06 Agosto 2018
“A modificação do n. 2.267 do Catecismo da Igreja Católica é o símbolo de um caminho de tradução da tradição, do qual devemos abordar muitas outras passagens igualmente delicadas: com paciência vigilante e audácia confiante.”
A opinião é do teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em Roma, do Instituto Teológico Marchigiano, em Ancona, e do Instituto de Liturgia Pastoral da Abadia de Santa Giustina, em Pádua, em artigo publicado por Come Se Non, 05-08-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A morte física e a morte social foram duas das penas mais clássicas com as quais os homens sentiam que estavam “restabelecendo a justiça”, fosse ela humana ou divina. Mesmo na tradição cristã, elas tiveram o seu espaço, assumindo o nome de “pena capital” e de “excomunhão”. Privar da vida o culpado ou excluí-lo da comunidade eclesial e civil eram as formas mais eficazes de sanção, das quais se valiam a força pública e a Igreja, e das quais pagaram o preço, respectivamente, Giordano Bruno e Dante Alighieri.
A sociedade tardo-moderna, a partir do fim do século XVIII, começou a reelaborar o conceito de sanção e superou, ao mesmo tempo, tanto a pena de morte quanto a excomunhão. A substituição da primeira pela “prisão perpétua” e da segunda por um “tempo determinado” de detenção constituem uma grande mudança, que a Igreja ainda não elaborou totalmente.
Por um lado, ela renunciou gradualmente à pena de morte, até a última formulação do Catecismo da Igreja Católica, mas, por outro, ainda parece canhestra em pensar “sanções alternativas à excomunhão”: ela permanece ligada a um modo rude e pouco elástico de pena, que se manifestou de forma muito significativa no debate posterior à Amoris laetitia, que atesta a escassa consciência da necessidade com que a Igreja deve sair da alternativa digital e desumana entre comunhão/excomunhão. Uma carência de reflexão jurídica sobre a sanção parece ter prejudicado gravemente a qualidade do debate sobre a “res familiaris”.
Essa breve consideração da história dos últimos séculos, em que a cultura civil e a cultura eclesial se diferenciaram profundamente, ajuda-nos a compreender o que está em jogo na “reformulação” do n. 2.267 do Catecismo da Igreja Católica: uma explícita evolução da doutrina sobre a “sanção capital”, que assinala uma complexa passagem de “tradução da tradição”, na qual o Evangelho e a cultura recalibram as linguagens, as formas de vida e as simbólicas fundamentais.
Seria ingênuo, no entanto, pensar que o que vale para a “pena de morte” também não deve valer para outros temas da tradição doutrinal cristã, chamados a profundas reformulações, a conversões e a “mudanças de paradigma” bastante desafiadoras. Além disso, é preciso dizer que o tema da “pena de morte” é relativamente fácil de abordar, porque tem consequências “externas” à vida estritamente eclesial.
Por outro lado, outros temas, sobre os quais somos chamados à mesma conversão, parecem muito mais complexos de enfrentar, porque têm consequências imediatas na vida eclesial cotidiana.
Gostaria de me deter rapidamente sobre três temas, a propósito dos quais o Papa Francisco reabriu corajosamente o debate: língua litúrgica, autoridade feminina e formação dos ministros pedem, nos próximos anos, uma corajosa escuta dos “sinais dos tempos” e a força de uma “revolução cultural”, comparável àquela que, há 500 anos, o Concílio de Trento foi capaz de determinar.
Quase 40 anos atrás, em um famoso texto de avaliação do Concílio Vaticano II publicado na revista Aggiornamenti Sociali em 1980, Karl Rahner afirmava duas coisas de grande relevância: o Vaticano II era o primeiro concílio verdadeiramente universal na história da Igreja; a assunção das línguas nacionais na celebração litúrgica mudaria a própria identidade da Igreja, recuperando a força das “Igrejas locais”. A afirmação é, como diz Rahner, do Vaticano II.
Na história recente da Igreja Católica, buscou-se todo pretexto para restabelecer uma dependência estrita das línguas nacionais ao latim. Finalmente, no ano passado, Francisco reiniciou o processo que deverá levar gradualmente ao reconhecimento da criatividade e da originalidade das línguas nacionais. Esse é um ponto qualificador daquela “evolução da doutrina”, que depende não de fatores “endógenos”, mas do desenvolvimento cultural e histórico, que não é absolutamente predeterminado pelo texto sagrado ou pela tradição, e que depende de uma fina hermenêutica dos sinais dos tempos.
Uma segunda frente de desenvolvimento da doutrina, sem dúvida, é o progressivo e irreversível reconhecimento da autoridade feminina também dentro da Igreja Católica. As resistências, a esse respeito, são bem mais fortes do que aquelas que se manifestaram em relação à “pena de morte”. Isso parece ser totalmente compreensível, mas a dinâmica deve ser reconhecida em toda a sua analogia.
O mundo tardo-moderno, que elabora pela primeira vez uma comunidade que se baseia não na “honra”, mas na “dignidade”, não só conta com a dignidade de cada cidadão/cristão, mas também com a sua possível autoridade. Reconhecer a autoridade não só aos homens, mas também às mulheres é uma consequência incontornável da sociedade aberta, da qual até mesmo o catolicismo poderá se enriquecer.
Traduzir as categorias clássicas do ministério – formuladas inevitavelmente em uma “sociedade da honra” e não em uma “sociedade da dignidade” – torna-se uma tarefa que só pode começar a sério introduzindo no ministério ordenado, pelo menos no seu grau menor (diaconato), sujeitos batizados do sexo feminino também.
O Concílio de Trento inventou os seminários. Antes, a formação era organizada de outro modo, muito mais inventividade e com diferenças abissais entre regiões e Igrejas diferentes.
À distância de quase 500 anos, aquelas grandes intuições mostram hoje os seus limites e as suas lacunas. As formas de vida das instituições, das famílias e dos sujeitos mudaram profundamente e exigem outras respostas e propostas. O Seminário, que até 100 anos atrás geralmente oferecia uma formação de alto perfil, hoje muitas vezes se reduziu a um saber marginal, que não se confronta com as grandes correntes culturais contemporâneas.
Esse é o fruto de um desenvolvimento cultural paralisado pelo confronto com a modernidade tardia e sobre o qual caiu a geada do antimodernismo, que ainda marca profundamente a linguagem e a cultura dos ministros e dos cristãos católicos. Aqui também é preciso um caminho novo, novos paradigmas e linguagens mais adequadas.
O Concílio Vaticano II nos introduziu nesse estilo do debate aberto, curioso e cheio de confiança com o novo mundo: devemos não só nos guardar em relação ao mundo tardo-moderno, mas também temos muitas coisas para aprender com ele. A modificação do n. 2.267 do Catecismo da Igreja Católica é o símbolo de um caminho de tradução da tradição, do qual devemos abordar muitas outras passagens igualmente delicadas: com paciência vigilante e audácia confiante.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Além da pena de morte: a evolução da doutrina. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU