01 Agosto 2018
O que está em jogo é um efetivo risco de desumanização e de contradição grave em relação à dignidade das mulheres e dos recém-nascidos. Mas, mesmo com todo esse vasto âmbito de questões efetivamente delicadas, o filho “se dá” na sua existência e merece ser considerado de maneira concreta e não abstrata. O espaço de discernimento dos juízes permanece incontornável. E esse reconhecimento de complexidade é, senão um bem, pelo menos um mal menor. Não ver ou não prover é uma falsa solução.
A reflexão é do teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em Roma, do Instituto Teológico Marchigiano, em Ancona, e do Instituto de Liturgia Pastoral da Abadia de Santa Giustina, em Pádua. O artigo foi publicado por Come Se Non, 29-07-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A modernidade tardia, como foi vivida pela Igreja Católica, pôs em primeiro plano a comunhão familiar como “tema de encontro-confronto” entre a tradição e o novo mundo que se descerrava: ele havia sido inaugurado pela Revolução Industrial e pelas revoluções políticas do fim do século XVIII e início do século XIX.
Não há dúvida de que o magistério católico, especialmente a partir de Pio IX, mas depois in crescendo de Leão XIII em diante, interpretou os casos da “união sexual” e da “geração filial” como decisivos para a identidade do cidadão católico da época.
Esse grande fenômeno de “abertura” da sociedade, que tocou profundamente a “comunhão matrimonial” e o “reconhecimento filial”, foi vivido de modo profundamente traumático e muitas vezes tematizado com os tons da defesa radical do “status quo”. A defesa da comunhão matrimonial e familiar, embora justificada pela grande novidade que surgia, corria o risco de se identificar substancialmente com a defesa do “ancien régime” e com a total desvalorização das novidades importantes que estavam nascendo na sociedade, nas consciências, nas formas de vida e também nas comunidades eclesiais.
O caso da “geração”, a esse respeito, foi totalmente exemplar: por longos séculos, a “forma canônica” – introduzida pelo Concílio de Trento em 1563 – também tivera uma função reguladora na distinção entre “filiação legítima” e “filiação natural”. A Igreja, com intuição profética, a partir de meados do século XVI em diante, tinha “legitimado” os filhos nos seus direitos mediante o grande artifício institucional da “forma canônica”. Ela tinha, de algum modo, “desnaturalizado” a relação, para garantir formas e autoridade. Mas, com o passar dos séculos, e com o crescimento de uma cultura jurídica liberal, a “legitimidade” da filiação tornou-se a apanágio dos novos Estados liberais.
A esse desenvolvimento não previsível, a Igreja reagia, a partir do fim do século XIX, ao longo de dois caminhos diferentes: por um lado, contrapondo lei a lei (daí o surgimento do Código de Direito Canônico em 1917); por outro, contrapondo natureza a artifício: Casti connubii, em 1930, e Humanae vitae, em 1968, indicam bem a força desse segundo caminho, de redescoberta do “natural” em relação ao “legítimo”.
Os casos dos “filhos” permaneceram profundamente condicionados por essas escolhas argumentativas e procedimentais. Por um lado, o filho natural ficou discriminado em relação ao filho legítimo: isso, para o “ancien régime”, era totalmente evidente e até recomendável, e a Igreja, de modo nunca unilateral, estava dentro desse modelo, sem exagerá-lo. Não apenas para receber a herança, mas também para ser ordenado padre, a condição de “filho natural” era considerada como impedimento. Um interesse social no patrimônio e na autoridade necessariamente discriminava a irregularidade.
Mas, mais tarde, as coisas também puderam se inverter. Diante de uma “legitimação” do filho de acordo com lógicas diferentes e novas, a referência à “natureza” tornou-se princípio para discriminar o filho legitimado e para pedir o seu não reconhecimento. As locuções “filho natural” ou “filho ilegítimo” dizem, sobre a mesma pessoa, duas perspectivas de leitura e de solução.
Por isso, considero que hoje poderia ser uma útil provocação falar de “filhos contranaturais”, cuja identidade corre o risco de ser simplesmente prejudicada pelo juízo sobre os comportamentos distorcidos ou até mesmo delituosos dos possíveis progenitores. Porque, na substituição da maternidade, não se devem excluir instrumentalizações, chantagens, pressões sobre terceiros, que permitam essa filiação “in persona alterius sexus absentis”.
O que está em jogo é um efetivo risco de desumanização e de contradição grave em relação à dignidade das mulheres e dos recém-nascidos. Mas, mesmo com todo esse vasto âmbito de questões efetivamente delicadas, o filho “se dá” na sua existência e merece ser considerado de maneira concreta e não abstrata. O espaço de discernimento dos juízes permanece incontornável. E esse reconhecimento de complexidade é, senão um bem, pelo menos um mal menor. Não ver ou não prover é uma falsa solução.
