O modo de governar do presidente Bolsonaro em seu primeiro ano à frente da Presidência da República foi “peculiar”, “inovador” e mostra que há uma divisão de papéis dentro do governo, diz o cientista político Roberto Dutra à IHU On-Line. “O ponto mais importante desse primeiro ano de governo é justamente a força desse modelo de fazer política, em que o governo encontra na guerra cultural o seu principal instrumento de mobilização, em uma estratégia que parece ser uma continuidade da campanha eleitoral”, pontua.
Enquanto o próprio presidente se encarregou de manter a base eleitoral do bolsonarismo politicamente mobilizada, com discursos contra o petismo e o esquerdismo, e usou o cargo para, “em certas ocasiões, encurralar o Congresso”, o ministro Paulo Guedes foi responsável por perseguir a agenda real do governo. “A política econômica tem sido blindada das confusões e da guerra cultural que Bolsonaro promove, como se a guerra cultural fosse uma espécie de distração do público, enquanto uma outra política econômica e institucional é conduzida por Paulo Guedes em uma coalizão de interesses que envolvem outros setores e personagens, como o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, e setores do empresariado”, explica.
De acordo com Dutra, apesar de ter assumido a presidência sob tensão e ter recebido inúmeras críticas ao longo de 2019, seja por conta das polêmicas ou das pautas propostas, o governo Bolsonaro foi “muito mais corajoso e efetivo do que todos os governos do PT, que não foram capazes e não tiveram celeridade, efetividade e coragem política para conduzir a sua agenda de reformas e de usar seu capital político em busca da agenda que seria aquela da convicção política do partido”. Segundo ele, as soluções econômicas propostas pelo ministro da Economia estão “quase todas condenadas ao fracasso” por conta da visão ideológica em que são fundamentadas. No entanto, reconhece, “muitos dos problemas que o ministro e sua agenda econômica buscam enfrentar são problemas reais, para os quais os governos passados não ofereceram solução”.
Ao contrário de Guedes, o ministro Sérgio Moro, principal representante da Lava Jato no governo, “é um adversário do presidente”, na avaliação de Dutra. Isso ficou visível, exemplifica, no boicote das propostas do ministro junto à presidência. “O governo não entra em bola dividida pelo Moro”, afirma. Na mesma linha, frisa, embora o presidente tenha sido eleito com a bandeira do combate à corrupção, “em termos reais, a agenda do combate à corrupção é traída pelo próprio presidente na prática”.
A ala militar, que também foi fonte de preocupação por parte de alguns setores da sociedade no início de 2019, ressalta, perdeu espaço no governo. “Parece que Bolsonaro armou uma arapuca para os militares: a alta cúpula militar tem muito menos peso simbólico e real no governo e no bolsonarismo do que o baixo clero militar”, comenta.
Na entrevista a seguir, concedida por telefone à IHU On-Line, Roberto Dutra faz um balanço do primeiro ano do governo e comenta as possíveis articulações políticas para as eleições municipais deste ano, que terá como novidade o fim das coligações proporcionais. “As alianças políticas serão dificultadas, mas possivelmente haverá um esforço de superar a fragmentação. Tem um esforço dos partidos de centro-esquerda — PDT, PSB, PCdoB, PV e Rede — de construírem uma aliança a nível municipal que, se der certo, se projetaria para nível nacional em 2022. Esse cenário de tentativa de desfragmentação da esquerda em direção ao centro é algo que temos que observar; ele pode funcionar ou não, mas se funcionar, será importante para termos um cenário menos fragmentado em 2020”, assegura.
Roberto Dutra (Foto: João Vitor Santos | IHU)
Roberto Dutra Torres Junior é doutor em Sociologia pela Humboldt Universität zu Berlin e mestre em Políticas Sociais pela Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro – UENF. É professor da UENF e ex-diretor do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas – Ipea. É autor de, entre outros, Funktionale Differenzierung, soziale Ungleichheit und Exklusion (Konstanz: UVK Verlag, 2013).
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Que balanço geral o senhor faz do primeiro ano do governo Bolsonaro, considerando suas promessas de campanha e o modo do presidente de fazer política? Qual é o saldo desse primeiro ano?
Roberto Dutra – Como Marcos Nobre tem ressaltado, Bolsonaro é inovador no modo de fazer política e isso tem que ser levado em conta para avaliarmos o primeiro ano do governo dele. É um modo peculiar de fazer política, porque a estratégia de Bolsonaro parece ser a de manter a mobilização de um terço do eleitorado, que é o eleitorado mais fiel a ele.
O ponto mais importante desse primeiro ano de governo é justamente a força desse modelo de fazer política, em que o governo encontra na guerra cultural o seu principal instrumento de mobilização, em uma estratégia que parece ser uma continuidade da campanha eleitoral. Exemplos disso são os constantes ataques à esquerda, a moralização e a transformação do adversário em inimigo. Em dezembro, um dos pontos mais significativos disso foram os ataques de Bolsonaro ao educador Paulo Freire por todo seu simbolismo para a esquerda.
A mobilização desse um terço do eleitorado não é feita pelo anúncio de que as propostas de governo estão sendo realizadas. Então, a estratégia política de Bolsonaro é uma forma de esconder que ele, na verdade, não governa do modo como prometeu. Governar, para o presidente, não é em primeiro lugar implementar políticas públicas ou cumprir metas da campanha, mas manter a guerra cultural. De outro lado, do ponto de vista do governo parece haver uma divisão do trabalho: cabe a Bolsonaro a estratégia de manter uma base de apoio mínima mobilizada, que pode ser suficiente para ele chegar ao segundo turno em 2022, enquanto, ao mesmo tempo, o país é governado efetivamente pelo ministro Paulo Guedes. A única agenda de governo que avançou, e avançou bastante, foi a econômica, com a reforma da previdência e outras reformas administrativas e microeconômicas. A política econômica tem sido blindada das confusões e da guerra cultural que Bolsonaro promove, como se a guerra cultural fosse uma espécie de distração do público, enquanto uma outra política econômica e institucional é conduzida por Paulo Guedes em uma coalizão de interesses que envolvem outros setores e personagens, como o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, e setores do empresariado.
Não é que Bolsonaro não governa; ele governa, mas o governar de Bolsonaro é manter uma base mobilizada politicamente, transferindo a condução das políticas públicas e a agenda do governo real para os seus ministros mais poderosos, como o Guedes. Sérgio Moro é outro caso: ele é um adversário do presidente dentro do governo. A agenda do Moro foi boicotada em grande medida, enquanto a do Guedes foi promovida. Embora Bolsonaro precise da agenda do combate à corrupção, ele não entregou o que prometeu: basta ver a atuação do ministro Sérgio Moro para blindar os filhos do presidente, para barrar qualquer investigação envolvendo a família do presidente, assim como a investigação do caso Marielle, que pode envolver com maior ou menor gravidade o bolsonarismo. Em termos reais, a agenda do combate à corrupção, que foi uma das mais importantes na eleição de Bolsonaro, é traída pelo próprio presidente na prática, mas funciona como um discurso e uma fonte de moralização constante que o presidente precisa para se manter forte e mobilizar seu eleitorado cativo.
IHU On-Line - Na última entrevista que nos concedeu, o senhor disse que o Ministério da Economia era uma espécie de governo paralelo. Alguns avaliam que o ministro tem aprofundado o modelo econômico neoliberal sem levar em conta as demandas sociais, outros defendem que as reformas feitas são necessárias para modernizar o país. Que balanço faz da condução das políticas econômicas nesse primeiro ano e que medidas foram positivas e negativas?
Roberto Dutra – Um ponto positivo como um todo é justamente a capacidade política do ministro Paulo Guedes de conduzir a sua agenda de reformas. O governo Bolsonaro nesse ponto é muito mais corajoso e efetivo do que todos os governos do PT, que não foram capazes e não tiveram celeridade, efetividade e coragem política para conduzir a sua agenda de reformas e de usar seu capital político em busca da agenda que seria aquela da convicção política do partido. Guedes tem convicção política da sua agenda e consegue persegui-la, e o governo tem celeridade e efetividade política nesse processo. Isso é positivo porque, ao contrário do que muitos esperavam, demonstra que o governo não está parado. Ele caminha numa direção que foi, sim, referendada nas urnas. É claro que Bolsonaro não prometeu nenhum programa econômico, mas todo mundo sabia que estava votando em um candidato de direita e aderindo a uma visão neoliberal de economia e de Estado.
Quase todas as soluções propostas são falsas porque estão presas a uma visão de mundo ideológica e desconectada da realidade, que é o neoliberalismo da escola de Chicago. A capitalização da previdência, por exemplo, é uma tragédia, porque está baseada na premissa falsa de que, deixados a sua própria sorte, os pobres vão capitalizar a sua própria renda e planejar o seu futuro sem a ajuda do Estado. Além de ser uma ideia perversa, é uma ideia estúpida, porque ignora como os pobres se comportam efetivamente. O último prêmio Nobel de Economia escreveu um artigo sobre como os pobres se comportam na economia, como é a vida econômica e real dos pobres. Ao ignorar isso, Guedes faz uma política econômica ideológica e implica que as soluções sejam quase todas condenadas ao fracasso. No entanto, muitos dos problemas que o ministro e sua agenda econômica buscam enfrentar são problemas reais, para os quais os governos passados não ofereceram solução. A questão da previdência é um problema real; não dá para ignorar que a reforma é necessária, não só por causa do déficit da previdência, mas, sobretudo, por uma questão de justiça redistributiva. A previdência brasileira é uma máquina de produção de desigualdade. Mesmo que ela não fosse deficitária, ela deveria ser reformada por uma questão de justiça.
Outra agenda fundamental do governo é a de rediscutir o pacto federativo. O Estado brasileiro tem um problema fundamental com o federalismo: municípios e estados têm atribuições de implementação de políticas públicas e não têm autonomia financeira e capacidade estatal para realizar as obrigações constitucionais que o federalismo lhes impõe. A proposta de Paulo Guedes é transferir a responsabilidade política quase que total em relação às políticas públicas para os municípios e isso não funciona, sobretudo porque, com isso, ele ignora as desigualdades regionais enormes que precisam ser levadas em conta. No entanto, ele coloca o tema na agenda. Na eleição passada, o único candidato que colocou esse tema na agenda foi o Ciro Gomes; durante os governos anteriores, essa questão não foi enfrentada. O governo Fernando Henrique, com sua reforma do Estado, institucionalizou o modelo de relação federativa, mas não resolveu o problema.
Paulo Guedes tem o mérito de recolocar essa questão na agenda, mas a agenda econômica do governo está calcada em premissas ideológicas oriundas do colonialismo mental da economia política ideologizada, que ele traz da sua experiência no Chile e que acredita em pressupostos falsos, como a ideia de que você vai ficar rico com o dinheiro dos outros. Nunca, nenhum país conseguiu alavancar o processo de crescimento com poupança externa. Essa crença na doutrina da confiança financeira, de que vamos produzir a disciplina fiscal, que vai gerar confiança financeira e ela vai gerar investimento, é equivocada. É como se, ao produzir confiança, automaticamente produzíssemos investimento, crescimento e desenvolvimento. Isso é um conto de fadas; nenhum país se desenvolveu assim.
O ajuste fiscal, no entanto, é uma agenda necessária não para adquirir confiança financeira e enriquecer com o dinheiro dos outros, mas para produzir a capacidade de dizer não às elites financeiras. O Estado tem que se reformar e se tornar saneado do ponto de vista fiscal para se tornar mais autônomo em relação às elites rentistas que o capturam. Só assim o Estado poderá promover o desenvolvimento para além e contra os interesses dos ditos investidores. Eu parto de uma visão completamente diferente dessa visão ideologizada do Guedes. Economistas liberais como André Lara Resende e Armínio Fraga têm apontado o viés ideologizado e irrealista do ajuste fiscal do governo nessa crença de que o governo tem que buscar o déficit zero, como se isso fosse uma doutrina sagrada.
IHU On-Line – Analistas apontam que três alas compõem o governo Bolsonaro desde o início: a militar, que iniciou com oito dos 22 ministérios e agora estão à frente de aproximadamente 2.500 cargos de chefia ou assessoramento; a ideológica, influenciada por Olavo de Carvalho; e a neoliberal, que o senhor comentou anteriormente. Qual foi a atuação e a influência de cada uma dessas alas no decorrer do primeiro ano do governo? Elas continuam tendo o mesmo peso ou algumas foram perdendo espaço no decorrer do ano?
Roberto Dutra – Há uma relação de dependência: o governo depende dessas três alas. A agenda de políticas públicas concreta é da ala neoliberal, a guerra cultural é uma incumbência da ala ideológica e a ala militar parece desempenhar um papel importante na ocupação dos cargos administrativos, cumprindo o papel substitutivo ao partido. Bolsonaro, ao contrário de Trump, não tem um quadro do partido para ocupar o governo. Então, ele precisa dos militares para isso – não tanto dos militares de maior renome público, mas dos que podem subir do segundo escalão, das secretarias executivas e diretorias das estatais e ministérios.
O peso político e decisório dessas três alas na cúpula do governo parece que se alterou um pouco. Parece que os militares dessas três alas foram os que perderam maior poder, com a demissão do Santos Cruz e com o reforço que Bolsonaro teve nas outras duas alas. Olavo de Carvalho perdeu poder aparentemente, mas não perdeu o poder na prática, tanto é que agora a TV Brasil vai, pelo que se sabe, ceder espaço para a difusão das suas ideias – mas ele é apenas um dos personagens da guerra cultural. Na medida em que o governo tem na guerra cultural e no neoliberalismo as suas principais agendas, é natural que essas alas sejam as mais fortes. Parece que Bolsonaro armou uma arapuca para os militares: a alta cúpula militar tem muito menos peso simbólico e real no governo e no bolsonarismo do que o baixo clero militar. A polícia militar e o militarismo difuso e miliciano estão presentes no baixo clero militar das polícias militares no estado do Rio de Janeiro, mas não só. Há uma base de apoio muito forte e esse militarismo miliciano é mais importante para o governo do que a ala militar, oficialmente falando.
IHU On-Line - Na primeira entrevista que nos concedeu, o senhor mencionou a violência e a segurança como fenômenos que precisavam ser tratados com seriedade pela esquerda. O governo tem discursado em torno dessas pautas. Como avalia a agenda de Moro no tratamento dessas questões e do governo em geral? Há uma confluência entre as visões do ministro e do governo de como enfrentar esses problemas?
Roberto Dutra – É uma agenda simbólica e existe um processo real de diminuição dos homicídios em vários estados, como no Rio de Janeiro, e o governo busca capitalizar simbolicamente isso como se a redução tivesse alguma coisa a ver com políticas públicas da violência, quando não tem nada a ver. A agenda da violência é tratada pelo governo Bolsonaro como uma agenda de guerra cultural e na chave da lei e da ordem. Moro, no entanto, não é um aliado; é um adversário dentro do governo. Mas como a agenda é simbólica, Moro pode ficar com a sensação simbólica de que a agenda dele está sendo encaminhada, mesmo que ela esteja travada, como tem sido. A questão do excludente de ilicitude é fundamental aí. A ideia é de que a violência vai ser reduzida com a polícia tendo mais liberdade para matar sem controle. É obviamente uma agenda simbólica que não tem a ver com a redução da violência, mas com uma permissividade para que preconceitos e formas de discriminação social, como ódio de classe e raça, tenham vazão nesse segmento do baixo clero, como nas polícias militares dos estados, como ocorreu em Paraisópolis.
A agenda do governo para a violência é um desastre e não tem a menor orientação técnica, não tem o menor compromisso com a pesquisa científica, com o Fórum de Segurança Pública. O ministro Moro é tão ou mais obtuso que Bolsonaro do ponto de vista de basear sua ação numa visão falsa da realidade sobre a violência. Como não há uma agenda e uma alternativa progressista capaz de competir com o governo Bolsonaro nessa questão da violência, a sua agenda retórica de “estamos tentando mudar a lei para endurecer a vida dos bandidos” pode ter efeitos positivos do ponto de vista político para ele.
O maior concorrente do Bolsonaro na agenda da violência parece ser o Witzel, com sua política genocida – para usar um termo exagerado. Ele parece acenar para uma maior racionalidade e maior apreço pela técnica para se distanciar de Bolsonaro nesse aspecto. Tanto é que Bolsonaro tem mostrado uma preocupação enorme com o governador do estado do Rio de Janeiro, que pode cavar um espaço na extrema direita ao propor endurecer a vida dos bandidos, mas ouvindo o outro lado. Essa é uma agenda na qual não há propostas; é uma cortina de fumaça simbólica, em que o tema da violência é tragado pela guerra cultural.
IHU On-Line - Outra pauta do governo Bolsonaro na campanha era romper com governos de coalizão. Que avaliação faz da relação que o governo teve com o Congresso no ano passado para aprovar suas pautas?
Roberto Dutra – É interessante que o governo conseguiu passar suas principais pautas e Moro foi boicotado, porque o governo não fez esforço para que ele fosse promovido; o boicote foi do próprio governo. Paulo Guedes, de outro lado, não teve grandes problemas com a sua reforma. Então, este é um governo que consegue ter uma agenda de adesão ao Congresso, mas que não é uma agenda propriamente do Bolsonaro em si, mas sim do grande capital. O governo se dá ao luxo de promover enfrentamentos explícitos com o Congresso numa atitude de coragem que faltou, inclusive, aos governos petistas que tinham muito mais popularidade.
Nos governos petistas, foi passada aquela ideia de que, sem grande maioria no Congresso, não era possível enfrentar e promover uma agenda de políticas públicas. Bolsonaro consegue usar bem o cargo de presidente para, em certas ocasiões, encurralar o Congresso, que permanece com a popularidade muito baixa. Então, é um governo que tem sabido se relacionar com o Congresso naquilo que parece ser a sua agenda realmente séria. Quando é em relação a Moro, sempre observamos que há um total distanciamento: o governo não entra em bola dividida pelo Moro.
IHU On-Line – No seu discurso de posse, o ministro Dias Toffoli acenou para manter uma boa relação com o Executivo. Como avalia a relação do Judiciário com o governo nesse primeiro ano?
Roberto Dutra – A relação com o Judiciário também não tem grandes problemas para o governo. Uma ou outra medida foi contestada no Supremo Tribunal Federal - STF, mas até aqui o governo Bolsonaro conseguiu se blindar, especialmente em relação ao caso do Flávio. O governo tenta se apoiar em um lava-jatismo difuso e nesse aspecto a figura de Moro é central, mas o STF até agora não se colocou em oposição nem desafiou o governo, como muitos esperavam que fosse fazer. A relação com o Judiciário é tão tranquila quanto a com o Congresso.
IHU On-Line – O apoio do presidente à Lava Jato é o mesmo da época da campanha?
Roberto Dutra – A Lava Jato continua tendo um apoio social muito grande, porque essa marca se transformou quase em um apoio à causa da corrupção. Então, continua sendo uma agenda fundamental para o governo. Ela pode ter perdido um pouco o apoio em alguns setores por conta dos vazamentos do The Intercept, mas Moro continua despontando na frente de Bolsonaro nas pesquisas sobre a eleição de 2022. A agenda da corrupção continua muito forte e a Lava Jato ainda dá ao governo uma força muito grande. O problema é que a Lava Jato é uma agenda do Moro e ele não parece que vai compor com Bolsonaro necessariamente.
IHU On-Line — Durante a campanha eleitoral, houve uma preocupação com a manutenção da democracia e o candidato Bolsonaro fez um pronunciamento se comprometendo com a Constituição, caso fosse eleito. Ao longo do primeiro ano do governo, ocorreram momentos de tensão por conta de algumas declarações do próprio presidente e de seus filhos em relação à ditadura militar e ao retorno do AI-5. Como o senhor avalia esses discursos? Eles são motivo de preocupação para a democracia brasileira?
Roberto Dutra — Lembro que, na outra entrevista que concedi a você, fiz uma distinção entre os elementos autocráticos do Bolsonaro e do bolsonarismo em si e os elementos autocráticos da agenda neoliberal de Paulo Guedes. À época, disse que o maior risco de autocracia de uma política não democrática estava ligado à agenda de Paulo Guedes e não ao bolsonarismo em si – e continuo achando isso. É óbvio que, se pudesse, Bolsonaro daria um golpe, fecharia o Congresso e faria um AI-5, mas parece que o governo não tem um plano para isso; esses discursos parecem muito mais uma bravata.
Claro que essas bravatas têm implicações para a democracia: corroem as instituições, deslocam os limites entre o que é e o que não é aceitável, mas não vejo essas atitudes e essas declarações contra a Constituição e a democracia como o maior risco à democracia brasileira. Para mim, o maior risco à democracia é o discurso autoritário e tecnocrata de Paulo Guedes e da política econômica do governo, como se não houvesse alternativa a ela. O que está em jogo são as escolhas políticas da qual a democracia brasileira foi privada nas eleições, porque o eleitorado pobre que votou em Bolsonaro não tinha o menor conhecimento das políticas econômicas de Paulo Guedes. Bolsonaro não debateu isso em campanha. Obviamente que é para se preocupar com essas declarações, mas não acredito que o maior risco à democracia brasileira seja o fascismo ou o autoritarismo do Bolsonaro, e sim a mediocridade, à medida que o governo não consegue entregar as mudanças sociais e as políticas públicas que a sociedade demanda e, por isso, vai se deslegitimando.
IHU On-Line — O governo iniciou muito unido, com um discurso de mudança e de governar para todos, mas ao longo do ano ocorreram muitas crises e disputas internas no PSL, que culminaram com a criação de um novo partido. Que leitura o senhor faz tanto das crises e das disputas internas no PSL quanto da criação do partido Aliança pelo presidente? O que esses fatos sinalizam?
Roberto Dutra — Isso sinaliza duas coisas. Primeiro, uma desorganização muito grande da base política que Bolsonaro havia construído até então. O bolsonarismo do PSL é um fenômeno fisiológico. O PSL nunca foi um partido ideológico; ele conseguiu ser ocupado por figuras ideológicas, mas essas figuras não se entenderam e não foram capazes de dar uma unidade ideológica ao partido.
A criação do Aliança pelo Brasil parece ser uma saída muito inteligente do Bolsonaro no sentido de criar um partido realmente a partir do bolsonarismo, novo, sem aquela identidade anterior vinculada ao fisiologismo do partido de aluguel.
Há dados de pesquisa de opinião – Bolsonaro com certeza deve conhecê-los – mostrando que a rejeição do PSL já está maior do que a do PT. A imagem do PSL já era a de um partido tradicional, fisiológico e de lucro. No entanto, a rejeição de Bolsonaro, não; ela ainda é menor do que a do Lula, e a aprovação dele é muito maior do que a do PSL e a do PT, por mais desgastada que esteja. Então, se livrar do PSL é se livrar dessa rejeição. Acredito que essa tenha sido uma atitude corajosa do governo, por mais que haja muitos riscos, entre eles, o de não conseguir criar o partido para as eleições do ano que vem por causa da questão das assinaturas. Mesmo assim, ele parece estar disposto a correr o risco. O partido tem uma raiz fundamentalista, uma arma como símbolo, portanto, é uma mudança significativa. Vejo o governo como protagonista politicamente. Bolsonaro não é burro, ele sabe fazer política.
IHU On-Line — Como a possibilidade de reeleição, já antecipada pelo próprio presidente, impactou o governo ao longo do primeiro ano ou pode impactar no próximo ano?
Roberto Dutra — Primeiro, temos que entender que o cenário político, muito antes do governo Bolsonaro, é de muita fragmentação e, em cenário de fragmentação, todo mundo acha que pode ganhar e ser presidente. Nesse contexto, temos que entender que Bolsonaro pode ter uma estratégia de fidelização de um terço dos eleitores e apostar que, com este um terço, ele se elege em um segundo turno. Então, é natural que outros atores tentem disputar o espaço e é esperado que isso fosse acontecer com Witzel e Doria. O mais leal ao Bolsonaro até agora parece ser o Romeu Zema Neto (Novo), de Minas Gerais. Doria e Witzel, de outro lado, disputam o espaço da extrema direita. A disputa, principalmente com o governador do Rio de Janeiro, está muito forte, muito pesada, e ele é o maior adversário de Bolsonaro na extrema direita, porque se trata de uma disputa em casa, no reduto eleitoral do presidente.
A volta de Lula ao cenário político, de algum modo, favoreceu Bolsonaro e permitiu uma repolarização de forças, embora Lula não tenha mais a mesma força de antes. De todo modo, Bolsonaro voltou a ter certo protagonismo, por exemplo, em relação ao Doria, para o qual ele estava perdendo. Apesar dessas disputas, Bolsonaro é o protagonista da extrema direita e o projeto de reeleição dele continua a todo vapor. Pode ser que ele desista por questões objetivas caso o cenário mude, mas até agora – na minha visão – está conduzindo o jogo com maestria.
IHU On-Line — Quando o ex-presidente Lula saiu da prisão, havia uma expectativa de que a esquerda poderia se reunir em torno do PT novamente. Depois de algumas semanas, parece que a expectativa em torno do nome do ex-presidente diminuiu. Lula perdeu capital político para a próxima eleição ou pode não desempenhar um papel tão central quanto alguns setores da esquerda esperavam?
Roberto Dutra — Acho que sim. Lula é um personagem em franca decadência. A prisão dele foi um escárnio ao Estado de Direito, mas, politicamente, não vejo Lula tendo uma grande base de mobilização. Primeiro, porque ele não tem uma política de radicalização; no máximo, tem uma radicalização retórico-discursiva, como ele sempre fez. Na prática, Lula é um conciliador: inflama a plateia, depois negocia tudo com o patrão às escondidas, mas agora ele não tem mais a base que tinha.
Lula é o maior líder popular da esquerda brasileira. Não dá para dizer que é o maior líder popular, porque Bolsonaro é um líder popular também. Agora, o ex-presidente não tem entrada no Sudeste; as eleições de 2020 vão mostrar isso. Lula é um político que consegue mobilizar as ruas do Nordeste. Até agora, ele conseguiu agrupar muita gente em Recife, mas nenhum movimento que extrapole a militância do PT e da esquerda. Lula está falando para dentro, cada vez mais só para dentro. A capacidade dele de ser aquela personagem agregadora de grupos sociais fora dos círculos de militâncias e partidários, parece que está em crise.
Considerando Lula um político conservador e sem capacidade de reinvenção, acredito que o papel dele esteja bem menor do que se esperava. Até mesmo na política institucional Lula não tem tido o prestígio que achava que tinha, inclusive dentro do próprio PT. Um dos fatos positivos de ele ter sido solto é que as críticas feitas a ele agora podem ser feitas de modo aberto, sem ele ter a prerrogativa de dizer que não pode respondê-las. Nós estamos assistindo dentro do próprio partido, principalmente no Nordeste, os governadores Rui Costa e Camilo Santana fazendo críticas duras ao PT e ao presidente Lula, ao modo como ele conduziu as eleições de 2018 e como ele tem agido até agora. Portanto, ele tem problemas internos dentro do partido e sua força diminuiu um pouco.
IHU On-Line — Que articulações políticas entre os diferentes partidos o senhor vislumbra para as eleições municipais deste ano? O que tem percebido no seu estado, o Rio de Janeiro?
Roberto Dutra — Esta é uma eleição muito importante, porque o sistema político vai testar o seu esforço improvisado de diminuir o nível de fragmentação. O fim das coligações proporcionais, que impedem que os partidos possam compor chapa na eleição para vereador, vai dificultar muito as alianças no nível majoritário. A tendência é que vários partidos lancem candidatos, mas há, no entanto, um esforço não só na esquerda, mas no centro também, de tentar superar isso.
No Rio, por exemplo, tem a candidatura do deputado Marcelo Freixo, com a sinalização de apoio do ex-presidente Lula e do PT. Essa candidatura tem potencial e chances de estar no segundo turno. Mas o PT no Rio de Janeiro não existe, ele é um partido de aluguel, conduzido a partir do Lula, de modo mafioso, que comanda a eleição interna do partido, inclusive por fraudes do processo eleitoral que estão sendo investigadas. O PT do Rio de Janeiro não agrega nada ao Freixo e não tira o Freixo da disputa.
Tem um esforço dos partidos de centro-esquerda — PDT, PSB, PCdoB, PV e Rede — de construírem uma aliança a nível municipal que, se der certo, se projetaria para nível nacional em 2022. Rio de Janeiro e São Paulo são palcos importantes desse experimento da centro-esquerda, excluindo o PT e o PSOL.
Existem também as candidaturas menores de Martha Rocha e Alessandro Molon. Martha Rocha ainda tem uma popularidade um pouco maior, entre 8% e 7%. Já o Molon não consegue sair dos 2%. Uma aliança entre eles poderia potencializar a candidatura, mas, ainda assim, seria candidatura fraca.
Em São Paulo, Márcio França pode ser o candidato do PSB com o apoio do PDT e, eventualmente, tendo a Marta Suplicy como vice. Esse cenário de tentativa de desfragmentação da esquerda em direção ao centro é algo que temos que observar; ele pode funcionar ou não, mas se funcionar, será importante para termos um cenário menos fragmentado em 2020.
A entrada do DEM nessa aliança de centro-esquerda poderia ser uma novidade. No Rio há um movimento de atrair o PDT e o PSB também e outros partidos que estão pensando em uma frente alternativa para a candidatura do ex-prefeito Eduardo Paes. Isso teria implicações nas alianças em outras capitais. Se acontecer uma aproximação entre o DEM e parte da centro-esquerda, essa pode ser a novidade mais importante das eleições de 2020. Uma aproximação pode ter uma réplica em 2022.
Lembrando que, em 2018, Ciro Gomes quase conseguiu essa aliança: esteve tratando o apoio do DEM na sua candidatura. Ele já teve o apoio do DEM nas eleições de 2002, quando o Brizola ainda era vivo e essa aproximação com o Rodrigo Maia pode alterar o cenário. O que vejo é uma estrutura do sistema político completamente fragmentadora, mas esforços dos atores políticos tentando desfragmentar o processo.
IHU On-Line — Como as eleições municipais de 2020 podem movimentar o próximo ano do governo Bolsonaro? O governo pode fazer movimentos para garantir apoio nas eleições municipais?
Roberto Dutra — Claro. Mesmo se Bolsonaro não tiver o partido montado juridicamente para concorrer, ele vai lançar candidatos de um partido laranja, como ele sempre fez, e vai disputar as cidades. As pesquisas sobre a eleição no Rio de Janeiro até agora não perguntam quem é o candidato do Bolsonaro e ele não disse quem é o candidato dele. Será que é o [Marcelo] Crivella? Provavelmente não. Mas quem será? Ele tentará manter a sua hegemonia no Rio de Janeiro e em São Paulo e tentará ganhar nas capitais do Sul em que não tem apoio. Belo Horizonte é um caso à parte, pois o prefeito Alexandre Kalil tem capacidade de se reeleger. Ele não é bolsonarista; tem uma visão mais aproximada da esquerda, e em Belo Horizonte será um dos lugares mais difíceis de Bolsonaro entrar. Em São Paulo, ele fará tudo o que puder para ganhar.
IHU On-Line — Como o jeito de fazer política do presidente reflete na popularidade dele para além da sua base política? Numa possível reeleição, esse jeito de fazer política poderia atrair ou repelir aqueles que não são seus eleitores?
Roberto Dutra — Tem um impacto ambíguo e negativo num primeiro momento. Para se sintonizar a esse um terço, Bolsonaro tem que radicalizar o discurso e isso o afasta dos outros eleitores. Mas isso é racional a curto prazo: ele precisa dessa militância, dessa base de apoio. No segundo turno, a estratégia é apostar no antipetismo, por isso a preocupação do Bolsonaro é com a guerra cultural, sobretudo com a guerra cultural antipetista. Como o antipetismo é mais forte, o antiesquerdismo vira antipetismo.
A rejeição ao PT continua muito forte, porque o antipetismo é a maior força política brasileira. Enquanto o antipetismo for a maior força política difusa no eleitorado e na sociedade, Bolsonaro tem a estratégia mais adequada para tentar se reeleger: fazer o movimento de radicalização ideológica para um terço e depois usar o antipetismo como discurso de medo e de ameaça para conquistar o que lhe falta no segundo turno. Isso funcionou em 2018 e nada impede que funcione em 2022.
Vale lembrar que os cientistas políticos foram desafiados, pois quase ninguém previu a eleição do Bolsonaro. Ele conseguiu compreender que a eleição de 2018 era uma oportunidade, porque parte da sociedade não queria a volta do PT ao poder – e essa parcela da sociedade continua sendo muito forte.
IHU On-Line — Qual a implicação da guerra cultural para o desenvolvimento político, para busca de alternativas políticas para além de bolsonarismo e do petismo?
Roberto Dutra — A guerra cultural é uma desgraça. Niklas Luhmann, que é um autor com o qual eu penso para compreender as questões complexas da democracia, da política e da sociedade contemporânea, tem uma visão muito clara da guerra cultural: quando a política perde alternativas programáticas, quando o eleitor não pode mais dispor de ofertas pragmáticas político-partidárias, a controvérsia moral entra no lugar. A guerra cultural é um sintoma de uma crise de alternativas, é uma forma de moralização, de demonização do outro, das minorias, do PT, da esquerda etc.
A guerra cultural substitui fisicamente a ausência de posições claras ou a incapacidade do governo de legitimar uma política econômica específica. Ela tira o foco daquilo que importa, que são as visões de como deve ser o Estado, a sociedade, qual a relação entre a sociedade e o Estado que queremos, se é maior ou menor, como transformar as estruturas sociais a partir da política etc. A guerra cultural é um processo de moralização da política que ameaça a democracia. Portanto, de modo bem dramático, é uma desgraça.