Apesar do progresso científico e tecnológico que marca o século XXI e das mudanças que isso está gerando nas sociedades e no meio acadêmico, a função da universidade nos dias de hoje “não é muito diferente da sua missão no curso dos séculos XIX-XX e é antes de tudo a de um agente de civilização, devendo levar as luzes do conhecimento e da cultura a todas regiões de um país”, pontua Ivan Domingues à IHU On-Line. Para ele, ao discutir o desenvolvimento e a missão da universidade, “não devemos reduzir a coisa a desenvolvimento econômico e PIB crescendo: há que se ressaltar a missão da universidade à vista das demandas e necessidades do conjunto da população, como agente da cultura e do bem-estar da sociedade”, diz.
Defensor de uma posição ponderada acerca da relação entre as universidades e o setor privado, não se opondo à presença do capital na universidade pública via doações, à construção de edifícios com recursos privados, nem a atividades lucrativas ligadas ao desenvolvimento de produtos, Domingues também concorda com as “críticas de colegas” ao Programa Future-se. O pesquisador vê com desconfiança a participação das Organizações Sociais - OSs e das Sociedades de Propósito Específico - SPEs nas universidades. Segundo ele, a novidade do Future-se é uma fonte de risco. “A novidade mesmo é o contrato de gestão por direito privado e nesse contrato a centralidade da OS com a missão de introduzir parâmetros de empresas privadas com sua cultura no setor público e na administração pública. Aí a aposta é maior e as incertezas são enormes, estando ainda muita coisa obscura e um sem número de tecnicidades jurídicas mal equacionadas, com o potencial de muita coisa ir parar no Supremo, como na questão da autonomia didático-científica, administrativa e financeira/patrimonial estabelecida no artigo 207 da Constituição”, explica.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Domingues reflete sobre as implicações do programa nas universidades, explica suas propostas de reforma para o ensino superior e defende a aplicação do artigo 207 da Constituição nas universidades.
Ivan Domingues (Foto: UFMG)
Ivan Domingues é graduado e mestre em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG e doutor em Filosofia pela Université de Paris I. Atualmente é professor titular da UFMG.
Além de experiência no ensino e na pesquisa, Ivan Domingues acumulou experiência administrativa ao longo de sua carreira, tendo sido fundador do Doutorado em Filosofia da UFMG, um dos fundadores e ex-diretor do Instituto de Estudos Avançados - IEAT/UFMG, assessor do Reitor da UFMG – Gestão 2010-2014, coordenador da Área de Filosofia da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Capes e membro de Comitê Assessor de Filosofia do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.
Atualmente é o coordenador do Núcleo de Estudos do Pensamento Contemporâneo - NEPC da FAFICH-UFMG, um grupo interdisciplinar de pesquisa que desenvolve o projeto Biotecnologias e o Futuro da Humanidade, apoiado pela Fapemig, com ênfase no impacto das bioengenharias sobre a questão antropológica e suas implicações éticas, políticas e jurídicas.
Ele é autor, entre outros livros, de Filosofia no Brasil. Legados & perspectivas. Ensaios metafilosóficos (São Paulo: Editora Unesp, 2017).
IHU On-Line - Qual é a função da universidade pública nos dias de hoje? Por que é importante manter o caráter público para pesquisa e ensino superior?
Ivan Domingues - Penso que a função da universidade pública nos dias de hoje não é muito diferente da sua missão no curso dos séculos XIX-XX e é antes de tudo a de um agente de civilização, devendo levar as luzes do conhecimento e da cultura a todas regiões de um país, podendo atuar em âmbito regional ou em escala nacional, bem como se abrir à internacionalização em escala mundial, com o cientista definindo-se virtualmente como um cidadão do mundo.
Sobre o regional e o local, lembro que foi assim que o Massachusetts Institute of Technology - MIT e o California Institute of Technology - CALTECH nasceram nos Estados Unidos, um e outro institutos voltados, respectivamente, para a promoção do desenvolvimento do Massachusetts e da Califórnia, e surgidos justamente depois que as engenharias se integraram às universidades pelo mundo afora, até então com atuação restrita às humanidades e medicina, como as de Paris, Oxford, Coimbra, Salamanca e de San Marcos, no Peru colonial. Não muito diferente, este será o caso da Universidade de Austin, cuja homepage de saída abre-se para as ações da prestigiosa Universidade visando o desenvolvimento do Texas. Assim, junto com as luzes da razão espalhando-se sobre um país ou sobre o mundo, a justificar a ideia da universidade como agente de civilização, na esteira do projeto iluminista, teremos então a ideia da universidade como agente de desenvolvimento, nacional ou regional.
Não bastasse, deveremos adicionar ainda a função maior da universidade na formação das pessoas e na educação das mentes, como imaginaram Humboldt [1] e outros educadores, na esteira da Bildung alemã e da Paideia grega, bem como da Ratio Studiorum dos jesuítas, fazendo da universidade um agente da educação moral de um país, de uma comunidade e virtualmente de toda a humanidade.
Tudo somado, várias são as funções ou missões da universidade, podendo todas estar reunidas numa só instituição ou espalhadas num conjunto maior, com a totalidade delas fazendo pela soma ou adição, mas em sinergia, aquilo que cada uma faz como parte e isoladamente.
IHU On-Line - Qual sua avaliação sobre o Programa Institutos e Universidades Empreendedoras e Inovadoras - Future-se, recém lançado pelo Ministério da Educação - MEC? Quais são os pontos positivos e negativos do programa?
Ivan Domingues - A pergunta nos leva ao centro do Programa, abarcando aspectos de maior ou menor complexidade, acerca dos quais você me pede um balanço, devendo eu me alongar bastante ao fazer o cômputo dos aspectos positivos e negativos. Que o leitor tenha paciência e me perdoe se eu titubear e parecer prolixo. Afinal, o Programa só foi apresentado agora e as avaliações ainda estão em curso.
Indo ao ponto, ao dar minha primeira impressão geral, digo que o conjunto das IFES recebeu o Programa com muitas reservas, vindo de um governo como esse, com o presidente disposto a levar a agenda do enfrentamento da ideologia e dos costumes até os gabinetes e as salas de aula, com o guru dele e de seus filhos falando de guerra cultural e que a terra é plana. Na mesma linha, seguindo as pegadas do chefe e do guru, com seu primeiro ministro da Educação desancando Paulo Freire [2], deixando a agenda positiva do ensino superior de lado e colocando no centro da agenda educativa escoteiros cantando o hino nacional. Depois foi a vez do novo ministro dizendo que os professores das federais dão poucas aulas, comprovadas por números que ninguém sabe de onde ele tirou, quando sabemos que é outra e bem diferente a realidade no hemisfério Norte, onde a carga aula dos docentes é a metade, devendo ser somados a carga da pesquisa e outros afazeres, como aliás aqui entre nós. Tudo isso sem nos esquecermos de suas declarações preconceituosas sobre a sociologia e a filosofia, apoiando-se sem nenhuma base documental no exemplo do Japão, cuja Federação das Indústrias repudiou a iniciativa desastrada, e ao mesmo tempo ignorando que nas melhores universidades do mundo procura-se o equilíbrio entre as humanidades, as engenharias e as ciências duras, como nos casos de Harvard e de Oxford. Contudo, as coisas não pararam por aí, e agora lá está ele de volta apresentando esse Programa como se fosse a redenção do sistema federal de ensino superior, quando na realidade vai levar ao seu colapso e pôr em xeque décadas de esforço conjunto de governos e de gerações – e isso num país como o nosso, que chegou tarde demais ao ensino superior, comparado com outros vizinhos da América Latina, como o Peru e o México.
O resultado desse estado de coisas é, portanto, as desconfianças e as reservas. O ensino superior é uma realidade sumamente complexa, além de cara e desafiadora. Entendo que o nosso sistema, deixando a graduação de lado, é bem-sucedido no tocante à pós-graduação depois de cinquenta anos de esforços da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Capes e das universidades. Entendo também que de tempos em tempos é preciso reformar o ensino superior em todos os seus níveis, tendo sido a última vez a reforma universitária de 68, patrocinada pelo regime militar. Passado tanto tempo, outros problemas e outras urgências surgiram, inclusive distorções sérias criadas por governos recentes, como a expansão das vagas numa mesma universidade, quando era o caso de criar outras federais, levando a expansão à queda dos padrões e ao inchaço das cidades universitárias, com sua população de repente duplicada ou aumentada em 50%. Somem-se a essas distorções outras tantas do mesmo quilate e não menos preocupantes, como o processo de eleição de reitores, por sufrágio direto e igualdade de pesos dos diferentes segmentos, como vem acontecendo na maioria das federais, levando ao populismo e à crise de governança como a de agora, com a universidade fragmentada, a administração central isolada, sem propostas capazes de empunhar bandeiras e deflagrar campanhas, e os dois segmentos propriamente acadêmicos expostos às ações insidiosas do ministério. Some-se ainda a destruição entre nós da figura do professor-titular, com a porteira aberta e a estranheza de nossos colegas de outros pontos do globo que não entendem por que as coisas se passam assim nesta parte do hemisfério.
Para terminar o cômputo dos problemas e das urgências – sem a veleidade de ser exaustivo: haveria muito o que dizer sobre a questão das quotas e o sistema de ingresso (Sistema de Seleção Unificada - Sisu), por exemplo, mas não vem ao caso, por extrapolar o Programa – será preciso considerar duas coisas. A primeira, considerar os gaps ainda existentes nos diferentes planos das pesquisas básica e aplicada, num mundo como o de hoje às voltas com a corrida desenfreada nos diversos campos da C&T, como mostram os dados mais recentes, extraídos de fontes confiáveis: assim, ao contar aqueles diretamente ligados ao P&D&I, enfatizados incompletamente pelo programa do governo, que mostram o país aparecendo em 13º lugar na produção de papers em inglês, investindo em 2018 1,17% do PIB em P&D, em contraste com os 4,32% da Coreia e os 2,84% dos EUA e da Alemanha, e terminando o ano de 2017 em 10º lugar em pedidos de patentes, ao passar em sua participação mundial de 0,24% em 2006 para 0,28% em 2017, quando a China atingiu mais de 41% e os EUA cerca de 16,5%.
A segunda, considerar o quadro histórico da economia brasileira, colocando em foco o peso relativo da indústria de transformação no PIB nacional, como mostram os dados preocupantes que me foram passados pelo ex-reitor da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG e ex-ministro de Ciência e Tecnologia, o professor Clélio Campolina, que mostram um processo de verdadeira desindustrialização, hoje beirando o desastre: para nos convencermos disso, basta compararmos o ano de 1985, fim do ciclo militar, quando a indústria tinha 23,02% do PIB, passa em seguida por sucessivas quedas e retomadas, até atingir o abismo de 13,81% no fim do governo de FHC, em 1999, subir para 17,79% no primeiro governo Lula, por volta de 2005, e despencar para 11,40% em 2015, hoje certamente algo menos, devendo estar cravando menos de 10%, ao voltar aos índices de fins de 1940 e início dos anos 1950.
Voltando ao ponto, há dias o Conselho Universitário da UFMG recomendou a não adesão ao Future-se. Nada mais acertado. Com efeito, como poderia ser diferente se, a par dos outros eixos do Programa consagrados à “Pesquisa e Inovação” e à “Internacionalização”, que são fracos e mesmo ingênuos, aquele que seria o mais robusto e decidido dos três, com foco em “gestão, governança e empreendedorismo”, não passa de uma tentativa mal ajambrada de um ministro ressentido e de um inepto secretário da Secretaria de Educação Superior - Sesu brincando de gestores, com uma equipe de técnicos de economia e administração em que ninguém é do ramo, sem familiaridade com o assunto, e com os dois superiores na hierarquia parecendo eles mesmos não gostar do objeto nem das federais: referidas como “balbúrdias”, tratando aquilo que a maioria vê como um bem intrínseco (o conhecimento) como uma mercadoria e um bem fungível, e lançando para embasar propostas números duvidosos e sem lastro, como a declaração do titular da Sesu que entre as top 50 a maior parte delas não passa de 40% de orçamento público. Ora, os dados disponíveis são bem diferentes, a começar pelos da União Europeia que mostram que o orçamento público gira em torno de 77%, ao passo que nos EUA, segundo a American Association for the Advancement of Science - AAAS e a National Science Foundation - NSF, esses números chegaram em 2016 a 60%, 25% da própria universidade, 6% originários de ONGs, 6% de empresas e 3% de outras fontes.
Estou comentando essas coisas, para me ater ao essencial, e ainda assim fui forçado a me alongar bastante. De fato, para fazer uma reforma dessa envergadura seria necessária uma ampla discussão com a comunidade e um horizonte de tempo bem maior visando à adesão ou não ao Programa. Nada disso foi feito, as comunidades universitárias e os reitores não foram consultados, nem associações científicas e especialistas no assunto, e a própria consulta pública que termina no dia 15 de agosto não prevê questionamentos mais substantivos do documento, forçando a recusa ou a aceitação em bloco, com o secretário da Sesu em entrevista desafiando a comunidade a apresentar uma melhor proposta. Contudo, as coisas são bem mais complicadas, para ficarmos só com o primeiro eixo, o qual, com suas novas formas de gestão e governança a cargo de Organizações Sociais - OS privadas e fontes de financiamento lastreadas por fundos de investimento lançados no mercado de capitais e gerenciados pela OS que terá um papel de grande protagonismo no Comitê Gestor (Parceria Público/Privado), terminará por sequestrar a autonomia das IFES e transformar as Universidades Federais de instituições públicas que eram em empresas privadas – e isso ninguém quer.
Ao concluir, retornando aos números do Brasil e à conjuntura ruim, contrastando-os com os eixos do Programa, especialmente o primeiro, que de longe é o mais importante, peço que alguém me explique como seria possível num país como o nosso e no momento em que estamos vivendo, fazer P&D&I e empreendedorismo, quando não temos mais indústria e em vez de desenvolver produtos preferimos comprar tecnologia pronta.
Com efeito, se o objetivo é esse a médio prazo, o melhor a ser feito seria preparar o caminho e melhorar a casa a curto prazo, e nada disso temos no Programa anunciado com estardalhaço, ao terminá-lo com três meses, sabe-se Deus como e com que ajuda, retirado de qual gaveta ou gabinete, e depois dar um mês para as IFES decidirem sua adesão ou não ao Programa, com o stick numa mão e a carrot na outra.
IHU On-Line – Há alguma novidade no Future-se em relação ao que já é feito hoje nas universidades em termos de autonomia administrativa, financeira e de gestão, por meio de parceria com organizações sociais e de fomento à captação de recursos próprios?
Ivan Domingues - Penso que o essencial já está respondido na questão anterior. Apenas eu diria agora, ao ser perguntado, que eu não vejo maiores problemas as universidades federais continuarem, como quer o governo, com o apoio da Empresa Brasileira de Pesquisa e Inovação Industrial - Embrapii, criada a partir do modelo da Embrapa, em 2013, com sua excelência atestada em tudo que ela faz e hoje com inúmeras parcerias com IFES como o IFSul de Minas e outros tantos como o IFBA, o IFCE, o IFMG, o IF Fluminense, o IFSC, entre outros, assim como parcerias com o Instituto Tecnológico de Aeronáutica - ITA, a Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ (Coppe), a Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC (CERTI) e a própria UFMG (DCC). Da mesma forma que não vejo nada demais os convênios dos hospitais universitários com a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares - EBSERH, fundada em 2011, e hoje com parcerias com quase todos eles, cerca de 32 IFES, à exceção da UFRJ e da Universidade Federal de São Paulo - Unifesp, tendo, em vez de privatizado, salvo os hospitais públicos de ensino da bancarrota iminente. Tudo isso nós fazemos e não representa propriamente uma novidade, porém numa escala menor, topicamente, e sem terceirizar a autonomia e a responsabilidade.
Assim, novidade mesmo é o contrato de gestão por direito privado e nesse contrato a centralidade da OS com a missão de introduzir parâmetros de empresas privadas com sua cultura no setor público e na administração pública. Aí a aposta é maior e as incertezas são enormes, estando ainda muita coisa obscura e um sem número de tecnicidades jurídicas mal equacionadas, com o potencial de muita coisa ir parar no Supremo, como na questão da autonomia didático-científica, administrativa e financeira/patrimonial estabelecida no artigo 207 da Constituição, e, no entanto, ignorada pelo projeto de lei a ser enviado ao Congresso, totalizando 18 páginas, tratando de modificar 18 leis ou antes artigos menores, muitos deles recentes, e terminando em seu penúltimo artigo, de no. 44, por criar o “Dia Nacional do Estudante Empreendedor”, que irá cair num sábado logo depois do Trabalhador. Mais uma bobagem e uma leitura equivocada das coisas, como se os programas do P&D&I fossem a quinta-essência da Universidade Pública, e não algo próprio de certas áreas, que têm em comum com as outras o conhecimento como bem intrínseco, juntamente com seus frutos, e propriedade da civilização.
Todo mundo sabe que a conjuntura econômica está ruim e mesmo péssima. Neste cenário o ministro vem e acena com 100 bilhões de reais. Só que o governo não tem esse montante: nem os 100 bi, como ele reconhece, que deverão ser obtidos com ajuda de aportes externos, nem os 50 bi, que ele alega tê-los e que serão alavancados com o patrimônio das Ifes, aluguéis de dependências e aportes da União. Tudo isso, além de deixar o governo federal com as mãos livres, desobrigado em destinar as verbas constitucionais à educação e ao ensino superior, ao terceirizar as fontes de financiamento, levará à financeirização das universidades e a gestão ficará nas mãos de OSs ao alcance do jogo bruto das corporações financeiras, das interferências dos governantes (o MEC continuará como o grande tutor) e dos compadrios dos políticos e apaniguados: estes últimos com um mundo a ganhar especialmente naquelas instituições de menor porte, sem tradição ou com pouco enraizamento e sediadas em localidades mais afastadas.
IHU On-Line - Como as parcerias público-privadas impactam a produção do conhecimento nas universidades hoje e quais as expectativas nesse sentido em relação ao Future-se?
Ivan Domingues - Creio que eu já respondi, ao reconhecer o papel da Embrapii e da EBSERH, assim como as minhas desconfianças frente às OSs e às Sociedades de Propósito Específico - SPEs, contemplando diferentes escalas. Sobre as OSs, que existem em profusão, há que se considerar no tocante às Ifes, até onde eu sei, a situação do Instituto de Matemática Pura e Aplicada - Impa. Só que o Impa, consagrado à matemática pura, é uma instituição pequena e recebe verbas generosas do MEC e do MCT, não sendo exatamente um modelo para a captação de recursos privados e de atuação no mercado financeiro. Ora, o que o Programa Future-se quer é alguma coisa como o “Fature-se” e seu propósito é trazer o mercado para dentro das UFES e levar à sua total financeirização, como eu disse, inclusive “Naming Rights”. Por seu turno, em contraste com o Impa, o Inhotim de Belo Horizonte também é uma OS, porém modelada para captar recursos da Lei Rouanet, e sua gestão é inteiramente privada, havendo um boss que manda em todos e decide tudo.
Outra coisa bem diferente e bem mais arriscada é colocar todas as federais nas mãos de uma mesma ou em diferentes OS, tornadas parceiras por contratos de direito privado, e é aqui que começam as dificuldades, mesmo que todo mundo esteja interligado pelas boas práticas, o princípio da transparência, a auditagem dos resultados e a fiscalização dos órgãos de controle.
IHU On-Line - O que, na sua opinião, deve balizar e limitar as relações público-privadas dentro das universidades?
Ivan Domingues - Sua pergunta é difícil e a resposta é dessas que valem 40 milhões de dólares. Até agora eu evitei os questionamentos jurídicos, por não ter competência na matéria e ser pessoalmente muito desconfiado das agendas negativas que caracterizam os meios acadêmicos e as próprias esquerdas, com todo mundo feliz da vida ao repudiar as mudanças e dizer não para tudo. De minha parte, não considero que a universidade pública no Brasil está no melhor de seus momentos e não precisa ser modificada em nada.
O meu pensamento íntimo é o oposto, como já comentei antes, e no atacado eu me pauto pelo artigo 207 da Constituição, levando-me a dizer que bastaria ele ser aplicado em sua inteireza, com as autonomias administrativa e financeira sendo exercidas para valer, ao serem somadas à autonomia científica didático-pedagógica.
Só que a vida é dinâmica e, além da lei maior, há para os programas de P&D&I, até onde eu sei, o Marco Regulatório do Código de C&T de 2015-2016, o qual serve de parâmetro para as ações de empreendedorismo e permite a sua permanente reatualização e recalibragem.
Isto dá uma ideia de que uma universidade pode permanecer pública e abrir-se para programas de P&D&I, sem perder a autonomia e a identidade tão prezadas por nós. Aqui e em outras situações o que importa para nós, professores, é o ethos, num sentido próximo de Robert K. Merton [3], e esse ponto é deixado de lado pelo Programa, ao trocar o ethos pelo business, e isso é outra história e significa errar de endereço.
IHU On-Line - Alguns críticos do programa Future-se argumentam que o programa fará com que as universidades fiquem refém do capital. Como o senhor vê esse tipo de crítica e como avalia a incidência do capital na universidade pública?
Ivan Domingues - Também o essencial já foi respondido, mas há outros que devem ser considerados. Antes de mais nada, eu concordo com as críticas de colegas que já assinalaram que o Programa Future-se coloca o mercado dentro da universidade e a deixará vulnerável aos altos e baixos do mercado financeiro, conhecido por sua extrema volatilidade, como mostrou a crise de 2008.
Agora, eu não sou contra a incidência ou a presença do capital na universidade pública via endowements [doação], mesmo a construção de edifícios com recursos privados e visando usos públicos, com o nome do empreendedor ou mecenas na frente do prédio, assim como não sou contra várias atividades lucrativas ligadas a patentes e desenvolvimento de produtos.
Nada disso existia na universidade medieval quando ela surgiu, vendo no ensino uma espécie de oração e obséquio a Deus, ao passo que hoje é diferente, devendo essas coisas ou novidades ser “customizadas” e estando essa matéria já pacificada e suficientemente regulamentada.
IHU On-Line - A parceria entre empresas e universidades é positiva para a produção de conhecimento? Pode nos dar alguns exemplos de como esse tipo de parceria pode ser positiva ou negativa?
Ivan Domingues - Eu não sou engenheiro, nem venho da área tecnológica, e não passo de um filósofo e um intelectual preocupado com o destino do país e a situação da universidade pública.
Voltando à sua pergunta, há dias li na Folha de São Paulo [03/09] uma matéria assinada por Angela Pinho em torno do Future-se e das ações do MEC, ao longo da qual ela cita, com respeito ao P&D&I que integra os dois primeiros eixos, o exemplo de um colega da Universidade de São Paulo - USP, o professor Humberto Gomes Ferraz, que não faz muito tempo desenvolveu o medicamento Vonau, com suas duas credenciais, segundo a jornalista: [1] o medicamento é excelente, sendo muito eficaz contra náusea, e foi desenvolvido em parceria com a Biolab, que financiou o projeto; [2] trata-se do produto que mais rende royalties à universidade, rateados entre a administração central, os departamentos envolvidos, a agência de inovação e os próprios criadores, que irão ficar com 30% do total.
Até aqui tudo bem. Só que, embora o projeto tenha sido bem-sucedido, o professor não deixou de revelar suas reservas contra a burocracia das nossas universidades, “um verdadeiro inferno”, segundo ele, para não falar da burocracia do governo, eu acrescentaria, da mesma forma que não deixou de expressar suas desconfianças profundas frente ao programa do MEC, e de resto bem parecidas com as minhas. De um lado, ao dizer que “o MEC não começou bem nesse governo”, ao se referir ao discurso de enfrentamento das universidades que caracteriza a gestão Bolsonaro, levando-o a expressar sua preocupação acerca das “reais intenções desse programa”. De outro, ao revelar o nosso déficit de cultura tecnológica, para não dizer “empreedendorística”, levando as nossas universidades a se refugiarem no academicismo, em meio, poderíamos acrescentar, ao mais desabusado dos taylorismos, como mostra a jornalista, ao parafrasear suas palavras, dizendo que segundo ele “a universidade [dá] um peso muito maior a publicações na avaliação dos docentes, em detrimento de outros indicadores, como o desenvolvimento de produtos”, fazendo-o perder o foco em suas pesquisas.
Essa é uma das várias faces da universidade com suas diferentes culturas de área e o projeto do governo de Bolsonaro para as UFES passa ao largo dessas coisas e erra o alvo, inclusive ao mirar as universidades americanas, tomadas supostamente como modelos de universidades privadas, e acertar na Coreia. Porém, a Coreia é outra conversa e fica em outro planeta.
Por seu turno, outro modelo segundo o Secretário da Sesu, que como eu disse parece não gostar do seu quintal e das federais, são as estaduais paulistas, USP e Universidade Estadual de Campinas - Unicamp, que têm a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - Fapesp como fonte adicional de recursos, à diferença de outros estados, com as Fundações de Amparo à Pesquisa - FAPs ou em míngua ou totalmente quebradas, e no entanto segundo o colega da USP, a prestigiosa universidade está longe de ser um modelo em empreendedorismo, levando um pesquisador de seis meses a dois anos para comprar um equipamento.
Realmente, algo precisa ser feito, mas não como pensa o ministro, que não é da área e é a favor de reduzir a verba de seu ministério, em mais uma de suas bizarrices, e como tal nunca vista antes no MEC e em outros prédios da Esplanada ou defendida nem mesmo por seus colegas atuais de governo.
IHU On-Line - O senhor já disse em algumas ocasiões, como numa entrevista à Revista Diversa (Nº 20 - Ano 12 – 20-04-2013) que o tripé ensino-pesquisa-inovação nunca se consolidou no Brasil e que falta uma agenda positiva de C&T para o país. Que tipo de iniciativas permitiriam consolidá-lo e criar uma agenda de C&T?
Ivan Domingues - Eu não me lembro de ter tratado do tripé ensino-pesquisa-inovação, mas, sim, do tripé ensino-pesquisa-extensão, levando-me a questionar a centralidade da extensão, como se fosse um eixo à parte e em que eu via em nossas federais algo sumamente inflado, uma verdadeira pletora carregando, além da extensão à comunidade, a prestação de serviços e as pós-graduações lato sensu. De fato, o programa Future-se nada diz do ensino e da extensão e o que consegue dizer da pesquisa, em meio às trivialidades sobre internacionalização e reconhecimento de diplomas, não diz nada acerca da pesquisa básica, só da pesquisa aplicada, ao tomá-la na última ponta do processo de P&D&I, com a Inovação saltando à frente, e desde logo considerada pelo viés do empreendedorismo empresarial e não da inovação tecnológica.
É muito pouco, não pode dar certo e não é uma mera questão de torcer contra o Brasil, mas a favor, no sentido estratégico de pôr o foco correto no desenvolvimento com tecnologia e sustentabilidade, bem como a favor da universidade pública de pesquisa como “incubadora” de C&T antes de ser de P&D&I, e nada mais.
IHU On-Line - O senhor tem defendido que é preciso “refundar” a universidade pública. Pode explicar essa ideia? Por quais razões e em que aspectos as universidades precisam ser refundadas?
Ivan Domingues - Sim, mas veja bem, não porque eu considere que o modelo esteja errado ou tenha fracassado, mas porque ele precisa de atualizações e recalibragens, como aliás qualquer modelo em diferentes lugares do mundo, em razão da própria dinâmica das coisas ou das transformações do meio em que ele está inscrito. Concretamente, eu digo que o modelo da universidade pública republicana está bem desenhado no Brasil e deverá ainda render seus excelentes serviços nas décadas que virão, garantido pelo artigo 207 da Constituição e tendo como marco legal a autarquia e seus dispositivos, ao colocá-la longe das ações dos governos, no rol da administração indireta. Considere-se ademais que a universidade brasileira – estou falando de universidade completa, cujo modelo foi formatado em nosso país a partir dos anos 30 em plena era Vargas – tem cerca de 90 anos, ou um pouco menos para o conjunto das federais, como no caso da UFMG, que só foi federalizada em 1949. Às Universidades ditas completas seguem os Institutos Federais com atuação na área tecnológica, de criação bem mais recente, na esteira dos Centros Federais de Educação Tecnológica - CEFETs, mas dentro do mesmo marco legal das universidades, com o artigo 207 garantindo autonomia didático-científica, administrativa e financeira/patrimonial.
A bem da verdade, uma autonomia que nunca foi completamente realizada, salvo a autonomia didático-científica, que bem ou mal existe, mesmo que meio defasada, com aulas de mais e pesquisa de menos, em comparação com o hemisfério norte. Ao passo que, no tocante às duas outras pernas do modelo, os diferentes governos deixaram a universidade pública de braços atados e sem meios próprios para seguir adiante com sua missão de gerar e difundir o conhecimento, em meio às penúrias de orçamento, como as de hoje, com cortes e mais cortes de verbas constitucionais, bem como em meio às amarras de uma administração obsoleta e pouco ou nada republicana: por um lado, em sua face externa, uma administração que em sua estrutura e em seu funcionamento, em meio a seu cartorialismo ibérico, é a mesma desde os anos 30 quando o Departamento Administrativo do Serviço Público - DASP foi fundado e que depois, como o resto do país, foi crescendo de puxado em puxado, virando um verdadeiro monstro jurídico; e, por outro, em sua face interna, com seu staff administrativo desmotivado e nada disposto a se livrar das heranças do ancien régime, cujos males datam da colônia, como o corporativismo, em meio à indiferença complacente da administração central, das benesses do populismo sindical negociadas à época das eleições para reitor e totalmente avesso às chamadas boas práticas da ética republicana, como a responsabilidade, o zelo pelo bem público e a transparência dos atos e decisões.
Então, para encurtar a conversa, rigorosamente falando, se o modelo é bom e nada há de errado com ele, trata-se então não de jogá-lo fora ou deixá-lo de lado, mas de realizá-lo em toda sua extensão, bastando aplicar de verdade os preceitos do artigo 207 da Constituição, ao garantir às IFES a plena autonomia financeira e administrativa, para além da autonomia didático-científica: e desde logo, não transformando as universidades em prestadoras de serviços e arriscando seu patrimônio na bolsa, como se fosse um bem privado, conforme quer o governo atual, com a disposição de transformar as ideias em goods e as atividades acadêmicas em business, coisas que não vamos encontrar nem mesmo nos Estados Unidos, mas como agente de civilização e bem público do povo brasileiro e da nação em seu conjunto, como notaram o imperador Pedro II ao criar a Universidade de Ouro Preto, Armando Salles a Universidade de São Paulo, Zeferino Vaz a Unicamp e Capanema, na esteira de Francisco Campos, as primeiras universidades que iriam compor depois o sistema das federais.
IHU On-Line - Que reformas são fundamentais para pensar e projetar o futuro das universidades públicas brasileiras hoje?
Ivan Domingues - É preciso ficar claro que se a constituição garante e o governo central não cumpre, não estamos diante de um problema político, mas de um problema jurídico, da alçada do Supremo, que tem o dever de zelar pela aplicação irrestrita da lei maior. Contudo, o Supremo está amesquinhado e saturado de problemas de outras alçadas e competências, inclusive roubos, fake news e assemelhados.
Sobre as reformas e recalibragens do modelo, muito certamente deverá ser feito em diferentes planos e níveis, mas sem necessidade de revolucionar os marcos legais, como já comentado no tocante a programas de P&D. Não tenho a menor condição, no espaço dessa entrevista ao IHU, de abordar na extensão e profundidade requeridas aquelas reformas que eu considero mais importantes, senão apontá-las sumariamente, ao percorrer os dispositivos jurídico-administrativos que dão o arcabouço constitucional das IFES. Assim, eu elencaria entre as reformas que eu considero fundamentais:
[1] a pronta implantação da autonomia de gestão das universidades federais, conforme o artigo 207, e para tanto seria suficiente dar-lhes o status de autarquia especial, com plena liberdade de contratação de seus servidores e professores e modelagem das carreiras e políticas salariais, atentando-se inclusive diferenças regionais que fazem com que um salário igual seja diferente em São Paulo e no Acre: neste quadro, não precisaríamos nem de OS nem mesmo de fundações, bastando ter um RH com esses atributos e funções;
[2] a quebra da unidade da carreira, ao considerar que nas grandes universidades cerca da metade do corpo docente não é constituída de pesquisadores, como nas áreas profissionais, para as quais bastariam bons profissionais e regimes de trabalho distinto da dedicação exclusiva, que seria reservada aos pesquisadores;
[3] a quebra da isonomia das universidades e instituições superiores de ensino, levando, por um lado, a distinguir as IFES entre [i] universidade de pesquisa em sentido estrito, com doutorados acadêmicos na linha de frente, e [ii] universidade de ensino voltada para a aquisição de uma habilidade técnica ou profissional, ao adaptar para os nossos meios as Community Schools da Califórnia e fixar para as universidades de pesquisa parâmetros de excelência que serviriam de portas de entrada e de saída do sistema, conforme formulação do ex-reitor e ex-ministro do MCTI, Clélio Campolina, com quem venho conversando sobre o assunto; por outro, a garantir aos ITs a vocação de escolas técnica de nível superior, com sua carreira específica, sem a necessidade de se transformar em universidades completas e iguais às outras, oferecendo doutorados e mestrados acadêmicos.
Vou parando por aqui, ao lembrar que a França também tem o seu Regime Jurídico Único – RJU e opera com um modelo bipolar de ensino superior, tendo como grandes protagonistas as escolas de elite e as universidades de massa, havendo entre estas várias excelentes. O contraste são a Inglaterra com seu modelo único e a Alemanha com o modelo bipolar das Escolas técnicas superiores e das universidades completas, todas como ensino público superior, pago na Inglaterra e gratuito na Alemanha. No extremo oposto está a Coreia, onde as próprias empresas estão ou são a universidade, como a Hyundai e a Samsung, não havendo rigorosamente universidade pública, mas privada, num país que investe uma fábula em C&T, cerca de 4-5% do PIB, contra 3-4% do Japão e da Alemanha. Tudo isso, sem falar das universidades comunitárias, nem rigorosamente públicas, nem rigorosamente privadas, como obras da Igreja cristã, a exemplo da universidade católica medieval, das universidades protestantes norte-americanas, como Harvard, e das PUCs e similares no Brasil, como a Unisinos.
Então, modelos não faltam e as públicas brasileiras já têm o seu, tratando-se apenas de aplicá-los e recalibrá-los.
IHU On-Line - O senhor também defende modelos universitários diferenciados, que possam auxiliar no desenvolvimento do país, com universidades menores, localizadas em regiões estratégicas e que atendam às demandas das suas regiões. Esse modelo já foi implementado no Brasil em alguma medida? O que poderia melhorar nesse sentido?
Ivan Domingues - Sim, como eu já disse, e eu aproveito para acrescentar agora a universidade corporativa da Petrobras, que aplicava e aplica ainda um absurdo de suas receitas na formação de seus quadros de engenheiros, que serão deslocados nas diferentes áreas da extração e beneficiamento do petróleo, inclusive em desenvolvimento de programas de P&D, sem prejuízo de parcerias com as universidades, como na Coppe na UFRJ, e ainda a universidade corporativa da Embraer, que antes de sua fusão com a Boeing investia cerca de 10% em P&D, tendo caído segundo Clélio Campolina, expert no assunto, para 7% em anos recentes.
Entende-se, como não se deu conta o projeto Future-se do governo, que em programas como esses estão em jogo não exatamente a produção de papers, mas o desenvolvimento de produtos, nem sempre goods para os mercados, mas para consumo próprio, em meio à corrida em C&T que caracteriza as economias avançadas do hemisfério Norte, com a Petrobras e a Embraer devendo ser arroladas entre os cases de sucesso, para usar a terminologia empregada pelo MEC na apresentação do dito projeto.
Ora, entre esses cases de sucesso, devemos mencionar a própria universidade pública brasileira, as três paulistas incluídas, que respondem por mais de 90% da nossa pesquisa considerando o conjunto das áreas do conhecimento.
IHU On-Line - Numa outra entrevista que nos concedeu, o senhor disse que “falta uma agenda positiva em C&T” para o Brasil. Iniciativas como o Future-se podem potencializar uma agenda em C&T?
Ivan Domingues - Simplesmente não acredito, não porque eu torça contra, eu que sempre fui e sou universidade, mas pelas razões já apontadas: um projeto pobre, arrogante, pueril e estreito, e ainda assim sumamente perigoso, a julgar pelas possibilidades que o aguardam ao ser confrontado com a realidade mesquinha da pesquisa em P&D&I no Brasil. Duas possibilidades, em suma, e ambas conduzindo ao mesmo resultado, ou seja: a possibilidade de dar tudo errado, porque errou de alvo e passou ao largo da realidade, ao pressupor para as nossas terras o círculo virtuoso de P&D&I, num país em que as empresas preferem importar tecnologia pronta e já testada, em vez de desenvolver produtos e projetos, correndo um risco todo seu; a possibilidade de dar tudo errado, porque acertou e transformou a universidade em prestadora de serviços e o conhecimento não num bem intrínseco, público ou o que seja, mas num good e num bem fungível, nada mais. E desde logo, alguma coisa que pode ser descartada e substituída o tempo todo, não havendo as ciências básicas e as chamadas humanidades nada o que fazer ou o que dizer num mundo como esse, só as commodities, o lucro, o investimento e o business.
Assim, das três missões da universidade apontadas acima, só sobrará uma: a de desenvolvimento de P&D, terminando a riqueza nas mãos de alguns poucos, aqueles que se deram bem no processo competitivo, sendo portanto vencedores, e condenando ao desaparecimento as missões civilizatória e educativa da universidade, na acepção de educação moral, avaliadas uma e outra por seu duplo projeto de espalhar as luzes do intelecto sobre a realidade circundante e moldar os corações e as mentes das pessoas.
IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?
Ivan Domingues - Sim, ao falar de desenvolvimento e da missão da universidade, não devemos reduzir a coisa a desenvolvimento econômico e PIB crescendo: há que se ressaltar a missão da universidade à vista das demandas e necessidades do conjunto da população, como agente da cultura e do bem-estar da sociedade, ponto esse que eu considero de suma importância e que eu gostaria de enfatizar ao concluir a nossa conversa.
[1] Alexander von Humboldt [Friedrich Heinrich Alexander, Barão de Humboldt] (1769-1859): naturalista e explorador alemão. Atuou também como etnógrafo, antropólogo, físico, geógrafo, geólogo, mineralogista, botânico, vulcanólogo e humanista, tendo lançado as bases de ciências como Geografia, Geologia, Climatologia e Oceanografia. (Nota da IHU On-Line)
[2] Paulo Freire (1921-1997): educador brasileiro. Como diretor do Serviço de Extensão Cultural da Universidade de Recife, obteve sucesso em programas de alfabetização, depois adotados pelo governo federal (1963). Esteve exilado entre 1964 e 1971 e fundou o Instituto de Ação Cultural em Genebra, Suíça. Foi também professor da Unicamp (1979) e secretário de Educação da prefeitura de São Paulo (1989-1993). É autor de A Pedagogia do Oprimido, entre outras obras. A edição 223 da revista IHU On-Line, de 11-6-2007, teve como título Paulo Freire: pedagogo da esperança. (Nota da IHU On-Line)
[3] Robert King Merton (1910-2003): foi um sociólogo norte-americano considerado um teórico fundamental da burocracia, da sociologia da ciência e da comunicação de massa. (Nota da IHU On-Line)