Gostaria de salientar que aqui atua, opondo uma compreensível resistência, uma “cultura da lei” de caráter abertamente pré-moderno e que merece ser considerada em seus prós e contras. Para entender o que está em jogo nessas representações bastante difundidas, quero passar por um exemplo esclarecedor para mim.
Há alguns anos, por ocasião da aprovação da lei que equiparava filhos legítimos, naturais e adotivos (2012), ouvi uma objeção proveniente de um professor de direito canônico que me iluminou muito. A lei, de fato, introduzia pela primeira vez o princípio de unicidade do estado de filho: isso, se avaliado do ponto de vista do filho, parece ser uma grande conquista, que superava séculos de pesada discriminação. Mas, se considerada do ponto de vista “pedagógico”, a novidade também podia parecer um grande risco.
Aqui deixo a palavra ao colega canonista que disse: “Assim, os progenitores não se casarão mais nem para regularizar a condição dos seus filhos”. Essa observação revela uma concepção da lei que a considera do ponto de vista exclusivamente “pedagógico”. As leis orientam e educam os cidadãos. Essa concepção, que é clássica, custa, em muitos casos, a considerar que a lei não só “orienta e molda o dever-ser”, mas também “reconhece e governa o ser”. Responde a um projeto, mas também governa os fatos.
Por trás dessa reação, vejo perfilar-se uma relação mais abrangente com o mundo tardo-moderno. De fato, hoje há tendências a raciocinar sobre a lei de modo apenas pedagógico. Que fique bem entendido: a perda de percepção da dimensão pedagógica da lei é precisamente uma das maiores cruzes do nosso tempo. Mas isso não implica que, para responder ao relativismo jurídico, todos nós devemos nos tornar fundamentalistas e esquecer a complexidade dos fenômenos.
Como recordava P. Sequeri há dois meses no jornal Avvenire, a geração é um dos pontos cegos da reflexão teológica sobre a família. Ela requer uma compreensão teológica nova, que leve em conta o horizonte trinitário e criatural do gerar, sem esquecer que as formas históricas da condição de filho não devem fazer com que pese sobre os filhos as eventuais culpas dos pais.
“Rabi, quem pecou, ele ou os seus pais, para que ele nascesse cego?” (Jo 9, 2), dizia o senso comum dos discípulos a propósito do cego de nascença. São Tomás de Aquino também permaneceu nessa lógica quando, a propósito dos “filhos ilegítimos” a serem excluídos da ordenação, escreve: “Quia obscuratur hominis claritas ex vitiosa origine, ideo ex illegitimo toro nati a susceptione ordinum repelluntur” (S. Th. Suppl. 39, 5, c). Algumas respostas eclesiais e também institucionais, diante de novas e complexas formas de experiência filial, permanecem nesses registros e correm o risco ou de não verem o fenômeno novo (“não existem filhos contranaturais”) ou de prejudica-lo em esquemas velhos (“não os reconhecemos para salvá-los do pecado”).
Eu não acho que essas respostas levam em conta a complexidade nova, à qual só podemos responder com novas categorias, capazes de reconhecer não só o mal a ser combatido, mas também o bem possível, que existe, e a comunhão diante da qual devemos sempre saber nos curvar. Se soubéssemos olhar para a tradição com os olhos de Philomena – a protagonista do famoso filme inglês – saberíamos conservar as razões dos filhos, mesmo quando derivam de formas de vida que, a nosso ver, deveriam ser censuradas ou condenadas. Devemos salvar os espaços de comunhão efetiva: mesmo quando não correspondem aos nossos ideais.
A realidade da comunhão é maior do que a Igreja e o Estado: é como Deus. A comunhão que vemos garantida pelo ancien régime era e continua sendo cheia de valores, mas também parece ser marcada por graves injustiças. As liberdades que as pessoas de hoje reivindicam, são bastante arriscadas e, não raramente, contraditórias, mas não são incapazes de descerrar verdadeiros espaços de comunhão, que devem ser reconhecidos e preservados.
O Evangelho – devemos sempre lembrar acima de tudo a nós mesmos – nunca é garantido apenas pelo passado. E nos convida a vigiar não acima de tudo contra o mal que sempre pode nos surpreender, mas sim em vista do bem, que vem como um ladrão, quando e de onde menos se espera.
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Legítimo, ilegítimo, natural, adotivo, contranatural: filhos e filhas entre ''ancien régime'' e Evangelho. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU