11 Março 2014
Na seara econômica, André Lara Resende é uma referência, entre outras razões, por ter participado da elaboração do Plano Real. Ainda assim, afastou-se do trabalho cotidiano de um economista. O neto do professor de gramática e memorialista Antônio Lara Resende e filho do jornalista e escritor Otto Lara Resende voltou-se às letras e à reflexão. Em seus artigos, defende um novo modelo de desenvolvimento, orientado ao bem-estar coletivo e sustentado pelo setor de serviços em áreas como educação e saúde.
A reportagem é de Alexa Salomão e Ricardo Grinbaum, publicada no jornal O Estado de S. Paulo, 09-03-2014.
"A partir de certo nível de renda, onde com certeza já nos encontramos, a qualidade de vida não está mais necessariamente associada ao consumo material", diz ele na entrevista que segue. Suas convicções o aproximaram da pré-candidata à Presidência Marina Silva, em sua avaliação a pessoa que na atual cena política tem a visão de mundo para implantar o novo modelo de crescimento.
Eis a entrevista.
O governo de FHC ficou conhecido como o da estabilidade, o do Lula, pela distribuição de renda. Qual seria a cara do governo Dilma e qual deveria ser em caso de reeleição?
Nem todo governo deixa necessariamente a sua marca. O governo Dilma não está à altura dos dois governos anteriores que, por mais diferente que tenham sido, tinham carisma e personalidade definida. O governo Dilma tinha a pretensão da eficiência executiva para dar um novo salto desenvolvimentista. Fracassou porque tem uma visão anacrônica, tanto dos objetivos, como dos métodos para alcançá-los. Acredita que o desenvolvimento ainda dependa da industrialização, voltada para o mercado interno e liderada pela ação do Estado, como na metade do século passado.
Acredita também na gestão de comando e controle. Mas no mundo contemporâneo, o desenvolvimento é necessariamente via integração internacional, e a gestão de empreitadas, a cada dia mais complexa, só é possível através da delegação, inserida numa cultura baseada no exemplo e no carisma.
Muitos estudiosos dizem que o Brasil vive um processo de desindustrialização. Como o senhor vê a questão e o que deve ser feito em relação à produção industrial?
O processo de desenvolvimento econômico passa primeiro por uma fase de industrialização e urbanização, com uma correspondente redução do peso do setor primário na economia. Numa segunda fase, já com a industrialização consolidada e uma economia mais sofisticada, cresce o peso do serviços. A indústria pesada, de velha tecnologia, desloca-se para onde ainda há mão de obra barata no mundo. Para seguir crescendo, o país precisa renovar sua indústria, ser capaz de absorver e de produzir tecnologia de ponta. Não há como dar esse salto sem a combinação de um sistema educacional de alto nível e a integração comercial com o resto do mundo. Passa-se do protecionismo à indústria nascente, voltada para o mercado interno, ao estímulo à indústria de ponta, voltada para a exportação. É o que deveríamos fazer: integrar o país à economia mundial, absorver tecnologia de ponta, aumentar a produtividade e as exportações industrializadas, e simultaneamente, repensar a educação de base com objetivos de longo prazo.
Há economistas que dizem que o Brasil está preso numa armadilha de baixo crescimento. O senhor concorda com esse ponto de vista?
O país tem crescido bem menos do que se espera, é verdade. Alguns analistas chamaram de a Armadilha da Renda Média, o fato de que, depois de atingir um estágio intermediário de renda e desenvolvimento, muitos países parecem ter dificuldades de deslanchar e finalmente encostar nos países do primeiro mundo. Para sair da pobreza absoluta, crescer e atingir um mínimo de desenvolvimento, basta ser capaz de criar um excedente para ser investido. Pode não ser fácil para sociedades onde a renda e o consumo são extremamente baixos, mas a fórmula é conhecida: poupar e investir, aproveitando a tecnologia de domínio público, não necessariamente de ponta, desenvolvida nos países mais avançados, e incorporando a população marginalizada à força de trabalho. A partir de um certo ponto - e o Brasil já atingiu esse estágio - a questão se torna mais complicada.
Já não basta poupar e investir em capital fixo. Não há mais um excedente de mão de obra barata para ser incorporado ao setor dinâmico da economia. É preciso, então, aumentar o que os economistas chamam de produtividade - a capacidade de produzir mais com menos, de forma mais eficiente, e ganhar competitividade internacional. A absorção de tecnologia já não é tão automática, pois estamos mais perto da fronteira tecnológica. É preciso que a mão de obra, em todos os níveis, do mais elementar ao mais sofisticado, inclusive a da gestão das empresas e dos investimentos, esteja à altura.
A chave é a educação. Falar em educação se tornou um clichê, mas como todo clichê é uma verdade que, de tanto repetida sem convicção, perdeu a força. Há uma revolução em curso nos métodos de educação, com a universalização da informática e da internet, mas estamos na contramão. Em lugar de inovar, de fazer uma educação de base de qualidade, optamos por aumentar o número de pessoas com diploma de curso universitários comercializados, onde nada se aprende. Mais um exemplo da nossa insistência em dar mais importância à forma do que à substancia.
O Brasil deve ter um novo modelo de desenvolvimento? O que este modelo deve contemplar?
Acho que não apenas o Brasil, mas o mundo todo precisa rever seu modelo de crescimento. Já não faz mais sentido associar desenvolvimento exclusivamente ao crescimento e ao aumento do consumo material. A partir de certo nível de renda, onde com certeza já nos encontramos, a qualidade de vida não está mais necessariamente associada ao consumo material. O problema da grande desigualdade persiste, é claro, e é urgente ter uma resposta efetiva, mas se o crescimento material não o resolveu, até hoje, em parte alguma do mundo, é porque por si só não vai resolve-lo. Veja o exemplo do automóvel: a notícia de que as vendas de carro caíram sob o prisma do velho crescimento é negativa, mas para quem vive nos grandes centros urbanos, onde usar o automóvel está se tornando impossível, parece-me positiva. Anos atrás, menos produção de automóveis seria inequivocamente negativo. Hoje é, no mínimo, questionável. Temos dificuldade em rever velhos conceitos, mas quando as circunstâncias mudam, é preciso reavaliá-los. Tenho a impressão que o mundo está numa fase de transição. O velho modelo de crescimento consumista já não faz mais sentido, mas a alternativa ainda não está bem delineada. Posso estar sendo vítima da ilusão ufanista, mas tenho a impressão de que o Brasil, tanto pelo estágio de desenvolvimento em que se encontra, quanto pela alegria coletiva criativa, poderia estar muito bem posicionado para sair à frente do novo desenvolvimento. Um desenvolvimento mais baseado na educação, na saúde, no entretenimento, no esporte e na cultura, do que no consumo material. Por isso mesmo, se a melhora de vida vier a se frustrar, ainda que ou sobretudo porque, o consumo material continua a aumentar, podemos passar por ondas de protestos difusos e de revoltas que podem vir a se tornar incontroláveis.
O senhor defende um modelo baseado em menos consumo, mas como se compatibiliza isso com o desejo das pessoas de consumir e com a necessidade de reduzir a desigualdade? O senhor mesmo coloca que os protesto revelam uma ansiedade das pessoas em melhorar de vida...
Minha interpretação é diferente. Os protestos indicam que há busca por melhor qualidade de vida. À medida que a pobreza absoluta é superada, passa-se a desejar mais qualidade de vida, que não encontrada, leva à uma grande frustração. Apesar de se ter mais renda e poder consumir mais, a vida continua extremamente difícil, um verdadeiro inferno. O hospital público é um desastre, a escola pública não tem qualidade, faltam creches, não há segurança, o transporte público é de péssima qualidade. Apesar de ter renda para comprar um carro, leva-se até quatro horas para chegar ao trabalho, engarrafado no transito. Estas são as questões por trás dos protestos - e não necessariamente a demanda por mais consumo material. Essa frustração não é um problema exclusivamente brasileiro. Há no mundo uma vaga percepção de que a melhora da qualidade de vida não está mais necessariamente vinculada ao aumento do consumo material. Ao contrário, o aumento do consumo material - como no caso do automóvel nos grandes centros urbanos - tornou-se um detrator da qualidade de vida.
Durante muitas décadas houve uma alta correlação entre o crescimento do produto e da renda e o bem estar. Se o PIB crescia, embora a melhora fosse mal distribuída, todos melhoravam. Essa correlação já não é verdadeira, mas há uma grande resistência a rever conceitos arraigados. Ao criticar o aumento do consumo material, somos acusados de pretender negar o acesso dos mais pobres ao consumo. O argumento não procede - apesar do crescimento extraordinário do consumo material, a pobreza persiste e a desigualdade até se agravou nas últimas décadas, tanto nas economias emergentes quanto nos países avançados. A solução não é mais consumo. Estudos mostram que menos desigualdade, uma sociedade mais homogênea, é elemento fundamental para a qualidade de vida. Para os mais pobres, é evidente, mas também para os mais ricos a desigualdade é negativa. Viver numa sociedade, homogênea e equânime, onde há empatia com seus concidadãos, é melhor para todos.
As manifestações, então, mostram que as pessoas já percebem a diferença entre ter mais e viver melhor?
Me parece que sim, mas como a alternativa não está bem delineada, fica difícil afirmar. Acredito que nem mesmo os manifestantes saibam claramente o que desejam. Por isso os protestos são desfocados. Deseja-se mais qualidade de vida, mas o que é qualidade de vida? É sobretudo tempo com os amigos, tempo com a família, tranquilidade, ausência de estresse, inserção numa comunidade com a qual se tem empatia. Por isso a melhora do transporte público é a primeira medida para a melhora da qualidade de vida. Reduzir o tempo de deslocamento e o estresse do trânsito, aumentar o tempo com a família e os amigos, significa um ganho inequívoco de qualidade de vida. O automóvel ainda está no imaginário coletivo como símbolo de sucesso, mas é ilusório.
O uso do automóvel exige gastos públicos expressivos na infraestrutura urbana. É um subsídio ao uso do transporte individual, recursos públicos que poderiam ter melhor uso. Para abrir avenidas, viadutos e elevados as cidades foram desfiguradas. Ficou quase impossível se deslocar por qualquer outro meio que não o automóvel. Não é fácil mudar o modelo. Veja a resistência aos corredores de ônibus implantados pelo Haddad. Acho que ele está certo, mas a iniciativa provocou indignação. Como a alternativa não está claramente delineada, é importante dar exemplos concretos do que seria a cidade do futuro, depois do automóvel. A High Line de NY é um desses exemplos. Todas as cidades bem sucedidas do mundo são as que têm bons transportes públicos e estão criando alternativas para que se ande a pé, estímulos ao convívio. É o caso de Barcelona, Paris e NY.
Quais outras políticas públicas devem ser adotadas para mudar o modelo de desenvolvimento?
Não tenho a pretensão de fazer uma agenda detalhada, mas antes de tudo é preciso rever o conceito de desenvolvimento. O que se busca? Apenas vender mais, não importa o que? Vamos garantir que todos possam ter mais coisas inúteis, sem descriminar ninguém, ou vamos procurar o bem estar? A busca do bem estar exige revisão das políticas públicas. Rever os objetivos não significa que a renda deva parar de crescer, mas que haveria um mudança na composição do produto, um aumento do peso dos serviços - mais entretenimento, mais esporte, mais educação, mais saúde, mais musica. A demanda por serviços de saúde é infinita. São essas industrias que irão liderar o crescimento do futuro e não as indústrias baseadas no consumo material.
O senhor acha que o governo precisa ter metas a partir de 2015 para o superávit, para a dívida e para o gasto público?
Metas são importantes para o balizamento, tanto do governo, como do setor privado, mas mais importante do que ter metas quantitativas anunciadas, é o compromisso com elas. Creio que é pior ter metas, sem acreditar nelas, do que não tê-las. As três metas a que você se refere dizem respeito ao custo do Estado. O Estado no Brasil tem uma longa história de patrimonialismo, de confundir o seu interesse com o da sociedade. Só em alguns períodos excepcionais houve tentativas de adotar reformas modernizadoras. A tendência secular é de um crescimento burocrático patrimonialista. Tendência que foi claramente acentuada na última década. O Estado no Brasil de hoje é um criador de dificuldades de toda ordem, tanto para os indivíduos como para as empresas, um detrator da qualidade de vida e da produtividade. Toda crítica ao Estado tende a ser identificada com um liberalismo econômico radical e equivocado, segundo o qual o mercado tudo resolve, e assim é desqualificada. É um falso dilema. O Estado - assim como o mercado - é fundamental nas sociedades contemporâneas, mas é preciso ter um Estado inteligentemente organizado, eficiente, a serviço da sociedade, e não a serviço de seus próprios interesses, contra a população.
Qual deve ser a postura em relação ao câmbio?
No mundo contemporâneo, no que se pode chamar de período pós Bretton-Woods, consolidado nas últimas décadas, as taxas de câmbio são flutuantes. Não completamente livres, mas uma flutuação administrada, para evitar a alta volatilidade de curto prazo, que é perturbadora da atividade econômica. A taxa de câmbio não é, portanto, uma variável de controle direto das autoridades monetárias, mas consequência da política econômica como um todo. A valorização do câmbio, nos últimos anos, percebida como excessiva, é decorrência da combinação perversa da baixa produtividade da economia, da poupança interna insuficiente - ou seja, alto consumo público e privado - com uma política monetária obrigatoriamente apertada para manter a inflação sob controle. É preciso rever toda a política econômica para que o câmbio encontre um equilíbrio menos punitivo para a produção nacional. Ao contrário do que pode parecer, não é possível corrigir problemas da política econômica com a manipulação do câmbio - é preciso corrigir o câmbio com a revisão da política econômica.
Há um represamento na inflação de preços administrados? Como deve ser feito um eventual ajuste para adequar esses preços à realidade de mercado?
Há efetivamente um represamento, como fica claro ao comparar a variação do índice de preços livres com a do índice de preços administrados. Em particular, o preço do petróleo e de seus derivados tem sido corrigido muito abaixo do necessário para manter a paridade com os preços externos corrigidos pela taxa de câmbio. Todo o processo, cujo objetivo é tentar manter a inflação dentro das metas, sem sobrecarregar a política monetária e subir demais os juros, apesar do excesso de gastos do governo, tem alto custo. Entre outros, o absurdo de subsidiar o consumo de combustíveis fósseis, derivados do petróleo. Acredito que o ajuste deva ser feito o mais rápido possível, desde que todas as demais incongruências da política econômica, sobretudo o gasto público excessivo, sejam corrigidos e percebidos como uma decisão de longo prazo. Assim, o impacto inflacionário da correção teria fôlego curto, dada percepção da correção de rota da política macro. Mais uma vez, é a distorção da política macro, sobretudo da política fiscal, que pressiona a inflação. Corrija-se a fonte do problema e as distorções periféricas se corrigem naturalmente, ou podem ser revistas sem grandes perturbações.
Há um certo mau humor dos investidores internacionais com o Brasil. O que o senhor acredita que está havendo?
Durante alguns anos, houve uma lua de mel dos analistas e dos investidores internacionais com o Brasil. É compreensível. Nos governos Fernando Henrique Cardoso, a inflação crônica foi vencida e as contas públicas, nas suas várias instâncias, equilibradas. Eleito, Lula manteve inicialmente o curso da política macroeconômica e soube dar a um programa criado por Ruth Cardoso a dimensão merecida, o que incorporou um enorme contingente da população à classe média. O país fez efetivamente progresso, parecia estar pronto para o salto definitivo para o primeiro mundo. Com sua conhecida e tradicional obsessão por simplificar e caricaturar, analistas e investidores desconsideraram a vasta gama de gravíssimos problemas que ainda temos, fecharam os olhos ao primeiros sinais de que a política macroeconômica, sob a desculpa de minorar o impacto da grande crise financeira internacional de 2008, havia tomado outro rumo. Desde 2008, a política econômica brasileira é uma versão anacrônica e incompetente do velho desenvolvimentismo dos anos cinquenta do século passado, que teve seu período áureo durante o regime militar, até meados dos anos 70. De uns dois anos para cá, uma vez percebido o corporativismo estatista da política econômica, a incompetência para modernizar a infraestrutura e aumentar a produtividade da economia, os investidores, mais uma vez bem ao seu estilo volúvel e emotivo, passaram de um extremo ao outro. O Brasil agora lhes parece à beira do colapso econômico. Não acho que seja o caso. Ao menos ainda não.
O Senhor apoia algum candidato?
Acredito que a alternância no poder é elemento fundamental da democracia. Uma década parece-me suficiente para que um governo diga a que veio. Mesmo quando o governo é bom, é preciso alternar. Muito tempo no poder desvirtua, leva à perda de foco, a confundir os interesses dos governantes e do partido com os interesses do país e da população. É importante ter novos ângulos, novos pontos de vista, sobre os problemas e os desafios do país. A alternância entre o PSDB e o PT, nas últimas décadas, foi positiva. O PT mostrou sua cara, suas qualidades e seus vícios, desmistificou-se. Foi importante. Acho que agora é hora de mudar. Tenho certeza de que Aécio Neves faria um excelente governo, como já demonstrou no governo de Minas. Na economia está muitíssimo bem assessorado e saberia como reverter o quadro delicado, decorrente dos erros da política econômica nos últimos anos. Não será fácil, sobretudo por conta do aparelhamento do Estado, promovido pelo governo nos últimos anos. Em nome da alternância e da mudança de ângulo, gostaria de ver um governo de Eduardo Campos e Marina Silva. Não apenas me identifico com uma nova visão do desenvolvimento, que dá mais importância à qualidade de vida do que exclusivamente ao crescimento material, como acho saudável que o pais transcenda um sistema bipolar, PT e PSDB, que tende à radicalização.
O senhor pode falar um pouco sobre a sua relação com a Marina Silva?
Eu tive fiz alguns contatos com a Marina na eleição passada e conheço pessoas que conversam com ela. Converso muito com o Eduardo Giannetti. Recentemente, estive uma vez com a Marina e com o Eduardo Campos em um encontro da Rede. Eu não o conhecia, nem conhecia o pessoal dele. Fiquei bem impressionado. Mas não participo de campanha e não tenho nenhum engajamento.
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‘É preciso crescer com qualidade de vida’, diz Lara Resende - Instituto Humanitas Unisinos - IHU