19 Julho 2009
O economista Carlo Vercellone não crê que a crise atual possa desembocar num novo New Deal, capaz de reconciliar o capitalismo cognitivo e a economia fundada no conhecimento em torno de um novo compromisso capital-trabalho
Na opinião do economista italiano, residente na França, Carlo Vercellone, “pode-se afirmar que a própria noção de capital imaterial é um sintoma da crise da categoria de capital constante que se afirmou com o capitalismo industrial, em que o capital constante se apresentava como trabalho morto, cristalizado nas máquinas, impondo ao trabalho vivo sua dominação”. Na entrevista que concedeu à IHU On-Line por e-mail, ele explica que “a força de trabalho, ou a intelectualidade difusa, não podem ser consideradas, por definição, como um ativo negociável de uma empresa (contrariamente a uma máquina ou a uma patente, exceto se a força de trabalho fosse reduzida à escravidão). A valoração do capital intelectual e, portanto do trabalho, não é mais a expressão completamente subjetiva da antecipação dos lucros futuros efetuada pelos movimentos financeiros que, dessa maneira, se apropriam de uma renda. Mas este fato contribui também para explicar por que a sucessão de graves crises financeiras e econômicas, como a atual que assistimos, não foi simplesmente o produto da má regulação das finanças”. Ele critica “a tese dominante, segundo a qual a crise atual seria de origem financeira que só teria afetado, num segundo tempo, a economia dita real”.
Mestre de conferências na Universidade de Paris I Pantheón-Sorbonne, Carlo Vercellone é membro da Unidade de Pesquisas Matisse-Isys. Especialista da história econômica da Itália, é o organizador da obra coletiva Sommes-nous sortis du capitalisme industriel? (Paris: La Dispute, 2003). Vercellone é membro do Comitê de Redação da revista Multitudes e autor de Accumulation primitive du capital (1861-1980), industrialisation et rapport salarial: une application au cas italien (Paris: L`Harmattan, 1999).
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Com a crise atual, pode-se considerar que as finanças são uma unidade de medida do trabalho e do capital?
Carlo Vercellone - Esta questão me permite esclarecer uma divergência com outras concepções do capitalismo cognitivo, segundo as quais as finanças seriam um mecanismo essencial de regulação das externalidades e da crise de medida do trabalho e do capital. Melhor ainda, segundo alguns autores, as finanças se tornariam uma esfera diretamente produtiva na medida em que o valor emergiria da própria esfera da circulação monetária. Minha posição em relação a esse tipo de interpretação foi sempre muito crítica e contribui para explicar as razões pelas quais eu não creio que a crise atual possa desembocar num novo New Deal, capaz de reconciliar o capitalismo cognitivo e a economia fundada no conhecimento em torno de um novo compromisso capital-trabalho.
Eu me explico. O capitalismo cognitivo vai de par a par com uma crise das categorias fundamentais da economia política: o trabalho, o capital, o valor (voltarei mais tarde sobre esta categoria). No que concerne ao trabalho, o crescimento da sua dimensão imaterial e cognitiva marca, sem dúvida, uma crise de sua medida. O trabalho cognitivo, com efeito, se apresenta, por essência, como a combinação complexa de um trabalho intelectual de reflexão, de partilha e de elaboração dos saberes, que se efetua tanto em quantidade como no quadro do trabalho imediato de produção. Nesse quadro, o trabalho mensurado com o tempo passado e certificado na empresa, frequentemente não é mais do que uma fração do tempo social efetivo de trabalho. Esta crise de medida – e este ponto é essencial – não afeta, portanto, em nada, a meu ver, a tese marxista, segundo a qual o trabalho continua sendo a única fonte do valor e da mais-valia. A crise de medida do trabalho está, aliás, estreitamente associada àquela da categoria de capital que, como se sabe, é mais identificada com a noção de capital imaterial ou de capital humano.
Ora, esta identificação corresponde, a meu ver, a um verdadeiro oximoro. Por que um oximoro?
Porque a significação primeira do que se chama capital imaterial corresponde realmente, no essencial, às qualidades intelectuais e criadoras incorporadas na força de trabalho. Ele expressa, então, para retomar uma expressão de Tronti, a maneira pela qual o “trabalho vivo como não capital” desempenha agora um papel hegemônico em relação à ciência e aos saberes codificados, incorporados no capital fixo e na organização empresarial das firmas.
A inteligência difusa ou coletiva
Nesse sentido, pode-se afirmar que a própria noção de capital imaterial é um sintoma da crise da categoria de capital constante que se afirmou com o capitalismo industrial, em que o capital constante se apresentava como trabalho morto, cristalizado nas máquinas, impondo ao trabalho vivo sua dominação. Malgrado a torção introduzida por termos, como capital intelectual, capital intangível ou ainda capital humano, este capital é, pois, na realidade, o que nós chamamos a intelectualidade difusa ou ainda a inteligência coletiva. Este capital escapa, portanto, a toda medida objetiva. Compreende-se, desde logo, uma das razões que, na origem da formidável ascensão do goodwill, esteve no cerne do rápido desenvolvimento das bolhas financeiras, e depois de sua explosão na crise. Pode-se, portanto, considerar o goodwill como uma medida do trabalho e do capital? A resposta é evidentemente não, sem por isso precisar atingir a crise atual. O valor desse capital na bolsa é fundamentalmente fictício, na medida em que não corresponde sequer a uma duplicata do capital real. Com efeito, a força de trabalho, ou a intelectualidade difusa, não podem ser consideradas, por definição, como um ativo negociável de uma empresa (contrariamente a uma máquina ou a uma patente, exceto se a força de trabalho fosse reduzida à escravidão). A valoração do capital intelectual e, portanto, do trabalho não pode, pois, ser senão a expressão completamente subjetiva da antecipação dos lucros futuros efetuada pelos movimentos financeiros que, dessa maneira, se apropriam de uma renda. Isso contribui para explicar por que as finanças desempenham um papel fechado no capitalismo cognitivo. Mas este fato contribui também para explicar por que a sucessão de crises financeiras e econômicas graves, à qual assistimos, não foi simplesmente o produto da má regulação das finanças. Ao contrário, como o mostrou com força Gorz, esta dinâmica exprime “muito simplesmente a dificuldade intrínseca que faz funcionar o capital intangível como um capital que faz funcionar o capitalismo dito cognitivo como um capitalismo”. É o que nos mostra a análise da origem, do sentido e dos riscos da crise econômica e financeira atual.
IHU On-Line - O capitalismo está em crise, ou nós estamos simplesmente vivendo uma crise financeira? O que caracteriza este momento? Será que ele também marca a crise da teoria neoliberal?
Carlo Vercellone - Sou resolutamente critico em face da tese dominante, segundo a qual a crise atual seria uma crise de origem financeira que só teria afetado num segundo tempo a economia dita real. Esta tese encontra, aliás, duas formulações principais, cujos limites analíticos convêm sublinhar, bem como suas implicações políticas.
A primeira formulação corresponde à concepção dominante compartilhada pela maioria dos economistas mainstream. Estes, após terem defendido durante anos as virtudes do rigor orçamentário, se converteram rapidamente em fervorosos defensores de políticas keynesianas de retomada e de salvamento do sistema financeiro. Segundo esta primeira formulação, a crise atual corresponderia a uma espécie de acidente de percurso no desenvolvimento das finanças liberalizadas e mundializadas, cujo balanço permaneceria fundamentalmente positivo. A crise seria essencialmente o efeito de uma série de disfunções técnicas e de riscos morais das finanças, que teria desestabilizado a regulação neoliberal de um sistema econômico intrinsecamente sadio. A terapia anticrise consistiria, portanto, em intervenções excepcionais e transitórias de retomada, associadas a medidas de moralização e de reregulamentação parcial das finanças na linha dos acordos de Basiléia-II. De nenhum modo, seria questão de recolocar em causa os pilares da regulação neoliberal, notadamente por aquilo que se refere à relação salarial e ao desmantelamento das instituições do Welfare-State.
Um “socialismo neoliberal” do capital
Temos aí o que se pode chamar um keynesianismo “bastardo”, ou melhor, um “socialismo neoliberal” do capital, que traduz bem a orientação das políticas econômicas adotadas pela maioria dos governos, notadamente na Europa. A esta concepção se adapta bem o célebre adágio “é preciso que tudo mude, a fim de que nada mude”. A razão desta estratégia não depende somente de uma adesão ideológica obstinada ao neoliberalismo. Ela exprime, a meu ver, de maneira mais fundamental, a dificuldade de um processo de autorreforma do capital, capaz de implantar um novo New Deal, e isso por razões em grande parte estruturais referentes à reprodução do capitalismo cognitivo e à sua incapacidade de reativar uma lógica de crescimento, capaz de integrar, pelo menos em parte, os interesses das classes subalternas. Voltaremos a isso. Como prova, basta pensar nas recentes declarações do principal economista do FMI, quando ele apela a refletir hoje na “implantação estrutural de reformas para diminuir os déficits orçamentários no receio de que os mercados (financeiros) não enlouqueçam ante a decolagem do endividamento público”, esquecendo que este último justamente se desenvolveu para voar ao seu socorro.
O conflito entre a vocação rentável do capitalismo financeiro e o “bom” capitalismo produtivo
A segunda formulação desta tese inspira-se numa concepção autenticamente keynesiana, ou marxo-keynesiana. Para esta análise, o sentido e o cacife da crise atual se encontraria no conflito entre a vocação rentável do capitalismo financeiro e o “bom” capitalismo produtivo, portador, este, de uma lógica de acumulação favorável ao crescimento da produção e do emprego. Desta interpretação resulta, então, a proposição de uma espécie de compromisso “neorricardiano” entre salário e capital produtivo contra o poder das finanças. O compromisso deveria permitir restabelecer a hegemonia do capitalismo empresarial da época fordista e uma repartição menos inigualitária da renda. Nessa base, nossas economias poderiam reencontrar - assim nos dizem - as condições de um crescimento próximo do pleno emprego, e tudo isso num contexto de substancial continuidade com as modalidades fordistas de organização do trabalho e de regulação da relação salarial.
Esta grade de leitura nos parece errônea por três razões estreitamente interligadas:
1ª) a denúncia do papel perverso das finanças é desconectado de uma análise das profundas transformações da organização social da produção e da demanda social. Estas não estão mais fundadas na produção de bens padronizados, mas sobre o lugar cada vez mais central do conhecimento e do imaterial, e notadamente do que eu chamo de produções do homem para o homem (saúde, educação, cuidados, pesquisa). É o esquecimento dessas dimensões essenciais que pode nutrir a ideia errônea, segundo a qual a saída da crise se encontraria num relançamento keynesiano do modelo fordista do pleno emprego e da produção/consumo de massa.
2ª) ela nega a importância das mutações que, neste quadro, conduziram ao esgotamento do papel hegemônico da lógica do capitalismo industrial e a uma vocação especulativa e rentável mais pronunciada do próprio capital produtivo. Nesta evolução, a financeirização do capital produtivo não é, aliás, senão uma das expressões de uma verdadeira multiplicação das formas rentáveis de valorização do capital (patentes, marcas, etc.).
3ª) ela faz da crise atual o simples resultado da repetição, desde os anos 1980, de crises financeiras graves, obedecendo a uma lógica cíclica e repetitiva, endógena às próprias finanças e à sua tendência de se autonomizar e a desestruturar do exterior “a economia dita real”.
A compenetração entre capital financeiro e capital produtivo
Certamente, não se trata aqui de negar a autonomia relativa e o poder sistêmico de que dispõem as finanças. Um poder que se manifesta tanto durante as fases de crescimento, quando ele se apropria de uma parte exorbitante dos lucros, como nas fases que seguem à explosão das bolhas especulativas. Neste quadro, a ameaça de transformar uma crise local numa crise global permite, com efeito, às finanças tomar como refém o conjunto das instituições, obtendo dos bancos centrais e dos governos concessões formidáveis e quase sem condições. No entanto, insistir nas finanças como se se tratasse de um poder autônomo quase absoluto, tende a fazer esquecer a compenetração entre capital financeiro e capital produtivo e as outras causas socioeconômicas que estão na origem da crise sistêmica do capitalismo contemporâneo.
Este tipo de concepção não chega, por exemplo, a ver como a dinâmica que conduziu da crise da new economy em 2000 à crise dos subprimes não se encontra na simples repetição, de maneira idêntica, de ciclos especulativos ligados à lógica autônoma das finanças. Apesar de certos traços comuns, uma análise atenta da passagem histórica da crise da new economy à crise dos subprimes permite mostrar o aprofundamento de certo número de contradições maiores que vão afetar, na economia dita real, o desenvolvimento do capitalismo cognitivo. Contradições essas que dizem respeito tanto à regulação da relação capital-trabalho, como à questão dos mercados e das finalidades sociais da produção.
É preciso recordar, nesse contexto, como o aumento nos preços das ações na bolsa Nasdaq tinha sido saudado como o sinal anunciador do milagre da new economy. Diante da crise dos mercados e da competitividade de setores da velha economia material fordista, a economia americana, graças à internet e às novas tecnologias da informação e da comunicação (TIC), era vista como tendo encontrado o caminho de um novo crescimento potencialmente inesgotável e capaz de lhe restituir uma posição hegemônica na economia mundial. Ora, a explosão da bolha da new economy e dos valores da bolsa Nasdaq, em março de 2000, veio justamente mostrar o fim dos mitos da new economy. Por quê? Porque o financiamento dos starts-up e o enorme esforço de investimento nos TIC, para criar novos sites comerciais, logísticas proprietárias, etc., se traduziu por uma formidável crise de superprodução e de superinvestimento, sem chegar a criar mercados comerciais que permitissem valorizá-los.
Esta crise tem uma importância crucial na história do capitalismo cognitivo
Esta crise tem uma importância crucial na história do capitalismo cognitivo.
A crise da bolha da new economy marca, com efeito, limites estruturais que o capital encontra em sua estratégia lucrativa, visando a submeter a economia do imaterial e da internet à lógica comercial e do lucro. Na web, os princípios da gratuidade e da auto-organização em rede continuam predominando, e isso a despeito das tentativas de instaurar barreiras comerciais ao acesso e de reforçar os direitos de propriedade intelectual. Ela mostra, ao mesmo tempo, a dificuldade de o capital afirmar sua hegemonia na organização social da produção. Em particular, a ascensão das redes de troca e de produção não comercial dá prova de uma eficácia econômica superior à do setor privado. O modelo do software livre e de Linux se afirma como um princípio de coordenação e de produção de saberes alternativo tanto à empresa como ao mercado, desestabilizando o monopólio da Microsoft e a estratégia capitalista de privatização do conhecimento e dos bens informacionais.
Nesse contexto de impasse da new economy, o governo americano e o FED (Federal Reserve – o corresponde ao Banco Central americano já se encontram confrontados, em 2000, ante o risco de uma depressão maior. De onde a tentativa de reativação da economia por uma política de taxas de lucro muito baixas que, para manter o consumo, desconectava a despesa e a renda através da expansão do crédito, notadamente o hipotecário. Era possível fazer outra opção, por exemplo, a de uma reforma da política de rendas, permitindo um crescimento dos salários e uma redução das formidáveis desigualdades sociais que se cruzaram desde os anos 1980.
Mas por que esta hipótese – embora visada – foi então rapidamente descartada? Uma das principais razões que continua atual é, a nosso ver, a seguinte: a precarização constitui, no capitalismo cognitivo, uma condição essencial para assegurar o controle de uma força de trabalho que é cada vez mais autônoma no plano da organização da produção. A opção de favorecer o desenvolvimento do endividamento massivo dos negócios parece, em troca, permitir ao capital combinar dois objetivos do ponto de vista da regulação da relação salarial.
O primeiro é o de estimular a demanda pelo crédito, assegurando ao capital financeiro encontrar, pelo menos no começo, investimentos muito rentáveis e novas formas de retirada antecipada da mais-valia.; o segundo consiste na maneira pela qual o mito neoliberal da “sociedade de proprietários”, associada ao crescimento exponencial da dívida privada das transações individuais ou familiares permite forjar, junto aos trabalhadores, uma subjetividade dependente e submetida ao capital. É assim que à bolha da new economy sucede, a partir de 2002, a formação da nova bolha especulativa, dita dos subprimes.
A construção civil e a economia do imaterial
O crescimento americano é puxado, durante este período, pela ação conjunta do setor mais tradicional da economia material (a construção civil) e do setor, sob muitos aspectos o mais parasitário, da economia do imaterial. Eu me refiro ao desenvolvimento dos serviços financeiros que se auto-alimentam graças à titulação e a toda uma parafernália de inovações financeiras que parecem permitir uma diluição infinita dos riscos.
No total, a financeirização e, mais em geral, o desenvolvimento da localização da renda são, em grande parte, a consequência e não somente a causa das contradições inerentes à lógica de regulação do capitalismo cognitivo. Este ponto é também essencial para compreender o sentido e as causas da abertura da crise atual, que seria errôneo considerar essencialmente como uma crise de origem financeira. Numerosos fatores econômicos, sociais e ecológicos “reais” de uma crise global eram visíveis bem antes da crise financeira. Eles permitem explicar o estouro e, ao mesmo tempo, a dificuldade de pensar a possibilidade de uma saída da crise por cima, sem uma ação que vise a reduzir a um lugar secundário o papel do lucro e das relações comerciais.
Lembro apenas alguns dos fatores mais importantes.
A crise ecológica, da qual uma de suas manifestações se manifesta, aliás, entre 2006-2007, no aumento do preço da gasolina e dos alimentos que desempenham um papel central no consumo dos bens domésticos, notadamente daqueles mais pobres e mais endividados. Esta evolução, associada, a partir de 2005, à alta das taxas de juros, condena, de fato, uma grande parte dos negócios a uma situação de insolvabilidade e contribui para desencadear a crise dos subprimes e o desmoronamento do setor imobiliário. Entretanto, mais fundamentalmente, a crise ecológica marca, na escala planetária, os limites estruturais do modelo liberal produtivista. Desse ponto de vista, uma política de saída da crise não pode, pois, de nenhuma forma, basear-se exclusivamente num plano de retomada do consumo privado e dos negócios privados. Ela requer, antes, uma verdadeira socialização do investimento nas atividades que permitam repensar o urbanismo, a agricultura, a promoção da economia de energia e que, por natureza, escapam, em grande parte, à lógica comercial e mercadológica.
A possibilidade de uma política de retomada da economia fundada na lógica mercadológica se encontra, de maneira mais geral, presa à armadilha de outros escolhos. De uma parte, como vimos, a new economy é incapaz de tomar o lugar da velha economia fordista. A explosão da bolha especulativa da new economy já mostrou a impossibilidade, da parte do capital, de integrar a economia do imaterial e do conhecimento numa dinâmica de crescimento capaz de assegurar, numa nova base, a expansão das saídas mercadológicas.
De outra parte, os setores saídos da velha economia fordista se encontram numa fase de declínio estrutural, prensada entre a situação dos mercados e a concorrência dos países emergentes, como o mostra hoje a crise dramática da indústria automobilística encarnada pela falência do símbolo da indústria americana, a General Motors. Sua retomada se chocaria, aliás, com coerções ecológicas incontornáveis.
Ora, os únicos atores em que as necessidades e a demanda social estão em contínua expansão correspondem ao que se chamam produções do homem para o homem (saúde, educação, pesquisa, cuidados com as pessoas), asseguradas tradicionalmente na Europa, pelos serviços coletivos do Welfare-State . Este elemento contribui para explicar a pressão extraordinária exercida pelo capital para privatizar ou, em todo o caso, submeter à lógica mercadológica esses serviços coletivos, e isso muito mais por seu papel estratégico no crescimento da demanda social do que pelo controle biopolítico da população. No entanto, esse tipo de atividade não pode ser submetido à racionalidade econômica do lucro e à lógica mercadológica a não ser ao preço de um esbanjamento de recursos e desigualdades sociais profundas que, por acréscimo, correria o risco de desestruturar as forças criadoras de base de uma economia fundada no papel motor do saber e de sua difusão.
Três argumentos fundamentam esta tese:
O primeiro está ligado ao caráter intrinsecamente cognitivo, afetivo e comunicativo dessas atividades, nas quais o trabalho não consiste em agir sobre a matéria inanimada, mas sobre o próprio homem, numa relação de co-produção de serviços.
O segundo argumento se refere à impossibilidade de elevar a produtividade e a rentabilidade dessas atividades, mensurando-as por meio de critérios quantitativos próprios à administração das empresas, a não ser em detrimento da qualidade que caracteriza a eficácia de uma relação de serviços em setores, como a saúde, o ensino e a transmissão/produção de conhecimentos.
O terceiro está ligado às distorções profundas que a aplicação do princípio da demanda solvável introduziria na alocação dos recursos e no direito ao acesso a esses bens comuns. Fundamentalmente, a produção do comum se funde, efetivamente, com a gratuidade e com o livre acesso. O financiamento das produções do homem para o homem não pode, pois, ser baseado no princípio da demanda privada solvável, mas deve repousar sobre o preço coletivo e político representado pelo lado fiscal, a cotização social ou por outras formas de mutualismo real dos recursos.
IHU On-Line - Quais são as principais diferenças entre a crise atual e a crise de 1929?
Carlo Vercellone - Todos esses elementos contribuem também para explicar certas diferenças maiores entre o sentido e os cacifes da grande depressão dos anos 1930 e a crise atual. A crise de 1929 se apresenta a posteriori como uma crise de crescimento da lógica do capitalismo industrial, fundada sobre a racionalização tayloriana da produção e a integração da reprodução da força de trabalho à lógica mercadológica. Ela resulta, no essencial, da defasagem entre o desenvolvimento dos princípios da produção de massa e um modo de regulação concorrencial da relação salarial que impede a rápida expansão do consumo de massa. O cacife principal de uma saída da crise encontrava-se, então, na criação de instituições (as Convenções Coletivas, o Estado-providência, etc.) que permitissem uma progressão dos salários próxima àquela da produtividade. Dessa maneira, podia realizar-se o sonho de Henry Ford, aquele de uma classe operária que se torna o principal comprador dos bens de consumo duráveis que ela produz. Consistindo a racionalidade econômica do capital industrial em produzir sempre mais mercadorias com menos tempo. Então, com custos unitários e de preços decrescentes, ela poderá encontrar uma força progressiva, integrando estreitamente o assalariado na dinâmica da acumulação do capital, satisfazendo dessa maneira uma massa crescente de necessidades, pouco importando se verdadeiras ou supérfluas. Esta força progressiva do capital, fundada sobre sua capacidade de integrar a classe operária no interior de sua lógica de desenvolvimento, foi a base do que a escola da regulação chamou de compromisso fordista: os sindicatos aceitam a racionalização tayloriana e o monopólio do patronato sobre a organização do trabalho. Em contrapartida, os trabalhadores obtêm uma progressão dos salários que lhes permite o acesso ao consumo de massa.
Esta dialética capital-trabalho é, no entanto, rompida no capitalismo cognitivo. A crise atual não é uma crise de crescimento do capitalismo cognitivo. Ela exprime, de maneira mais fundamental, o caráter inconciliável do capitalismo cognitivo com as condições sociais necessárias ao desenvolvimento de uma economia fundada no conhecimento, bem como à preservação do equilíbrio ecológico do planeta. Para citar uma passagem incisiva e profética de André Gorz em O Imaterial (2003), ela exprime a maneira com que “o capitalismo... chegou em seu desenvolvimento das forças produtivas a uma fronteira, passada a qual ele não pode haurir plenamente uma parte de suas potencialidades a não ser passando para uma outra economia.” Esta contradição exprime em termos marxistas a crise da racionalidade econômica do capital encarnada pela lei do valor, pensada como a relação social que faz da lógica da mercadoria o critério chave e progressivo da produção de valores de uso e de satisfação das necessidades.
Finalmente, para retomar uma formulação de Gramsci, a crise atual é “uma grande crise, um momento trágico, no qual o antigo morre, o novo não chega a ver a luz do dia, e nesse claro-obscuro surgem os monstros”. Mas, se nada será como antes, é preciso admitir a dificuldade de definir com precisão os cenários de uma eventual saída da crise. De qualquer maneira, é extremamente difícil compartilhar da hipótese, segundo a qual a crise atual poderia conduzir o capital a tomar consciência da necessidade de um novo New Deal, capaz de conciliar o capitalismo cognitivo e a economia fundada no conhecimento, encontrando uma solução viável aos problemas inerentes simultaneamente à desigualdade na repartição da renda, à insuficiência da demanda, à crise ecológica e à instabilidade das finanças. Mais precisamente, a possibilidade de um novo New Deal, de um novo compromisso capital-trabalho só se choca contra o muro representado pelo poder das finanças. Ela também tropeça em dois obstáculos maiores que traduzem, como vimos, a expansão da força progressiva do capital e a crise da lei do valor.
O primeiro está ligado à maneira com que um eventual reforço das garantias do Welfare State, reduzindo de maneira substancial a sujeição à relação salarial, comportaria para o capital um risco maior, o de desestabilizar profundamente os mecanismos de controle do trabalho cognitivo fundados em grande parte na precariedade. Poderia resultar no desenvolvimento de conflitos, confluindo não somente sobre o plano de repartição da renda, mas também, de maneira mais fundamental, sobre a própria definição da organização e das finalidades sociais da produção.
O segundo obstáculo depende da maneira como, pelo menos nos países desenvolvidos, a maior parte das necessidades que a produção é suscetível de satisfazer se encontra fora das atividades nas quais a racionalidade econômica do capital pôde desempenhar, no capitalismo industrial, um papel progressivo.
É por todas essas razões que o retorno pela força da intervenção do Estado, como regulador macroeconômico e salvador em último recurso dos desequilíbrios do capital, não nos parece ser o prelúdio de um novo New Deal. Esta evolução parece, antes, delinear os contornos de um “socialismo totalitário do capital”, posto a serviço da continuidade de políticas neoliberais de expropriação do comum e de expansão parasitária da esfera mercadológica. Nada é, no entanto, inelutável. Apesar da sua dinâmica devastadora e os riscos de implosão que ela comporta, a bifurcação histórica aberta pela crise atual se apresenta como um processo complexo, aberto e profundamente conflituoso, que pode dar lugar a evoluções que se processem em direções opostas.
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A crise e os contornos de um "socialismo totalitário do capital". Entrevista especial com Carlo Vercellone - Instituto Humanitas Unisinos - IHU