22 Mai 2020
Ditadores sempre projetam inimigos e estão em guerra permanente contra eles, tal qual a política de Bolsonaro.
Para o professor Ivann Carlos Lago, mestre e doutor na Universidade Federal Fronteira Sul (RS), a política do ódio, da arbitrariedade, da busca por um inimigo real ou imaginário praticada por Jair Bolsonaro, é típica dos ditadores. Mas faz um alerta. “Isso pode se tornar uma armadilha”. Em entrevista a CartaCapital, Lago analisou ainda o comportamento do que chamou de “brasileiro médio”, o eleitor que votou e ainda apoia o ex-capitão.
A entrevista é de René Ruschel, publicada por CartaCapital, 21-05-2020.
Como o senhor analisa o presidente Jair Bolsonaro?
Bolsonaro é exatamente o que disse que seria, do jeito que disse que seria. Seu modo de governar não surpreende, minimamente, quem acompanhou sua trajetória como parlamentar. Na campanha eleitoral, tentou se mostrar como o antídoto do que chamou de “velha política”. Mas, na prática, ele representa o que há de pior nela. Bolsonaro é a materialização do lado mais nefasto, mais autoritário e mais inescrupuloso do sistema político brasileiro.
Esperava um governo tão conturbado?
Creio que o termo não é “esperava”, mas todas as análises apontavam para isso. Ele foi eleito presidente intensificando suas características mais marcantes, como a agressividade, o ódio, a necessidade de ter inimigos e combatê-los, a negação ao diálogo e a tolerância. Não seria a eleição e o fato de, agora, ser o homem mais poderoso do país, que o fariam mudar.
Em um de seus textos, o senhor afirma que Bolsonaro “é uma expressão fiel do brasileiro médio”. Afinal, quem é e o que pensa o “brasileiro médio”?
O “brasileiro médio” caracteriza o tipo comum, que representa o jeito de ser e pensar de boa parte da população. É o tiozão do grupo de WhatsApp da família, que defende a pena de morte, que orgulha sonegar impostos e ainda ensina os parentes a fazer o mesmo. Aquele que fura fila e conta com orgulho. Defende o extermínio de todos os esquerdistas porque inventaram a corrupção, e sabe disso porque assiste telejornal na TV a cabo pirata. Odeia quem recebe Bolsa Família, acha todo pobre vagabundo.
Não critica homossexualidade em público, mas tem pavor de pensar que seu filho possa ser gay. Não se considera machista nem racista, mas tem um estoque de piadas que ridicularizam mulheres e negros. Tem discurso pronto para criticar políticas assistenciais e defende o “enxugamento” do Estado, mas não perde uma oportunidade de acessar algum benefício ou política pública para o qual seu perfil socioeconômico dá acesso.
Esse eleitor enxergou em Bolsonaro seu alter ego?
Sim. E se sublimou nele. Sente-se representado por ele. Bolsonaro é tudo o que ele gostaria de ser e não pode. Sente-se realizado quando o presidente ofende jornalistas e lideranças de esquerda, quando usa termos vulgares para atacar adversários, quando se comporta nos salões de Brasília como se estivesse no churrasco de domingo. É nesse sentido que afirmo que Bolsonaro não é uma aberração política, mas uma expressão fiel desse “brasileiro médio”.
O que o fez se tornar essa pessoa? São raízes históricas?
São múltiplos fatores. Passa pela cultura da esperteza, de levar vantagem em tudo, de ser criativo não para criar coisas novas, mas para achar modos novos de fazer as coisas com menos esforço. Passa pela noção de “malandro” tão brilhantemente analisada por Roberto Da Matta. Pela ideia de que trabalho é algo degradante, e que sujeito esperto é quem encontra um modo de ganhar dinheiro sem trabalhar. Explorar todos os fatores de suas origens históricas e culturais demandaria um tratado sobre o assunto.
Por que essa parcela da sociedade ainda não havia se manifestado de forma tão explícita?
Porque não haviam tido a chance de votar em um candidato que representasse essa dimensão mais profunda e mais obscura de si mesmo. Essa dimensão ainda é, em grande medida, reprimida, porque vai contra os consensos humanitários internacionais, ou por que simplesmente é crime. Ele não pode ser machista, homofóbico, atacar os direitos humanos em público. Mas se regozija vendo seu representante fazê-lo impunemente.
Bolsonaro, desde o início de seu governo, foi truculento, incentivou à violência e contra as minorias. O país corre o risco de ter uma escalada como o fascismo ou o nazismo na Europa?
O fascismo, o nazismo, estão vivos não só no Brasil, mas em diversas partes do mundo. Mas o mundo de hoje é diferente do mundo do século passado. Nesse sentido, ele é outro, é diferente. Mas nem por isso menos perigoso. Ele se projeta em parte da população, especialmente a mais jovem, o que é, a um só tempo, intrigante e assustador. Ele se naturaliza no cotidiano do “brasileiro médio” a que me referi, nos discursos e práticas “banais” que passam despercebidas e impunes. Mas daí prever que uma onda fascista tome o governo do país é coisa distinta. Mesmo que aos trancos, nossas instituições ainda funcionam e têm conseguido evitar o pior.
Esse modus operandi do discurso do ódio e do inimigo oculto, foi uma estratégia política?
Foi e é uma estratégia política. Porque fazer política com base na guerra permanente demanda a existência de um inimigo permanente. Esse inimigo pode mudar, pode ser real ou imaginário, pode ser um adversário tradicional ou um desafeto de última hora, mas não pode deixar de existir. Se não tiver contra quem guerrear, não faz sentido manter a retórica da guerra. Mas isso pode se tornar uma armadilha. Ditadores em geral sempre se utilizam desse expediente. Sempre projetam inimigos e sempre estão em guerra contra eles. Mas a história mostra que a tendência é de ver inimigos cada vez mais próximos, nos círculos mais íntimos, até que, no fim, acaba por sobrar apenas o próprio ditador.
Apesar do caos, parcela significa da sociedade apoia o ex-capitão. De onde vem esse apoio? Da elite ou do cercadinho na portaria do Palácio da Alvorada?
Grande parte da elite econômica brasileira sempre foi ética e intelectualmente deplorável. Mesquinha, egoísta e interesseira. Nunca teve ideologia política. Seu compromisso não é com uma visão de mundo ou um projeto de sociedade, mas com os próprios ganhos. Até recentemente, essa elite estava ganhando dinheiro e, por isso, para ela, estava tudo ótimo. O quanto a pandemia que enfrentamos mudará isso, o tempo vai dizer, embora alguns sinais já comecem a aparecer. Mas não é só essa elite que apoia o governo. Como as pesquisas têm mostrado, cerca de um terço dos brasileiros o faz, e de forma consistente. Aí estão os tiozões do WhatsApp, de que falamos antes.
O que esperar dos próximos 31 meses do governo Bolsonaro?
Mais do mesmo, ou seja, que Bolsonaro continue sendo Bolsonaro. Ele não vai mudar, porque não sabe fazer política de outro modo. Os inimigos é que vão mudar. A essência continuará a mesma, com tendência de redimensionamento dos espaços ocupados no governo em favor da “ala ideológica”. Para manter o apoio dos 30% que o defendem a todo custo, vai precisar manter um diálogo de radicalismo, de forma direta e permanente com esse eleitorado.
Isso se torna um movimento cíclico e sem volta, que é realimentar a prática de enxergar inimigos cada vez mais perto. Em termos gerais, deveremos ter um governo cada vez mais radical, apoiado pela ala ideológica, substituindo inimigos da esquerda por antigos apoiadores que passarão a ser retratados como traidores. Aliás, como fazem todos os ditadores.
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Bolsonaro é o “lado mais nefasto da política brasileira”, diz sociólogo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU