19 Abril 2016
"Delegando aos bispos individuais e aos párocos individuais o 'cuidado pastoral do discernimento na misericórdia', ele pôs as premissas para dar início a 'percursos temporais de integração'", afirma o teólogo italiano.
Imagem:www.diocesisvitoria.org |
Em sua interpretação de Amoris Laetitia, Grillo destaca ainda a percepção de uma “verdadeira novidade” no documento: “a renúncia a ‘resolver de cima’” as tensões familiares que chegam à Igreja e a “responsabilização dos ministros ‘próximos das famílias’” diante dos casos a serem tratados.
Segundo o teólogo, a Exortação deve ter um “primeiro impacto” justamente numa “acurada redefinição da relação entre pontificado e Igreja”, à medida que Amoris Laetitia sinaliza o “início de um início”. Mas para que essa “redefinição” se concretize, o Papa Francisco “vai precisar de uma Igreja que assuma a responsabilidade de não se deixar substituir pelo superior de plantão. Despojando-se de um poder objetivo e opositivo, o papa investiu a Igreja da autoridade do Espírito, como dom de misericórdia que não exclui ninguém”.
Andrea Grillo é filósofo e teólogo italiano, leigo, casado, especialista em liturgia e pastoral. Doutor em teologia pelo Instituto de Liturgia Pastoral, de Pádua, é professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, de Roma, do Instituto Teológico Marchigiano, de Ancona, e do Instituto de Liturgia Pastoral da Abadia de Santa Giustina, de Pádua. Também é membro da Associação Teológica Italiana e da Associação dos Professores de Liturgia da Itália.
A entrevista foi publicada na revista IHU On-Line, no. 483, cujo tema tema de capa é Amoris Laetitia e a ‘ética do possível’. Limites e possibilidades de um documento sobre ‘a família’, hoje.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Qual era sua expectativa, o que esperava do documento?
Foto: montfort.org.br
Andrea Grillo – Com base no que eu tinha lido durante o Sínodo e no que Francisco havia dito durante os trabalhos, eu tinha percebido a possibilidade de que o documento que encerraria a fase sinodal representaria uma passagem importante do Magistério deste pontificado. E, com efeito, trata-se de um texto de grande relevância, não só para compreender o desígnio pastoral de Francisco, mas também a história do Magistério católico na Igreja moderna e contemporânea. É uma reviravolta que realiza, pela primeira vez de modo tão pleno, o desígnio concebido por João XXIII [1] e continuado, ao menos em parte, apenas por Paulo VI. E é uma reação às tendências nostálgicas que caracterizaram uma parte do magistério de João Paulo II e uma grande parte do de Bento XVI [2].
IHU On-Line – Destaque entre três e cinco pontos que acha importante no documento e justifique-os.
Andrea Grillo – Eis os 5 pontos mais relevantes para mim:
a) o magistério não deve dizer tudo: esse antigo critério eclesial, que tinha sido superado com o Concílio Vaticano II, chamado no fundo a “dizer tudo de novo ao menos uma vez”, volta à tona agora na prática magisterial. O ministério magisterial restitui à dinâmica eclesial a “mediação da contingência”, sem pretender enquadrá-la de uma vez por todas em uma “lei geral”;
b) misericórdia e justiça não estão no mesmo plano, mas a misericórdia é a origem e o fim da justiça. Isso tem consequências nada pequenas não só sobre a “gestão das crises” matrimoniais, mas também sobre o modo de entender o fundamento e o fim da família. Ele não é confiado in primis aos direitos e aos deveres, mas à experiência de um dom;
c) Na história da Igreja, entrelaçam-se duas modalidades de relação com as crises: uma quer excluir, e a outra quer integrar. Desde o Concílio de Jerusalém, a segunda prevaleceu sobre a primeira, até fazer com que o sentido próprio da Igreja decorresse dessa capacidade de integração;
d) Uma profunda autocrítica sobre a relação da Igreja com o mundo moderno se torna – indiretamente – uma importante afirmação eclesiológica: a relação entre Igreja e mundo é redefinida não sobre o registro negação/afirmação dos valores (inegociáveis), mas sobre o do reconhecimento dos “sinais dos tempos”. De uma lógica metafísica/cognitiva/autoritária a uma lógica experiencial/afetiva/ministerial.
e) Conduzir tudo de novo ao encontro concreto com a Palavra de Deus como lugar do discernimento, evitando entregar o juízo à linguagem abstrata de normas gerais, que se tornam “pedras” e que traem o rosto materno da Igreja, enrijecendo-o na figura carrancuda de um juiz.
“A relação entre autoridades centrais e autoridades periféricas é profundamente modificada” |
IHU On-Line – Destaque três avanços, novas perspectivas que o documento traz. Por que considera esses avanços?
Andrea Grillo – Muda o magistério: a relação entre autoridades centrais e autoridades periféricas é profundamente modificada. O papa tinha aprendido a resolver as controvérsias mediante uma norma eclesial que reservava para si a decisão. Francisco utiliza a própria autoridade para investir bispos e presbíteros de autoridade. Ele passa da lógica do motu proprio [“por iniciativa própria”] à do motu comuni [“por iniciativa comum”]...
- Muda a relação entre pastoral e jurídico: a uma tradição que tinha reduzido o campo matrimonial a uma série de instituições jurídicas, quase erodindo todo espaço para o cuidado pastoral, responde-se com uma ação que está reequilibrando a via jurídica com a via pastoral. O espaço que se abriu parece ser “abissal”, mas, na realidade, é fruto não só da tradição, mas também do bom senso.
- Muda o relevo do sujeito, da consciência e da história: nesse percurso de abertura, o sujeito adquire um novo relevo “revelado”. Deus não está apenas na máxima exterioridade da lei, mas também na íntima interioridade da consciência. Deus como “intimior intimo meo” provoca uma reconsideração da relação entre exterioridade e interioridade, com uma recuperação da segunda. Poderíamos dizer que Francisco lê a Humanae vitae com os óculos da Dignitatis humanae. Cria uma nova síntese: Dignitatis humanae vitae!
IHU On-Line – Quais os limites do documento?
Andrea Grillo – Se devemos falar dos limites, devemos reconhecer que o documento tem a força de um “início”, ou, melhor, do início de um início. A sua profecia se choca, em alguns casos, com formulações e expressões ainda ligadas ao modelo que também está sendo superado. Algumas partes – por exemplo, as dedicadas às mulheres e às referentes às diversas formas de convivência – sofrem de uma linguagem ainda formulada em uma linguagem preconceituosa.
IHU On-Line – Quais devem ser os impactos do documento sobre: a) o pontificado; b) a Igreja?
Andrea Grillo – O primeiro impacto é justamente uma acurada redefinição da relação entre pontificado e Igreja. Como eu dizia, hoje, com a Amoris laetitia, estamos no início de um início. A lei não é mais apenas pedagogia, a consciência se torna passagem obrigatória, a contingência não é mais abandonada à mercê de uma “objetividade” tão idealizada quanto agressiva. O início de um início nunca é fácil. Aos olhos de alguns, sempre pode parecer como o início de um fim. Um magistério que confia ao discernimento concreto a comunhão eclesial é um magistério que readquire força, porque volta ao leito da sua função original: servir à fé batismal, que, no matrimônio, realiza o Reino de Deus, embora com todas as crises e os seus fracassos. Aceitar que o matrimônio pode fracassar não é fraqueza, mas força do sacramento e da fé. Saindo do modelo exclusivamente institucional de leitura do amor, o Papa Francisco faz uma operação de “tradução da tradição” de primeira qualidade. Mas ele vai precisar de uma Igreja que assuma a responsabilidade de não se deixar substituir pelo superior de plantão. Despojando-se de um poder objetivo e opositivo, o papa investiu a Igreja da autoridade do Espírito, como dom de misericórdia que não exclui ninguém.
IHU On-Line – Como a exortação Amoris Laetitia deve ser lida? Quais as semelhanças com Evangelii Gaudium? (em termos textuais, de estilo das fontes que cita, e de conteúdo)
Andrea Grillo – Agora podemos compreender que a Evangelii Gaudium é a premissa teórica e argumentativa da Amoris Laetitia. E quem dizia que a primeira não era “magistério” [3], agora, é forçado a permanecer nesse registro embaraçoso... Da alegria do Evangelho, brota a leitura do amor como alegria. E é o olhar evangelizado que pode captar o amor, lá onde ele se manifesta, como anúncio de graça. Devemos ler a Amoris laetitia como a experiência da alegria do evangelho no contexto das formas familiares do amor.
IHU On-Line – Quais são as reações ao documento por parte de jornalistas, teólogos, e dentro e fora da Igreja? E como o senhor lê esse silêncio pré-divulgação?
Andrea Grillo – Acho que é justo ler esse “altíssimo silêncio” como o fruto de uma espera compreensivelmente inquieta. Esse itinerário de três anos, lançado pelas próprias palavras do Papa Francisco, tinha criado um clima de grande expectativa (e, para alguns, de extremo temor). Isso justifica a tensão e a hesitação dos últimos dias. Mas não justifica o fato de que principalmente aqueles que temiam o documento agora pretendem interpretá-lo sem lê-lo!
IHU On-Line – Como interpretar a afirmação do Papa que, logo no início do documento, diz que “é necessário sair da estéril contraposição entre a ânsia de mudança e a aplicação pura e simples de normas abstratas”? E como essa ideia reaparece e é reforçada ao longo da exortação?
Andrea Grillo – Parece-me que se deve julgar essa afirmação de Francisco de dois modos, que não devem ser considerados alternativos: por um lado, ela expressa o desejo de trabalhar para unir e não para dividir. Busca mediar entre aqueles que queriam “tudo novo” e aqueles que esperavam a simples “confirmação do sistema”. Mas, por outro lado, parece-me que esta é a verdadeira novidade: ou seja, a renúncia a “resolver de cima” e a responsabilização dos ministros “próximos das famílias”. Se o papa tivesse “decidido tudo”, ele teria feito prevalecer o espaço sobre o tempo. Delegando aos bispos individuais e aos párocos individuais o “cuidado pastoral do discernimento na misericórdia”, ele pôs as premissas para dar início a “percursos temporais de integração”. Em tudo isso, não há apenas “diplomacia”, mas, acima de tudo, uma determinada leitura da Igreja e das suas dinâmicas mais delicadas.
“"Delegando aos bispos individuais e aos párocos individuais o 'cuidado pastoral do discernimento na misericórdia', ele pôs as premissas para dar início a 'percursos temporais de integração'"” |
IHU On-Line – De que forma as discussões que emergem durante todo o processo sinodal são organizadas no documento? O que essa exortação revela acerca desse Sínodo em específico?
Andrea Grillo – O papa se refere com respeito e com liberdade ao texto da primeira e da segunda Relatio [4]. E utiliza também o patrimônio de proposições que vêm de toda a tradição recente e menos recente. É significativo, no entanto, que, como já aparecia depois da conclusão de outubro passado, a marca do documento brota da contribuição de discursos e de intervenções que o Papa Francisco tinha realizado justamente por ocasião dos dois Sínodos. E não é arriscado afirmar que o melhor teólogo, o mais afiado e o mais límpido, em todos esses três anos, foi precisamente o Papa Francisco.
IHU On-Line – Que conceito de família é possível se apreender a partir da leitura da exortação? Em que medida atualiza o conceito da Igreja sobre o matrimônio? Como avalia o tratamento dado as ditas famílias não convencionais (uniões homoafetivas, união de casais separados...)?
Andrea Grillo – Ao julgar a “imagem de família”, devemos reconhecer que, pela primeira vez, de modo pleno, depois de 140 anos, o Magistério papal, depois de ter cumprido todo o longo percurso sinodal, depois de escutar, dialogar, propor, acolher, selecionar, diz uma palavra sobre o amor e sobre a família, tenta sair do estereótipo “reativo” que o catolicismo se fez impor pela história política da Europa. Só podia sair do estereótipo um papa não europeu. Apenas o primeiro papa americano, apenas o primeiro papa “filho” do Concílio podia ter a liberdade e a força para sair do “complexo de perseguição” que, sobre o matrimônio, tínhamos amadurecido de Leão XIII [5] em diante.
O matrimônio, de fato, há 140 anos, não significava, acima de tudo, “amor de casal”, mas sociedade, geração, educação. E, então, a contenda era: quem tem a competência sobre o matrimônio? O Estado usurpador ou o Supremo legislador, único legitimo? Essa herança também tinha permanecido 50 anos depois, quando, com Pio XI [6], o tema da contenda tinha se tornado: quem tem o poder de gerar? Deus, naturalmente, ou o homem, artificialmente? E isso também se acrescentou à contenda anterior, até o Vaticano II. Sobre a família, as palavras da Gaudium et spes [7], embora inspiradas nos textos anteriores, marcaram época, mas por pouco tempo. A Humanae vitae voltou a polarizar a tensão, com grande efeito midiático, mas com pouca eficácia prática. Por fim, chegou a Familiaris consortio, que começou a reconhecer a sociedade diferenciada, aceitando que a comunhão eclesial podia ser diferente da comunhão sacramental. Mas ainda não tinha os instrumentos para responder a essa nova condição: ela sabia reconhecê-la, mas permanecia embaraçada sobre as formas concretas da resposta. Ela reconhecia o problema, mas respondia como se não o reconhecesse. Agora, Francisco pôde reconhecer que a “família natural” não é garantia da competência eclesial, mas forma original do mistério de Deus no ser humano.
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Andrea Grillo – A renúncia a pôr uma “nova lei geral” – explicitada pelo Papa Francisco – significa que é a Amoris laetitia que redefine a linguagem e a disciplina da Familiaris consortio e não vice-versa! Como não faltaram aqueles que – de modo tão arriscado quanto surpreendente – ousaram tentar inverter as coisas, é preciso reiterar que, ao menos nesse plano, a Amoris laetitia está inserida no leito normal do magistério eclesial, com a sua hierarquia das fontes. E é singular, nesse caso, que sejam homens da hierarquia a não reconhecerem a hierarquia. Para contestar seriamente tudo isso, se deveria poder provar ou que a Amoris laetitia não é uma exortação apostólica pós-sinodal (exatamente como a Familiaris consortio, mas de 35 anos depois), ou que a Familiaris consortio, na realidade, é um texto de 2019! Mas haveria uma alternativa ulterior: conseguir demonstrar, com oportuna retrodatação, que a Amoris laetitia é um texto de 1980, de modo que a Familiaris consortio, de 1981, possa se tornar posterior e, portanto, superior na hierarquia das fontes... Ficção por ficção, esta, ao menos, teria uma aparência própria de dignidade.
Entrevista de João Vitor Santos|Edição Patricia Fachin | Tradução de Moisés Sbardelotto
Notas:
[1] Papa João XXIII (1881-1963): nascido Angelo Giuseppe Roncalli. Foi Papa de 28-10-1958 até a data da sua morte. Considerado um papa de transição, depois do longo pontificado de Pio XII, convocou o Concílio Vaticano II. Conhecido como o "Papa Bom", João XXIII foi canonizado em 2013 pelo Papa Francisco. (Nota da IHU On-Line)
[2] Bento XVI, nascido Joseph Aloisius Ratzinger (1927): Foi papa da Igreja Católica e bispo de Roma de 19 de abril de 2005 a 28 de fevereiro de 2013, quando oficializou sua abdicação. Desde sua renúncia é Bispo emérito da Diocese de Roma, foi eleito, no conclave de 2005, o 265º Papa, com a idade de 78 anos e três dias, sendo o sucessor de João Paulo II e sendo sucedido por Francisco. (Nota da IHU On-Line)
[3] Confira o texto "Amoris Laetitia" não é magistério: a linha de resistência do cardeal Burke, publicado nas Notícias do Dia, de 13-04-2016, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU. (Nota da IHU On-Line)
[4] A primeira Relatio é de 2014 e pode ser lida em Português.. A segunda é de 2015. (Nota da IHU On-Line)
[5] Leão XIII (1810-1903): nascido Vincenzo Gioacchino Raffaele Luigi Pecci . Foi Papa de 20 de fevereiro de 1878 até a data da sua morte. Notabilizou-se primeiramente como popular e bem sucedido Arcebispo de Perguia, o que conduziu a sua nomeação como Cardeal em 1853. Ficou famoso como o "papa das encíclicas". A mais conhecida de todas, a Rerum Novarum, de 1891, sobre os direitos e deveres do capital e trabalho, introduziu a ideia da subsidiariedade no pensamento social católico. (Nota da IHU On-Line)
[6] Papa Pio XI (1857-1939): nascido Ambrogio Damiano Achille Ratti, foi Papa entre 6 de fevereiro de 1922 e a data da sua morte. (Nota da IHU On-Line)
[7] Gaudium et Spes: Igreja no mundo atual. Constituição pastoral, a 4ª das Constituições do Concílio do Vaticano II. Trata fundamentalmente das relações entre a igreja e o mundo onde ela está e atua. Trata-se de um documento importante, pois significou e marcou uma virada da Igreja Católica "de dentro" (debruçada sobre si mesma), "para fora" (voltando-se para as realidades econômicas, políticas e sociais das pessoas no seu contexto). Inicialmente, ela constituía o famoso "esquema 13", assim chamado por ser esse o lugar que ocupava na lista dos documentos estabelecida em 1964. Sofreu várias redações e muitas emendas, acabando por ser votada apenas na quarta e última sessão do Concílio. O Papa Paulo VI, no dia 7 de dezembro de 1965, promulgou esta Constituição. Formada por duas partes, constitui um todo unitário. A primeira parte é mais doutrinária, e a segunda é fundamentalmente pastoral. Sobre a Gaudium et spes, confira o nº 124 da IHU On-Line, de 22-11-2004, sobre os 40 anos da Lumen Gentium, intitulada A igreja: 40 anos de Lumen Gentium. Leia também: A Gaudium et Spes 50 anos depois e o Papa Francisco como o parteiro de uma igreja global. Conferência de Massimo Faggioli publicada nas Notícias do Dia, de 21-05-2015. (Nota da IHU On-Line)
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Amoris laetitia e a superação de contraposições estéreis. Entrevista especial com Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU