João Feres Jr., Bernardo Ricupero e Ricardo Musse interpretam os discursos que emergem do encontro de 22 de abril, trazido à tona pela denúncia de interferência do presidente na Polícia Federal
Não há dúvidas. Assistir ao vídeo da reunião ministerial do governo de Jair Bolsonaro realizada no dia 22 de abril de 2020 causa vertigens – o que talvez justifique a afirmação de muitos que se dizem enjoados com as cenas. No entanto, é possível falar que o encontro causa vertigem, mas não traz grandes surpresas. É o que apontam os analistas consultados pela IHU On-Line. Para eles, os discursos que emergem revelam de forma crua os propósitos de um governo que já vem demonstrando a que veio. “A divulgação do vídeo da reunião constituiu um ponto de viragem. Max Weber ensina que é possível identificar o objetivo de um agente social pelo acompanhamento de suas ações”, observa o sociólogo Ricardo Musse, em entrevista concedida por e-mail.
O filósofo e cientista social João Feres Júnior, em entrevista concedida por WhatsApp, enfatiza como os discursos materializam perspectivas de que nas falas públicas se tem apenas indícios. “Expôs de maneira ainda mais crua o governo Bolsonaro, porque quando eles falam mais abertamente em público ou para a mídia, alguns tomam certos cuidados, outros não. Na reunião, pareciam estar mais desinibidos”, pontua.
Para o cientista político Bernardo Ricupero, dos ataques ao Supremo Tribunal Federal, aos indígenas, minorias em geral, governadores e a ciência, emerge algo em comum: a fala militante. “O subtexto da fala militante é a crítica aos ministros com “agenda própria”, não sendo difícil de perceber que se trata fundamentalmente do ex-titular da Justiça, Sérgio Moro”, explica, em entrevista concedida por e-mail.
Os três analistas chamam atenção para como as falas revelam as muitas cabeças, ou linhas, ou, ainda, facções, que existem dentro do governo. O que demonstra que, para o presidente, isso não chega a ser problema contanto que suas divisas brilhem mais do que todas. “O discurso militante defende a lealdade absoluta a Bolsonaro”, pontua Ricupero. “Não deixa de ser chocante ver personalidades que se apresentam publicamente como indivíduos autônomos e racionais se comportarem diante do presidente com o mesmo espírito de submissão e de obediência cega ao ‘líder’ que o bolsominion das redes sociais”, acrescenta Musse. “É uma atitude de militância radical de tratar os outros adversários como inimigos. É a concepção de política como um reino em que é preciso determinar quem são seus inimigos e os destruir”, emenda Feres.
Por outro lado, os analistas observam como o encontro também mostra que nesse ano e meio de governo tantas cabeças e interesses por vezes diversos começam a revelar fraturas. O melhor exemplo é a própria dissidência do ex-ministro da Justiça e Segurança Sérgio Moro, que é quem leva a disputa com o presidente para a revelação do vídeo. “Na verdade, só com a eclosão do coronavírus a aliança começou a sofrer rachaduras mais fortes. Isso ocorreu, em boa medida, pela atabalhoada resposta do governo à pandemia”, identifica Ricupero.
Segundo Feres, essa coalizão que leva Bolsonaro ao Planalto é diferente das anteriores e se coaduna a partir dos desgastes dos governos petistas, unindo setores do empresariado e uma certa classe política. “Há um papel da mídia, da grande mídia, nisso tudo. Ela foi a maior responsável pelo sucesso eleitoral do Bolsonaro porque criou as condições para desvalorização e deslegitimação da política representativa no Brasil”, acrescenta.
E a pandemia? Os três analistas destacam que essa seria a pauta do encontro. Mas tudo acaba sendo tragado para uma crise política, que nem o próprio governo compreende que está relacionada com a forma “esquizofrênica”, como diz Musse, com que tratam a covid-19 e suas consequências. Enquanto isso, completa Musse, “a crise econômica tende a aumentar em intensidade e duração. O risco de uma depressão não é descartável. Não se sabe a configuração que a crise social irá adquirir”. Ou seja, “o desenlace da crise política será decisivo para delinear cada um desses cenários”.
João Feres Júnior (Foto: Arquivo pessoal)
João Feres Júnior possui graduação em Ciências Sociais e mestrado em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp e mestrado e doutorado em Ciência Política pela City University of New York, Graduate Center. É professor de ciência política do Instituto de Estudos Sociais e Políticos – IESP, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, onde coordena o Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa – GEMAA, o Observatório do Legislativo Brasileiro - OLB e o Laboratório de Estudos de Mídia e Espaço Público – LEMEP, no âmbito do qual desenvolve o projeto Manchetômetro, website de acompanhamento da cobertura da grande mídia sobre temas de economia e política que não tem qualquer filiação com partido político ou grupo econômico. É também editor executivo da EdUERJ.
IHU On-Line – Como interpreta os discursos que emergem da reunião ministerial de 22 de abril?
João Feres Júnior – Disseram-me que essa reunião foi marcada para a apresentação do Programa Pró-Brasil, por parte de Braga Netto, ministro-chefe da Casa Civil, e por outros ministros. Era uma reunião que tinha um caráter fechado, mas não inteiramente, e parece que sabiam que estavam sendo gravados. Não está claro para mim se era uma reunião que não poderia ser divulgada mas, de qualquer maneira, foi e as falas foram muito coerentes com o que eles falam ao público. Na verdade, talvez com um pouco mais de desinibição, mas os recados, os conteúdos foram basicamente os mesmos.
Diria que expôs de maneira ainda mais crua o governo Bolsonaro, porque quando eles falam mais abertamente em público ou para a mídia, alguns tomam certos cuidados, outros não. Na reunião, pareciam estar mais desinibidos. Gostaria de chamar atenção para as falas do Weintraub [Abraham Weintraub, ministro da Educação], que são falas de militante olavista. Ele mesmo disse que está lá para militar, para batalhar, usou metáforas de guerra e sugeriu prender os ministros do Supremo Tribunal Federal. Ou seja, temos ali uma agenda autoritária clara e ultraconservadora que não surpreende ninguém; só surpreende as pessoas de bom senso que um cara como esse esteja à frente do Ministério da Educação.
A fala da Damares [Damares Alves, ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos] também é uma fala de militante, inclusive com uma visão muito particular da questão indígena, ou seja, uma visão evangélica com relação à questão indígena. Confirma o que é a Damares, pois com o seu ‘vamos para a batalha’ está evidenciando que é a batalha pelos valores, porque esse é um governo conservador nos valores.
Os dois marcaram muito bem as posições, a Damares a posição dos evangélicos, e o Weintraub a posição dos olavistas. Agora, o mais relevante do ponto de vista político, muito mais do que essas marcações de posição, diz respeito, em primeiro lugar, às duas falas que são complementares: do Salles [Ricardo Salles, ministro do Meio Ambiente] e da Tereza Cristina [ministra da Agricultura]. Salles falou em aproveitar que a mídia está ocupada com outras coisas para “passar a boiada” – para desregulamentar a questão ambiental enquanto não se está tendo notícias do aumento das queimadas na Amazônia, pois isso continua –, abrindo essa postura bastante pró-agribusiness, e também contra o tema das mudanças climáticas.
A ministra da Agricultura – isso menos gente percebeu – fez uma fala complementar à dele, dizendo que o Brasil tinha um problema de falta de autonomia em relação ao trigo, mas que o país ia continuar crescendo na produção da agricultura, em grande medida porque estávamos expandindo as áreas de plantio. Ou seja, contando com o desmatamento e a expansão da fronteira agrícola.
Isso também é complementar às referências que foram feitas de forma bastante derrogatória aos índios brasileiros. Weintraub falou que não gosta de índio, e Damares falou algo bem estranho sobre os índios. É essa ideia de que o agribusiness está ocupando não só o Ministério da Agricultura, mas também o do Meio Ambiente e aproveitando a pandemia de covid-19 para passar a agenda deles mais do que nunca.
Daí se pode entender a movimentação da MP 910 [conhecida como MP da Grilagem] na Câmara dos Deputados, pois tentaram a aprovação dessa MP e não deu certo porque a oposição barrou. Essa Medida aumenta a grilagem, aumenta o número de glebas prometidas para a grilagem.
E, por fim, outra fala que gostaria de chamar atenção é a do Paulo Guedes [ministro da Economia], essa sim uma fala, como sempre, raivosa, que mostra sua preocupação exclusiva com a privatização do Estado, isso num momento de pandemia. Ele não está preocupado em, de fato, fazer um tipo de administração econômica da crise da saúde pública. Está, na verdade, preocupado só com um tipo de economia, que considera a melhor, que passa pela diminuição do Estado brasileiro num momento em que o Brasil precisa de Estado para fazer o combate à pandemia.
Por fim, a coisa mais saliente de toda essa reunião foi a pouquíssima importância que se deu à crise do coronavírus. O tema mereceu apenas uma fala muito burocrática do ministro da Saúde [então o médico oncologista Nelson Teich], que não mostrou o plano do governo federal para a pandemia. Aliás, plano que até agora não existe, um plano de testagem, coerente com a ideia da necessidade de que as pessoas precisam ser testadas porque, do contrário, não podem voltar à atividade. É um despreparo total, pois o país está se afundando de um lado e os caras estão ali falando de outras coisas.
IHU On-Line – Com base na reunião de 22 de abril, qual diria que é a noção de democracia, República e Estado do governo de Jair Bolsonaro?
João Feres Júnior – Na verdade, o governo de Jair Bolsonaro é formado pela união de tendências diferentes. Tem o grupo evangélico, o grupo ultraneoliberal, representado pelo Paulo Guedes e seus seguidores, o grupo olavista, representado pelo Weintraub, a parte que trata do meio ambiente, que é o pessoal do agribusiness, e a família Bolsonaro – ele e os filhos que, embora não estejam presentes na reunião, têm uma participação ativa no governo – que são em si um grupo, mas que está muito próximo do olavismo mentalmente, pois essa forma de ultraconservadorismo, anticientificismo alucinado, é muito parecida com o ultraconservadorismo norte-americano e se inspira nele como exemplo.
Há todos esses grupos diferentes, mas uma coisa que os une, se formos falar de “a cara” do governo Bolsonaro, é uma atitude de militância radical – não diria terrorista – de tratar os outros adversários como inimigos. É a concepção de política como um reino em que é preciso determinar quem são seus inimigos e os destruir. É assim que fala Damares, Paulo Guedes, Bolsonaro, é como todos eles concebem a política propriamente dita.
A democracia para essas pessoas não é nada mais do que um entrave. Como foram eleitos, eles têm que fazer o jogo democrático no sentido mais rastaquera e instrumental que se possa imaginar. Eles jogam esse jogo na medida em que possam reverter e transformar isso em algo autoritário. Como até agora não puderam, eles prestam um serviço, na medida do possível, que é ir se instrumentalizando para chegar aos seus fins. Por exemplo, no caso da Damares, de destruir uma sociedade liberal em termos de seus valores e instituir uma sociedade ultraconservadora e evangélica. Os olavistas querem destruir o pensamento de esquerda, porque acham que ele corrompe a sociedade, e instituir uma sociedade religiosa mas, ao mesmo tempo, autoritária, porque é uma doutrina, em grande medida, autoritária, autocrática.
E o Estado é o elemento mais paradoxal porque tradicionalmente os autoritarismos fazem uso dele para implementar seus projetos. Mas, como existe essa vertente ultraneoliberal contra o Estado, pelo desmonte do Estado, há uma tensão entre os que querem demolir o Estado de vez e aqueles que querem usá-lo como instrumento e, assim, ter uma polícia federal forte, um Estado que possa fazer políticas de intervenção de qualquer maneira.
A República? Nem se fale, eles nem sabem o que é. O conceito é muito sofisticado para esse pessoal.
IHU On-Line – Quais suas projeções para o Brasil nos próximos meses? Que cenários podemos esperar pós-pandemia?
João Feres Júnior – É muito difícil falar de cenários. Gosto muito de fazer análise política, mas é muito melhor fazer análise política quando as instituições estão funcionando direito, porque há mais previsibilidade. Sabemos que vai ter eleição, vai ter partido político, os partidos vão utilizar os canais normais de comunicação com o eleitorado. Então, assim, se pode tentar criar o xadrez eleitoral e político. Mas as instituições estão há muito tempo em conflito no Brasil, por isso é muito difícil fazer previsão do que será no futuro. Eu acho que podem acontecer três coisas: Bolsonaro tentar fechar o regime com apoio dos militares, impeachment de Bolsonaro ou a continuação desse conflito sem fim. São três possibilidades, não saberia dizer qual é a mais provável.
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
João Feres Júnior – Há um papel da mídia, da grande mídia, nisso tudo. Ela foi a maior responsável pelo sucesso eleitoral do Bolsonaro porque criou as condições para desvalorização e deslegitimação da política representativa no Brasil. Os partidos que mais perderam com isso foram os de centro-direita, o PSDB, por exemplo, mais do que o PT. Mas houve uma campanha sistemática contra o PT, insuflou-se o antipetismo de uma maneira fortíssima e a grande mídia foi a responsável por isso.
Fizemos um estudo no Manchetômetro que mostra que no segundo turno da eleição de 2018 os três jornais definiam Bolsonaro como uma ameaça à democracia tanto quanto Haddad [Fernando Haddad, candidato do PT]. E, não coincidentemente, o Globo e o Estadão, há poucas semanas, publicaram editoriais dizendo que Lula é tão ruim quanto Bolsonaro. Depois de ter feito todas essas ofensas a instituições, de desrespeito a instituições, eles colocaram o Lula e o Bolsonaro no mesmo patamar.
O nível de politização reacionária da mídia brasileira e a maneira como atuaram para tirar o PT do poder, atacando as instituições, foi o que produziu Jair Bolsonaro. Agora são contra Bolsonaro, mas ele é um filhote da grande mídia. Lógico que em aliança com o empresariado, com o PSDB, que também tentou destruir as instituições ou atentou contra elas. Isso é triste porque a consequência da mídia, da informação recebida por anos e anos é a fascistização, a criação do bolsonarismo, dessa gente que vemos pelas ruas, em grande medida brancos de classe média fascistas. São pessoas que são contra minorias, contra o Estado, contra pobre. É impressionante, é a cultura do ódio.
Bernardo Ricupero (Foto: Arquivo pessoal)
Bernardo Ricupero possui graduação em Ciências Sociais, mestrado em Ciência Política e doutorado em Ciência Política pela Universidade de São Paulo - USP, tendo realizado pós-doutorado pelo Colégio do México. É professor doutor da USP, trabalha com ênfase em História do Pensamento Político, atuando principalmente em temas como pensamento político brasileiro, pensamento político latino-americano, marxismo, nacionalismo e romantismo.
IHU On-Line – Como interpreta os discursos que emergem da reunião ministerial de 22 de abril?
Bernardo Ricupero – Em primeiro lugar, talvez convenha ressaltar que o motivo original da reunião ministerial era apresentar o plano Pró-Brasil. É necessário fazer essa ressalva, já que tal objetivo ficou eclipsado diante do teor que o encontro acabou assumindo.
De qualquer maneira, relacionado com o plano Pró-Brasil, o general Braga Netto conduziu inicialmente a reunião, secundado pelo ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho. Emerge daí um primeiro discurso, mais “intervencionista”. Defende-se, em linhas gerais, que, diante do desafio representado pela recessão causada pelo coronavírus, seria necessário que o Estado tomasse a iniciativa de ações de retomada da economia. Tal diagnóstico é explicitado na imagem de que o momento atual exigiria um Plano Marshall. É verdade que o teor das medidas que se adotaria não fica muito claro.
Que Paulo Guedes sentiu o golpe, percebe-se por sua reação indignada às primeiras falas. Tal resposta corresponde, de maneira geral, a um discurso identificado com o liberalismo econômico. De forma pedante, corrige Braga Netto na caracterização das iniciativas que defendera como comparáveis ao Plano Marshall. Em sentido contrário, afirma que tais medidas levariam à ruína, como teria acontecido nos governos Dilma Rousseff e Lula. Uma variante radicalizada do discurso do liberalismo econômico é o comentário do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, de que “precisa ter um esforço nosso aqui enquanto estamos nesse momento de tranquilidade no aspecto de cobertura de imprensa, porque só fala de covid, e ir passando a boiada e mudando todo o regramento e simplificando normas”.
O terceiro discurso presente na reunião, “militante”, é expresso especialmente na fala de Abraham Weintraub, em que se insurge contra Brasília – que mais do que a capital corresponde a uma imagem, identificada com privilégios e descaso –, e afirma, num trecho já célebre, que “botava esses vagabundos todos na cadeia. Começando pelo STF”. De certa forma, a fala do ministro da Educação deixa para trás os dois discursos anteriores, com Bolsonaro referindo-se diversas vezes a ela. Outro exemplo do discurso militante é a intervenção da ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, em que defende a prisão de governadores.
O subtexto da fala militante é a crítica aos ministros com “agenda própria”, não sendo difícil de perceber que se trata fundamentalmente do ex-titular da Justiça, Sérgio Moro. Também é fácil notar a quem é destinado o arroubo do presidente, quando alerta: “eu não vou esperar foder a minha família toda, de sacanagem, ou amigos meu, porque eu não posso trocar alguém da segurança”. Ou seja, o discurso militante defende a lealdade absoluta a Bolsonaro e a seu projeto de ruptura com “Brasília”.
Trata-se de saber até que ponto esses discursos podem conviver. A questão se complica se pensarmos que cada um deles expressa, de alguma maneira, uma ou mais forças sociais ou posições políticas; os intervencionistas se identificando com setores militares e da burocracia, os liberais com o mercado financeiro e o agribusiness, os militantes juntando desde a extrema direita, representada pelo ministro Weintraub, a pentecostais, personificados na ministra Damares.
A questão se complica se pensarmos nos que não falaram durante a fatídica reunião, especialmente o ministro da Defesa, general Fernando Azevedo, e o vice-presidente, general Hamilton Mourão. Como lembrou Ricardo Musse, a psicanálise chama a atenção para como o “não dito” é muitas vezes revelador, podendo-se interpretar o silêncio desses militares como eloquente.
IHU On-Line – Com base na reunião de 22 de abril, qual diria que é a noção de democracia, República e Estado do governo de Jair Bolsonaro?
Bernardo Ricupero – Na linha da formulação da primeira pergunta, diria que não há uma noção de democracia, República e Estado do governo Bolsonaro, mas noções de democracia, República e Estado. Em resumo, se estes são, de maneira geral, conceitos polissêmicos, em permanente disputa, também no interior do governo Bolsonaro há enfrentamentos sobre o significado de “democracia”, “República” e “Estado”, diferentes setores do governo entendendo-os de maneira variada.
De qualquer forma, afirmaria que, de maneira geral, o presidente e seus apoiadores se identificam com uma noção de democracia em que não há espaço para o elemento liberal que, historicamente, acabou se associando com a democracia, constituindo o que se convenciona chamar de democracia-liberal. Nota-se que liberalismo econômico, no sentido de desregulação do mercado, não é sinônimo de liberalismo político, no sentido de se impor limites ao poder.
Diria que Bolsonaro e seus seguidores acreditam basicamente que em razão de ter sido eleito presidente não deve haver limitação ao seu exercício de poder, inclusive na forma de controle mútuo entre poder Executivo, poder Legislativo e poder Judiciário, como defendido por autores clássicos, como Montesquieu e os Federalistas. Tal questão está agora no centro da disputa política. Em sentido oposto, as recorrentes evocações ao povo, inclusive ao “povo armado”, chocam-se com esses limites ao poder e aproximam-se, perigosamente, do fascismo, no qual as milícias eram um componente importante.
Nada mais longe de “República”, no sentido etimológico da palavra, “de coisa pública”, do que a intenção de Bolsonaro, revelada na reunião, de evitar que órgãos públicos possam “foder a minha família toda, (...) ou amigos meu”. Isso também se expressa, para além do dia 22 de abril, quando fala em “a minha Polícia Federal” ou quando proclama, “eu sou a Constituição”, afirmação que evidentemente evoca, de maneira até ridícula, célebre frase de Luís XIV.
Isto é, não há dúvida de que o presidente não se identifica com a virtude, no sentido republicano da palavra, em que se coloca o bem comum acima do interesse privado. Ao contrário, para o atual mandatário a República deve estar subordinada às necessidades de sua família e de seus amigos.
O que remete à noção que Bolsonaro tem de Estado, que caracterizaria, num sentido amplo, como patrimonialista, situação em que não há clara separação entre público e privado. Significativamente, segundo o formulador do conceito, Max Weber, a burocracia patrimonial deve obediência ao senhor, não se regendo por normas impessoais.
No entanto, essa não é a única concepção de Estado presente no governo Bolsonaro. De maneira sugestiva, algumas dessas visões chegaram a se chocar na reunião do dia 22 de abril. Guedes, ao defender a legalização de cassinos, interpela diretamente Damares e afirma: “deixa cada um se foder do jeito que quiser. Principalmente se o cara é maior, vacinado e bilionário”. Ou seja, o ministro da Economia, seguindo os preceitos do liberalismo econômico, é um defensor do Estado mínimo, que não interfere na vida do indivíduo, “principalmente se o cara é maior, vacinado e bilionário”. Já a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, apesar de não ter verbalizado sua posição no encontro ministerial, se identifica com o ideal de um Estado Teocrático, em que não há a separação entre Estado e religião.
IHU On-Line – Quais suas projeções para o Brasil nos próximos meses? Que cenários podemos esperar pós-pandemia?
Bernardo Ricupero – Para evitar o risco de errar, diria que os próximos meses devem ser agitados. Para além da afirmação acaciana, acredito que a análise da reunião ministerial pode jogar luz no que nos reserva o futuro que se avizinha.
O ponto principal que gostaria de enfatizar é a heterogeneidade do governo, como ficou claro nos diversos “discursos” que aparecem no dia 22 de abril. Em alguma medida, esta é uma característica de todos os governos, ainda mais daqueles que são produto de eleições competitivas, já que para vencer é preciso criar coalizões, que costumam juntar interesses e valores bastante variados e, por vezes, mesmo contraditórios.
No caso de Bolsonaro, diria, simplificadamente, que a coalizão que o elegeu combinou um núcleo de extrema direita, do qual o capitão reformado é egresso; com liberais, identificados principalmente com o mercado financeiro e com o agribusiness; “lavajatistas”, com atuação com forte apelo para a classe média; além de pentecostais, com presença significativa entre os setores populares; e, last but not least, militares, descontentes com a sorte que a Nova República reservou à corporação.
Durante mais de um ano, essa coalizão se manteve unida, mesmo que tenha tido frequentes solavancos. Na verdade, só com a eclosão do coronavírus a aliança começou a sofrer rachaduras mais fortes. Isso ocorreu, em boa medida, pela atabalhoada resposta do governo à pandemia. A negação da gravidade da situação e o boicote explícito ao isolamento social contribuíram para a queda de dois ministros populares; de maneira direta, do ministro da Saúde, Henrique Mandetta, e, de maneira indireta, de Moro. Ajudaram também o governo a perder apoio, atualmente com a avaliação positiva de Bolsonaro variando entre 25% e 33% e a avaliação negativa estando entre 43% e 50%.
Em termos da coalizão bolsonarista, “lavajatistas” se afastaram do governo. Paralelamente, para evitar o perigo do impeachment, o presidente se aproximou do Centrão, grupo que sempre denunciou. A perda de apoio na classe média foi, em parte, compensada com a maior aprovação nos setores populares, o que aparentemente se deve, acima de tudo, ao auxílio emergencial de R$ 600. No entanto, não se pode imaginar que o Centrão é confiável, como constatou Dilma, que também deveria ter sido socorrida pelo grupo. Quanto aos setores populares, nada garante que continuem simpáticos a Bolsonaro quando o auxílio emergencial terminar e a recessão e o desemprego se agravarem.
Em termos mais profundos, o apoio do Centrão – que vem com as conhecidas exigências de cargos e verbas – deve criar tensões principalmente com o Ministério da Economia. Um primeiro exemplo foi o auxílio aos estados, que foi aprovado no Congresso com a possibilidade de se concederem aumentos ao funcionalismo público. Mesmo que a medida seja vetada, não faltarão novas oportunidades de atritos. A questão é, no médio prazo, saber se Guedes e o grupo liberal permanecerão no governo. Se se afastarem, o apoio do mercado financeiro e do agribusiness a Bolsonaro se torna mais duvidoso.
Num sentido mais amplo, a heterogênea coalizão que sustenta o governo se torna, com a incorporação do Centrão, mais instável. Concomitantemente, o desgaste de Bolsonaro tende a se acentuar com o agravamento da pandemia e da recessão. Em compensação, o presidente acuado deve radicalizar. Conta, além do mais, ainda com um significativo apoio popular, diferente do que ocorreu com os dois casos de impeachment brasileiros, Fernando Collor e Dilma Rousseff. Além de tudo, boa parte de seus seguidores parece disposta a “resistir”. Por fim, há a incógnita de como se comportarão as Forças Armadas.
Em resumo, cresce a possibilidade de ruptura, seja pelo afastamento de Bolsonaro ou pelo golpe. No que se refere à segunda opção, a possibilidade de ocorrer um golpe “não clássico”, que não se dá num momento específico, mas com uma progressiva erosão da democracia, torna mais difícil a análise do quadro político. De qualquer maneira, independente do que ocorrer, o custo, em termos de vidas e de um verdadeiro colapso econômico, será enorme.
Ricardo Musse (Foto: Flickr CC)
Ricardo Musse é professor associado no departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo – USP. Livre-docente e doutor em Filosofia pela USP, mestre em Filosofia pela UFRGS. Tem experiência em pesquisas e docência nas áreas de sociologia e de filosofia, com ênfase em teoria sociológica. Seus temas de pesquisa são teoria crítica da sociedade, sociologia do marxismo, teoria social, sociologia e filosofia alemã. Entre suas publicações, destacamos Émile Durkheim: fato social e divisão do trabalho (São Paulo: Ática, 2007) e Capítulos do Marxismo Ocidental (São Paulo: Fapesp/Unesp, 1998).
IHU On-Line – Como interpreta os discursos que emergem da reunião ministerial de 22 de abril?
Ricardo Musse – A divulgação do vídeo constituiu um ponto de viragem. Max Weber ensina que é possível identificar o objetivo de um agente social pelo acompanhamento de suas ações. Os analistas políticos atentos já haviam destacado que a sequência de movimentos de Jair Bolsonaro, desde a campanha eleitoral, indicava o seu propósito de se estabelecer como um poder autoritário. Mas há muita diferença entre uma interpretação e isso ser dito pelo próprio presidente.
A reunião explicitou não só o projeto de tornar o governo cada vez mais autoritário, acatado com maior ou menor concordância por seus ministros, como também as entranhas do poder. Não deixa de ser chocante ver personalidades que se apresentam publicamente como indivíduos autônomos e racionais se comportarem diante do presidente com o mesmo espírito de submissão e obediência cega ao “líder” que o bolsominion das redes sociais, para quem Bolsonaro é “mito”.
Tornou-se patente que o círculo de ministros não se comporta como uma equipe de governo preocupada em resolver os problemas do país, mas apenas como quadros no topo da hierarquia de um movimento cujo objetivo é um só: ampliar o poder decisório de Jair Bolsonaro.
Nesse sentido, a série de intervenções que parecem quadros de uma peça cômica – cenas dignas de figurar nos gibis do Recruta Zero e nos encontros da turma do Sargento Garcia – assume um caráter assustador. Elas revelam uma desconexão da realidade, um contato precário com o mundo externo similar à “projeção patológica” associada por Freud à paranoia e ao delírio persecutório e que constitui para Adorno um elemento decisivo na determinação do tipo de personalidade mais propensa ao fascismo.
Pouco importa se Ernesto Araújo. Abraham Weintraub, Damares Alves e companhia acreditam no que dizem (seus desempenhos profissionais anteriores permite essa suspeita). Na medida em que falam o que Bolsonaro quer ouvir, traduzem com nitidez o que chefe pensa.
É inacreditável e sinistro que na reunião se relate com naturalidade teorias conspiratórias absurdas como a de que ONGs estão espalhando o coronavírus entre os indígenas para atribuir a culpa de seu extermínio a Bolsonaro, ou que a prioridade da China é implantar o comunismo no Brasil. É surpreendente e desesperador ouvir diagnósticos absurdos como o de Ernesto Araújo dizendo que o Brasil pós-pandemia será um dos cinco países mais importantes do mundo, participante de um reformulado Conselho de Segurança da ONU (composto atualmente pelos países vencedores da Segunda Guerra Mundial). Paulo Guedes, o impagável, explica que um dos motores da retomada do crescimento econômico será o turismo incrementado pela autorização do jogo (e do turismo sexual) em resorts de luxo.
As comparações com reuniões da máfia, recorrentes na trilogia O Poderoso Chefão, de Francis Ford Copolla, ou nos filmes dirigidos por Martin Scorcese, destoam da reunião ministerial num ponto decisivo: os mafiosos agem de forma pragmática a partir de informações e dados verdadeiros. Para continuar com analogias cinematográficas diria que as cenas do vídeo da reunião de 22 de abril caberiam perfeitamente num filme de Quentin Tarantino...
A verificação do que aconteceu na reunião suscita necessariamente uma indagação: a oitava economia do mundo pode continuar a ser “administrada” por essa troupe? É uma pergunta que cada cidadão sensato está se fazendo. Gostaria de poder incluir aqui os financistas, os empresários e mesmo os rentistas, mas sabemos todos que o “espírito animal” dos capitalistas se guia apenas pelo lucro incessante. A centralização e a concentração do capital, a supremacia de grandes corporações cartelizadas em virtuais monopólios são a pré-condição da concentração do poder.
IHU On-Line – Com base na reunião de 22 de abril, qual diria que é a noção de democracia, República e Estado do governo de Jair Bolsonaro?
Ricardo Musse – O Brasil já não é mais uma democracia, nem mesmo formal, desde o golpe que derrubou em 2016, sem qualquer comprovação de crime de responsabilidade, uma presidenta legitimamente eleita. Alguns direitos característicos de regimes democráticos foram mantidos como a liberdade de expressão e de reunião. Mas falta o decisivo, a igualdade de condições para a competição eleitoral e o jogo político.
O partido que governou com relativo êxito o país durante 13 anos (assim como os setores coligados que lhe deram sustentação) foi criminalizado e praticamente interditado. A esquerda, a representação, mesmo que heterogênea, dos interesses da classe trabalhadora, foi alvo de uma campanha orquestrada conduzida pelo Judiciário; pelo aparato repressivo do Estado (Forças Armadas, Ministério Público, PF, Receita Federal); pelo sistema político (o onipresente e cambiante “Centrão” e o PSDB); pela imprensa corporativa (os grandes jornais, revistas e a totalidade da mídia televisiva); pela indústria de fake news (sustentada por empresários nacionais e estrangeiros); por setores do pequeno, médio e grande capital. Tudo isso com a benção e a instigação do Império.
Essa enumeração é imprescindível para se entender a situação atual. Marx mostrou no livro O 18 Brumário que em uma “contra-revolução preventiva” a disputa pelo poder assume a forma de um vale-tudo no qual os vitoriosos do momento são derrubados um a um: Eduardo Cunha, o “Centrão” capitaneado pelo MDB, Michel Temer e agora Sergio Moro.
Na eleição de 2018, Jair Bolsonaro obteve, de forma explícita ou não, o apoio e a adesão, mais ou menos entusiasmada, de todos eles. O exercício do poder trouxe à tona as contradições latentes entre os participantes do “condomínio do golpe” e também entre os interesses divergentes no interior de cada um destes setores.
As relações entre Jair Bolsonaro e uma parcela ponderável dos participantes da coalizão social que sustenta o governo foram esfriando paulatinamente. O advento da pandemia provocou uma sucessão de rupturas. Gravitaram para a oposição, de forma velada ou explícita:
(a) no sistema político, governadores, prefeitos, parlamentares e partidos da direita liberal (DEM e PSDB);
(b) no Judiciário, parte do STF, ainda não se sabe se majoritária, e os setores mais identificados com o “lavajatismo”;
(c) no aparato repressivo, os grupos “lavajatistas” do MP, da PF e da RF;
(d) na imprensa corporativa, os quatro grandes jornais e a Rede Globo.
Pressionado por essa nova configuração política, enfraquecido pela reaglutinação da direita liberal, Bolsonaro adotou um comportamento reativo (típico dos afetos do ressentimento), mas dialeticamente previsível: acelerou o movimento para tensionar as instituições e os agentes da democracia mitigada. Ele assumiu, como o vídeo da reunião ministerial escancarou, a condição de líder e condutor de um movimento neofascista que ainda conta com apoios e adesões entusiasmadas em determinados setores da sociedade.
IHU On-Line – Quais suas projeções para o Brasil nos próximos meses?
Ricardo Musse – Desde a disseminação mundial do coronavírus adentramos em uma quadra histórica excepcional. A conjunção entrelaçada de diversas crises – sanitária, econômica, política, cultural, social – inviabiliza qualquer exercício de prognósticos.
O Brasil enfrenta a pandemia de forma esquizofrênica. Os procedimentos recomendados pelas autoridades sanitárias e corroborados, em alguma medida, pelos governadores têm sido contestados pelo governo Bolsonaro que significativamente continua sem ministro da Saúde.
O resultado deste embate é previsível, a crise econômica tende a aumentar em intensidade e duração. O risco de uma depressão não é descartável. Não se sabe a configuração que a crise social irá adquirir. O desenlace da crise política será decisivo para delinear cada um desses cenários.
Nós, leitores do Instituto Humanitas Unisinos - IHU, sabemos que a situação é complexa, mas também cristalina. Nossa tarefa é lutar pelos direitos e valores civilizatórios, contra a barbárie que se instalou como uma “calamidade triunfal”.