03 Agosto 2018
Em decisão histórica, o papa Francisco declarou nesta quinta-feira que a pena de morte é inadmissível quaisquer que sejam as circunstâncias.
A medida foi histórica tanto pelo teor quanto pelo formato. Pelo teor, porque até então o Vaticano sempre procurou não interferir nessa espinhosa questão, entendendo que a decisão de adotá-la cabia aos governos dos países. Pelo formato, porque não foi uma simples declaração, mas uma alteração no catecismo da Igreja Católica, o compêndio que reúne a exposição da fé e da doutrina do catolicismo.
A reportagem é de Edison Veiga, publicada por BBC Brasil, 02-08-2018.
A revisão foi anunciada no Vaticano. O papa aprovou a nova redação do item 2267 do catecismo com o prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, cardeal Luís Ladaria.
"A Igreja ensina, à luz do Evangelho, que a pena de morte é inadmissível, porque atenta contra a inviolabilidade e a dignidade da pessoa, e se empenha com determinação por sua abolição em todo o mundo", disse o papa.
Significa que, de hoje em diante, a Igreja prega oficialmente contra a pena de morte. "A partir de agora, quem for a favor da pena de morte está claramente ao contrário do que a Igreja ensina", resume o vaticanista Filipe Domingues. O novo texto do catecismo diz que "a dignidade da pessoa não é perdida nem depois de ter cometido crimes gravíssimos."
O cardeal Ladaria se incumbiu de remeter uma carta informando aos bispos de todo o mundo a respeito da alteração. No texto, ele diz que a mudança é uma evolução natural do ensinamento da Igreja.
"Durante muito tempo, o recurso à pena de morte, por parte da legítima autoridade, era considerada, depois de um processo regular, como uma resposta adequada à gravidade de alguns delitos e um meio aceitável, ainda que extremo, para a tutela do bem comum", diz comunicado da Santa Sé.
"No entanto, hoje, torna-se cada vez mais viva a consciência de que a dignidade da pessoa não fica privada, apesar de cometer crimes gravíssimos. Além do mais, difunde-se uma nova compreensão do sentido das sanções penais por parte do Estado. Enfim, foram desenvolvidos sistemas de detenção mais eficazes, que garantem a indispensável defesa dos cidadãos, sem tirar, ao mesmo tempo e definitivamente, a possibilidade do réu de se redimir."
"O que houve foi uma mudança real naquilo que a Igreja já vinha defendendo sobre a pena de morte. Não foi uma mudança brusca, foi uma mudança gradual, porque já os papas João Paulo II e Bento XVI eram contrários à pena de morte e falavam isso", contextualiza o vaticanista Domingues. "Mas o catecismo ainda dizia que, em alguns casos, quando para a defesa do bem comum, para proteger a sociedade e quando não houvesse nenhum outro recurso, a pena de morte seria admissível, após a certeza de que a pessoa era culpada."
Domingues ressalta que a Igreja não defendia a pena de morte, mas admitia sua aplicação em determinados casos. "Agora, está claramente explícito que, para a Igreja, a pena de morte é inadmissível. Essa palavra é muito forte. Inadmissível porque se trata de um ataque à dignidade da vida humana. E o novo texto ainda diz que a Igreja trabalha com determinação para a abolição da pena de morte em todo o mundo", analisa o vaticanista. "Ou seja: a Igreja passa de uma posição um pouco passiva para uma posição muito diferente: 'isto é inadmissível e vamos fazer o possível para que a pena de morte acabe'."
Coordenador do Núcleo Fé e Cultura da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, o sociólogo e biólogo Francisco Borba Ribeiro Neto contextualiza que, até então, havia uma preocupação da Igreja em não interferir em decisões internas dos países.
"A posição da Igreja, contrária à pena de morte, já é antiga na tradição. O problema é que havia a ideia de que a pena de morte estava dentro das legislações nacionais, e a Igreja não poderia se intrometer nas opções políticas de cada país", explica.
"O grande passo de Francisco, em seu papado, é essa preocupação em deixar mais claro certos princípios que estão presentes na doutrina mas que foram, de certa forma, pouco explicitados - por medo, para evitar que a Igreja parecesse estar intervindo em questões do mundo laico, por exemplo", afirma Ribeiro Neto.
Ao longo da História, a pena de morte chegou a ser endossada por antigos teólogos. Santo Agostinho (354-430) certa vez teorizou que não haveria contradição entre a pena de morte e o mandamento "não matarás".
De acordo com ele, como o carrasco seria apenas "uma espada na mão de Deus", ele não estaria violando o mandamento, já que estaria agindo conforme a autoridade do Estado. Santo Ambrosio (340-397) não condenou mas recomendou que os membros do clero não encorajassem nem executassem a pena capital.
São Tomás de Aquino (1225-1274) argumentava que havia menções à pena de morte nas escrituras, o que justificaria a medida extrema. Papa Inocêncio (1160-1216) declarou que "o poder secular pode, sem pecado mortal, exercer juízo de sangue, desde que o castigo seja empregado com justiça e não por ódio, com prudência e não por precipitação".
Na versão de 1566, o catecismo romano dizia que Deus havia confiado às autoridades civis o poder "sobre a vida e a morte".
Uma curiosidade histórica é que o Vaticano, cujo chefe de Estado é o papa, autorizava a pena de morte em seus domínios entre 1929 e 1969. Tal pena era reservada a alguém que tentasse assassinar o líder máximo da Igreja Católica – no período, tal lei nunca foi aplicada.
Essa medida foi instituída pelo Tratado de Latrão, de 1929, em uma cópia da legislação italiana da época no que dizia respeito a tentativa de assassinato do chefe de Estado da Itália. "Considerando que a pessoa do Sumo Pontífice é sagrada e inviolável, a Itália declara qualquer tentativa contra a Sua pessoa ou qualquer incitamento para cometer tal tentativa de ser punível pelas mesmas penas que todas as tentativas semelhantes e incitamentos para cometer o mesmo contra a pessoa do Rei."
Enquanto vigorou a lei, não houve registro de tentativa de assassinato do papa. Quando o turco Mehmet Ali Agca tentou assassinar João Paulo II, em 1981, ele acabou julgado por um tribunal italiano – e não pelo Vaticano.
Foi o papa Paulo VI, em 1969, que removeu o estatuto da pena capital da legislação do Vaticano. As revisões foram consequência do Concílio Vaticano II, encerrado quatro anos antes.
No passado, entretanto, a Igreja Católica também condenou pessoas à morte. E não só na época medieval, com as famosas perseguições do Tribunal da Santa Inquisição, criado no século 13 - que condenava aqueles que não professassem a fé católica ou representassem ameaça às doutrinas. Sobre a Inquisição, de acordo com estudo feito pela própria Igreja em 2004, o país onde o tribunal eclesiástico fez mais vítimas foi a Alemanha - 25 mil execuções.
Mais recentemente, o mais famoso carrasco da Santa Sé foi Giovanni Battista Bugatti, que viveu entre 1779 e 1869 e trabalhou na função entre 1796 e 1865. Ele era conhecido como Mastro Titta - corruptela de "maestro di giustizia", ou mestre de justiça.
Oficialmente, ele realizou 516 execuções - decapitava os condenados com um machado ou realizava enforcamentos.
No livro Pictures From Italy, de 1846, o escritor britânico Charles Dickens (1812-1860) relata uma de suas execuções.
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Por que a Igreja Católica decidiu condenar a pena de morte – e por que não havia feito isso antes - Instituto Humanitas Unisinos - IHU