Capital:
De fato, o reino da liberdade só começa onde cessa o trabalho determinado pela necessidade e pela finalidade externa; portanto, por sua natureza, encontra-se além da esfera da produção material propriamente dita.
Em última análise, creio que, para Marx, o trabalho faz parte da natureza humana apenas quando envolve a superação do trabalho determinado por uma necessidade que, para o sujeito individual, se apresenta como heterônoma e heterofinalista. Rejeição do trabalho capitalista em nome de uma atividade liberada e autônoma. Como diz o poeta: “Considerei a vossa procedência: não fostes feitos para viver quais brutos, mas para buscar virtude e sapiência”.
IHU On-Line – Quais os desafios para, a partir de uma releitura de Marx, pensar noutras formas da relação capital-trabalho no mundo de hoje? E como a ideia de “subsunção” pode ser compreendida atualmente?
Andrea Fumagalli – Com o advento do capitalismo biocognitivo, que é uma extensão do capitalismo cognitivo, em que a vida humana inteira é transformada em valor, entramos em uma nova fase da relação capital-trabalho. Em particular, são dois os aspectos que é preciso destacar. O primeiro tem a ver com o fato de que, entre elemento maquínico e elemento humano, a separação tende a desaparecer: a máquina se torna “humana”, e o ser humano, “maquínico”. O segundo aspecto, crucial, é que, em tal contexto, surge um problema de “medida”. Em outras palavras, como pode ser medida a vida transformada em valor? Falaremos disso mais adiante.
Em relação à temática da subsunção (muito importante para mim) remeto ao meu último livro: Economia politica del Comune. Sfruttamento e sussunzione nel capitalismo bio-cognitivo [Economia política do Comum. Exploração e subsunção no capitalismo biocognitivo] (Roma: Derive Approdi, dezembro de 2017). A minha hipótese é a de que o capitalismo biocognitivo é caracterizado pela coexistência de subsunção formal e subsunção real ao mesmo tempo. A subsunção formal, implícita no capitalismo biocognitivo, tem a ver com a redefinição da relação entre trabalho produtivo e trabalho não produtivo, tornando produtivo aquilo que, no paradigma fordista, era improdutivo.
A subsunção real tem a ver com a relação entre o trabalho vivo e morto, como consequência das passagens de tecnologias mecânicas repetitivas às linguísticas e relacionais. As tecnologias estáticas, na base do crescimento da produtividade e da intensidade dos desempenhos do trabalho (economias de escala dimensional) se transformam em tecnologias dinâmicas capazes de explorar a aprendizagem e as economias de rede, combinando simultaneamente atividades manuais e atividades relacionais. O resultado foi o aumento de novas formas de trabalho mais flexíveis, em que as fases de projeto e execução (CAD-CAM-CAE) não são mais perfeitamente separáveis, mas cada vez mais interdependentes e complementares. Nos últimos anos, a organização do trabalho é cada vez mais condicionada pelo uso de algoritmos, capazes de organizar diretamente uma atividade laboral, aparentemente caracterizada por um alto grau de autonomia. A separação entre execução e produção de serviços também se torna mais difícil de analisar. Elas se tornam inseparáveis dentro da cadeia de produção.
Quanto à produção material, a introdução de novos sistemas de produção computadorizados, como o CAD-CAM e CAE, requer competências, habilidades e conhecimentos profissionais que tornam a relação entre homem e máquina cada vez mais inseparável, a ponto de que, agora, o trabalho vivo é capaz de dominar o trabalho morto da máquina, mas dentro de uma nova forma de organização do trabalho e de governamentalidade social. Do lado da produção de serviços (financeirização, pesquisa e desenvolvimento, comunicação, marca, marketing, serviços pessoais), estamos assistindo a uma predominância da valorização a montante, acompanhada por um papel crescente de novas formas de automatização (baseadas nos algoritmos).
Dois lados de uma mesma moeda
No capitalismo biocognitivo, a subsunção real e a subsunção formal são dois lados da mesma moeda e se alimentam mutuamente. Juntas, criam uma nova forma de subsunção, que eu chamo de subsunção vital. Prefiro esse termo ao de subsunção do intelecto geral, como proposto por Carlo Vercellone, porque não nos referimos apenas à esfera do conhecimento e da formação, mas também à esfera das relações humanas, em sentido lato. Essa moderna forma de acumulação capitalista evidencia alguns aspectos que estão na base da crise do capitalismo industrial. Isso leva à análise de novas fontes de valorização (e de rendimentos crescentes) no capitalismo biocognitivo. Elas derivam da crise do modelo de divisão social e técnico do trabalho (gerado pela primeira revolução industrial e levada ao extremo pelo taylorismo) e são alimentadas “pelo papel e pela difusão do conhecimento que obedece a uma racionalidade social cooperativa que escapa da visão restritiva do capital humano” .
Segue-se daí que o tempo de trabalho certificado não pode ser considerado como o único tempo produtivo, com o efeito de que surge um problema da unidade de medida do valor. A teoria tradicional do valor do trabalho deve ser revista em relação a uma nova teoria do valor, em que o conceito de trabalho é cada vez mais caracterizado por “conhecimento”, “reprodução social” e é permeado pela vida humana e pelo tempo de vida. Podemos chamar essa passagem como a transição a uma teoria do valor-vida, em que o capital fixo é o ser humano “em cujo cérebro reside o conhecimento acumulado pela sociedade” .
Quando a vida se torna força de trabalho, o tempo de trabalho não é medido em unidades-padrão (horas, dias). A jornada de trabalho não tem limites, senão a natural. Estamos na presença de subsunção formal e extração da mais-valia absoluta. Quando a vida se torna força de trabalho, porque o cérebro se torna máquina, ou “capital fixo e capital variável ao mesmo tempo”, a intensificação do desempenho laboral alcança o seu máximo: assim, estamos na presença de subsunção real e extração da mais-valia relativa.
IHU On-Line – Marx pensou na categoria de “general intellect” como a máquina, que seria a materialização do progresso científico. Em entrevista que o senhor nos concedeu em 2010 , diz que atualmente essa categoria é mais compreendida como a bios humana, onde o “corpo humano se tornou capital maquínico”. Gostaria que detalhasse essa perspectiva, pontuando como se dá essa transformação do conceito.
Andrea Fumagalli – Já se escreveu muito sobre o General Intellect. O debate, pelo menos em seu início, se deteve, utilizando as categorias dos Grundrisse, sobre o tema da relação entre trabalho vivo e trabalho morto. Acredito que hoje tal debate está superado pelo processo em curso de hibridação entre humano e maquínico, ou seja, entre trabalho vivo e trabalho morto. Somos testemunhas do devir humano da máquina e do devir maquínico do humano. Por um lado, o corpo vivo humano se torna cada vez mais manipulável por elementos artificiais. Não se trata mais de matéria ou fibras artificiais, como aquela produzida e realizada no século XX, após a descoberta da tabela periódica dos elementos de Mendeleev .
Com a decodificação do genoma, agora o homem é capaz de criar matéria viva artificial, abrindo as portas, assim, a um novo paradigma biotecnológico, do qual a medicina, a farmacêutica, a biogenética, as neurociências e as nanotecnologias são a coluna vertebral. Os setores da prevenção e dos cuidados de saúde (a manutenção do corpo e o seu aperfeiçoamento) estão hoje no centro do processo de valorização (e mercantilização) capitalista da vida. São inúmeros os exemplos a esse respeito, desde a experimentação com células-tronco até a criação artificial de embriões humanos, com consequências que podem assumir imaginários distópicos. De fato, o ser humano continua perseguindo o sonho de se tornar imortal e, portanto, de elevar-se a Deus!
Ao mesmo tempo, as novas tecnologias na manipulação, agregação e cálculo dos dados permitem o desenvolvimento de algoritmos mecânicos capazes de acumular, de maneira autônoma, conhecimentos e aprendizagem: a Inteligência Artificial e as machine-learning representam hoje a fronteira do devir humano da máquina. Os setores dos big data, capazes de captar, coletar, selecionar enormes quantidades de dados da vida cotidiana dos indivíduos, estão no centro do novo paradigma biotecnológico.
IHU On-Line – A partir do marxismo, como podemos conceber saídas para a redução de empregos no contexto da revolução tecnológica?
Andrea Fumagalli – Pessoalmente, acredito que estamos diante do surgimento de um novo paradigma tecnológico, que se articula em torno das tecnologias da vida e da manipulação e cálculo de quantidades enormes de dados. Os dois aspectos são sinérgicos entre si. O salto tecnológico que se prospecta, de acordo com a teoria das ondas longas de 50 anos de Kondratiev , certamente terá efeitos ocupacionais. Não é uma novidade. Em um sistema de produção capitalista, a inovação tecnológica sempre está voltada a reduzir o peso do trabalho vivo e a diminuir seu valor para permitir uma maior extração de mais-valia. A questão não é se a possível nova onda tecnológica reduzirá a ocupação nos atuais setores da economia. Isso é certo. A verdadeira questão é se tal onda tecnológica será capaz de promover mecanismos de compensação à perda dos postos de trabalho, identificando novas alternativas de produção e de consumo.
A compensação à desocupação tecnológica geralmente ocorria em médio e longo prazo, graças ao impulso ao crescimento econômico (arrastado pelos setores com inovações de produto), induzido pelo incremento de produtividade causado pelas inovações técnicas. O taylorismo, a partir desse ponto de vista, é exemplificativo. O desenvolvimento dos setores dos bens duráveis no pós-guerra, embora na presença de um forte incremento de produtividade, permitiu um aumento de ocupação graças ao forte crescimento desses mesmos setores.
Mas isso não basta. Os mecanismos de compensação à desocupação tecnológica também devem ser acompanhados por políticas econômicas específicas. No caso do taylorismo, a compensação foi possível graças à redução do horário de trabalho e ao aumento salarial que manteve elevada a taxa de crescimento da demanda (fordismo e keynesianismo).
Com o advento do paradigma das TICs (tecnologias da informação e comunicação), a hemorragia dos postos de trabalho nos setores manufatureiros após a maciça introdução das tecnologias digitais foi compensada pelo incremento dos ocupados nos serviços às empresas, após os processos de externalização e descentralização da grande fábrica. Paralelamente, a globalização econômica (desenvolvimento da demanda externa, principalmente de bens intermediários) e o papel crescente dos mercados financeiros permitiram, embora em menor grau, um crescimento da demanda agregada, mesmo na presença de salários estagnados. O multiplicador financeiro da governança neoliberal, assim, substituiu parcialmente o multiplicador keynesiano do fordismo, com pesados efeitos distorsivos e de desigualdade na distribuição da renda.
Na presença do novo paradigma biotecnológico, qual poderia ser o novo mecanismo compensatório? Se tal paradigma vier a incidir pesadamente na ocupação terciária, o risco é que nenhum fator compensatório de mercado poderá entrar em ação, a menos que novos setores ligados à tecnologia da vida sejam desenvolvidos. Portanto, torna-se necessária uma intervenção de política econômica. A partir desse ponto de vista, a proposta de uma renda básica e a redução do horário de trabalho (onde o horário de trabalho é mensurável) tornam-se opções cada vez mais inevitáveis.
IHU On-Line – Como o senhor avalia o papel do Estado na promoção do desenvolvimento tecnológico, mas assegurando que isso não vá se reverter em perda de postos de trabalho?
Andrea Fumagalli – No capitalismo biocognitivo, o papel do Estado é ambivalente. Por um lado, nas fases de crescimento, ele é cada vez mais interno a uma lógica neoliberal (desmantelamento dos serviços sociais, privatizações etc.) capaz de favorecer o biopoder das oligarquias financeiras. Isso ocorre de modo diferente de acordo com os territórios e a divisão espacial do trabalho e da produção (por exemplo, os dispositivos entre a Europa e o Brasil são diferentes), mas sempre em função dos interesses das grandes corporações internacionais, financeiras ou não.
Por outro lado, nas fases de crise (a crise já é um fator estrutural e necessário para a valorização capitalista contemporânea), ele intervém como emprestador de última instância, no plano mais geopolítico e geoeconômico. A globalização geoeconômica já alcançou todos os seus objetivos e o máximo da extensão. Portanto, é no plano geopolítico que podem nascer conflitualidade. As tendências protecionistas confirmam isso. Nesse contexto, o apoio à inovação tecnológica pode desempenhar um papel importante, ainda a ser decifrado totalmente. Estamos apenas no início.
IHU On-Line – Hoje, na era da informação e da hiperconectividade, falamos em trabalho imaterial, quando estamos trabalhando mesmo quando parecemos não estar. Em alguma medida, Marx anteviu essa categoria de trabalho do século XXI? Algo similar a isso aparece em suas reflexões? Como?
Andrea Fumagalli – Marx não podia prever a 160 anos da escrita de O Capital a evolução da dinâmica tecnológica. A ideia de que o conhecimento desempenharia um papel cada vez mais importante já demonstra uma capacidade intuitiva fora do comum. Uma intuição que Marx, único pensador do seu tempo, é capaz de conjugar graças a uma análise atenta e rigorosa da necessária metamorfose contínua da relação capital-trabalho, na passagem do sistema manufatureiro ao sistema fábrica, da subsunção formal para a subsunção real da grande empresa manchesteriana.
No afresco do General Intellect, Marx não podia captar especificamente as formas de prestação do trabalho vivo cognitivo. Não gosto de falar de “trabalho imaterial”, porque, seja qual for a forma, o trabalho é sempre “material”. Prefiro falar de trabalho “cognitivo-relacional”.
Na atual dinâmica da vida transformada em trabalho e, portanto, em valor, o valor tem origem de modo poliédrico e variado. Estamos diante de uma composição técnica diferenciada do trabalho. De fato, o capitalismo biocognitivo se baseia em uma múltipla e variável modalidade de transformação em valor da subjetividade laboral – poderíamos dizer da vida. As diferenças criam valor. E são diferenças que permeiam as experiências subjetivas dos indivíduos, até prescindir do gênero, da etnia ou da religião, a ponto de serem elas mesmas falsos valores de troca. Não importa quem você é, homem, mulher, transgênero, LGBT ou o que quer que seja: todos/as são funcionais à valorização. E tal valorização tem a fonte primigênia na vida cotidiana. Um fato que vai bem além da intuição de Marx do General Intellect. Um bom exemplo a esse respeito é a criação do “valor de rede” por parte da indústria dos Big Data.
Tal indústria cria valor com base em um processo de produção cuja “matéria-prima” é constituída pela vida dos indivíduos. Tal “matéria-prima” é fornecida, em boa parte, gratuitamente, pois está voltada à produção de valor de uso.
Do trabalho concreto ao abstrato
O “segredo” da acumulação está na transformação do valor de uso em valor de troca. Ou, em outras palavras, a transformação do trabalho concreto em trabalho abstrato. Segundo Marx, o trabalho concreto, qualitativamente definido, volta-se a produzir valor de uso; o trabalho abstrato, em vez disso, é pura extrinsecação da força de trabalho humana, que prescinde dos aspectos qualitativos e das determinações específicas referidas à utilidade dos trabalhos individuais e cuja quantidade determina o valor criado. No sistema capitalista de produção, o trabalho abstrato é o trabalho socialmente necessário para produzir uma mercadoria que se realiza no mercado final, ou seja, valor de troca, com base na tecnologia disponível.
Na indústria dos big data, o trabalho abstrato é constituído pela organização e pela integração dos dados. Tal atividade pressupõe uma relação salarial com os empregados contratados para esse fim. A matéria-prima, em vez disso, é trabalho concreto, e não matéria em sentido estrito: são os dados brutos da vida cotidiana, dos quais se extrai valor. Por isso, falamos de “valor-dado”, um valor que se soma ao valor-trabalho necessário, para que tal valor-dado, que aparece inicialmente como valor de uso, possa se transformar em valor de troca.
Na valorização dos big data, o processo de subsunção se divide, portanto, em duas partes e muda de aparência. Na primeira fase, implementa-se um processo de acumulação originária como extensão da base produtiva até englobar o tempo de vida, que, no entanto, não é assalariado, ou seja, remunerado: na maior parte dos casos, é participação passiva não subjetivada. A esse respeito, portanto, não podemos falar de uma verdadeira subsunção formal. Na segunda fase, sucede-se a utilização de força de trabalho organizada (e assalariada), que procede à atividade de processing, de acordo com os cânones mais tradicionais da subsunção real. Por isso, podemos concluir que o processo de valorização dos big data é um ótimo exemplo de subsunção vital do homem ao capital.■
Assista a conferência Bioeconomia e capitalismo cognitivo, proferida por Andrea Fumagalli, durante o V Colóquio Latino-Americano De Biopolítica III Colóquio Internacional De Biopolítica e Educação XVII Simpósio Internacional IHU, realizado em 2016.
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'O General Intellect está se transformando em General Life!' A potência de uma economia para além dos números. Entrevista especial com Andrea Fumagalli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU