30 Outubro 2018
Ao analisar o resultado das eleições presidenciais, o sociólogo Roberto Dutra pontua que "trata-se da maior vitória eleitoral da direita na história política brasileira. E não se trata de qualquer direita, mas de uma direita extremada, militarizada e autoritária em todas as esferas da sociedade, na igreja, na escola, no partido, em tudo. Precisaremos de tempo para fazer uma análise cuidadosa deste resultado e de seu significado político".
O sociólogo reflete também sobre os principais desafios de Bolsonaro como presidente. “O maior desafio vai ser adotar uma linha de conduta diferente da assumida na eleição. Vai ter que negociar cargos com políticos, por exemplo. Vai ter que saber aceitar a oposição, senão corre o risco de acumular insatisfações intransponíveis que podem ser perigosas em momentos de crise”, diz. E questiona: “Ele será capaz de reeducar a si mesmo e a seus eleitores, ou preferirá refúgio na bolha sectária no primeiro momento de crise?”
Roberto Dutra | Foto: Fiocruz
Roberto Dutra Torres Junior é doutor em Sociologia pela Humboldt Universität zu Berlin e mestre em Políticas Sociais pela Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro – UENF. É professor da UENF e ex-diretor do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas – Ipea.
A entrevista foi publicada durante o dia de ontem em Eleições 2018: Um pleito que revelou muito da sociedade e do Estado. Primeiras análises.
IHU On-Line – Que avaliação faz do resultado das eleições presidenciais e qual é o seu significado político?
Roberto Dutra - Trata-se da maior vitória eleitoral da direita na história política brasileira. E não se trata de qualquer direita, mas de uma direita extremada, militarizada e autoritária em todas as esferas da sociedade, na igreja, na escola, no partido, em tudo. Precisaremos de tempo para fazer uma análise cuidadosa deste resultado e de seu significado político, mas alguns aspectos do processo eleitoral permitem pontuar o seguinte:
1) O sistema político passa por transformações estruturais muito importantes, como a introdução de novos meios de difusão e comunicação, com efeitos que ainda não podemos vislumbrar bem. A relação entre candidatos, eleitores e organizações políticas muda com isso, mas não sabemos exatamente em que direção. Aparentemente, organizações e candidatos enraizados nestas organizações perdem protagonismo no sistema. Quando o jornalismo de massa e a TV se tornaram decisivas para os processos eleitorais, isto produziu mudanças estruturais importantes no sistema político. As redes sociais parecem provocar mudanças semelhantes no mundo todo, com especificidades locais, como o uso do Whatsapp na campanha brasileira. Mas esta vitória de Bolsonaro e da direita foi impulsionada por, pelo menos, dois outros fatores.
2) O primeiro deles é o processo de demonização da política desencadeado pelo “mensalão” e mais fortemente pela operação Lava Jato e reverberado como antipetismo pelos meios de comunicação, especialmente pela Rede Globo. A Lava Jato trouxe prejuízos enormes para o sistema político e a democracia. Seus efeitos potencialmente positivos são muito duvidosos. Não teve efeito estruturante no sentido da redução da corrupção, mas apenas efeito destrutivo sobre as organizações e elites políticas. Assim como na Operação Mãos Limpas da Itália, na Lava Jato o resultado foi a eleição de um político “antissistema”, com pouco apreço pela democracia. O nosso bufão, porém, é muito mais perigoso que o Berlusconi. A Lava Jato representa uma visão moralizadora aberrante que destruiu relações de confiança na troca de apoios e no ajuste informal de interesses, bloqueando a capacidade do sistema político em produzir decisões coletivamente vinculantes com o alcance e a eficácia necessários para um combate institucionalizado da corrupção.
3) O segundo fator são os erros do campo progressista. O ex-presidente Lula é o grande derrotado destas eleições. Sua estratégia de transformar a eleição em um plebiscito sobre o PT, e especificamente sobre sua própria condenação, foi ingrediente decisivo para a vitória de Bolsonaro. No PT, o antipetismo foi subestimado e rechaçado como puramente reacionário. E não é. Existem setores médios e populares que têm razões para não se sentirem representados pelo PT. Não são necessariamente tolos ou imbecis por não gostarem do PT, como se costuma dizer nesta sociologia moralista cujo esporte predileto é xingar a classe média.
Ao ignorar a força do antipetismo, o PT e Lula subestimaram a força potencial de Bolsonaro. A derrota não era necessária, como agora alguns querem fazer crer. Era difícil, mas era possível. Além disso, setores da esquerda contribuíram para que a disputa presidencial se transformasse em uma “guerra cultural”, o melhor cenário para Bolsonaro, que assim não precisou discutir seu programa ultraliberal na economia e na política social.
A esquerda precisa abandonar o messianismo lulista, mas também a linguagem da política identitária, que a afasta de sua base potencial, as classes populares e médias. O problema com a chamada política identitária não é o conteúdo de suas pautas, mas sim a forma de sua política, sua concepção do que é o próprio agir político. A luta contra as desigualdades de gênero e de orientação sexual são, por exemplo, pautas centrais para os progressistas. A questão é a forma de ação política e a visão estratégica envolvida. Neste aspecto, a política identitária, difundida quase sempre a partir dos centros de ciências humanas das universidades, empreende uma moralização duradoura da política, adotando e cultivando o pior da herança da geração de 1968.
A política identitária consiste, basicamente, em poses emocionais e dramatizadas que tomam o lugar da preocupação política em agregar forças. O critério passa a ser quem tem a moral do seu lado, e não quem consegue reunir apoio. Esta moralização duradoura da política ignora a peculiaridade da política, que é a possibilidade de construir coletividades para além das identidades morais existentes. A esquerda deveria simplesmente abandonar esta forma de atuação que reduz a política à moral e compromete fortemente as chances de recuperar o terreno perdido para a direita.
Vejo, por exemplo, com muita preocupação o comportamento hipermoralizado de parte da militância petista em não reconhecer devidamente a vitória de Bolsonaro, como se qualidades morais negativas que podemos atribuir ao candidato fossem mais importantes que o rito sagrado do voto, pelo qual ele foi consagrado. Espero não ver nem ouvir “fora Bolsonaro!” de gente responsável. Rechaçar moralmente este resultado e, pior ainda, os segmentos sociais que deram suporte a ele, é dar continuidade à troca indevida de política por moral, criando o ambiente ideal para que Bolsonaro prossiga com sua “guerra cultural” e encurrale cada vez mais os progressistas.
IHU On-Line – Quais serão os desafios de governabilidade do presidente eleito?
Roberto Dutra – O maior desafio vai ser adotar uma linha de conduta diferente da assumida na eleição. Vai ter que negociar cargos com políticos, por exemplo. Vai ter que saber aceitar a oposição, senão corre o risco de acumular insatisfações intransponíveis que podem ser perigosas em momentos de crise. E vai ter que recalibrar as expectativas difusas e bastante contraditórias que gerou na população: redução de impostos e melhoria nos serviços públicos, redução da violência e armamento irracional da população, discurso de unidade nacional e postura autoritária que nega o direito de existência da oposição e da esquerda. Sem recalibrar essas expectativas, o governo torna-se rapidamente impopular e isso terá repercussões negativas no congresso e na governabilidade. Mas isso exige inteligência política para transpor o ambiente de ignorância e intolerância que o próprio Bolsonaro criou. Ele será capaz de reeducar a si mesmo e a seus eleitores, ou preferirá refúgio na bolha sectária no primeiro momento de crise? Creio que não será capaz. Se for capaz, estará jogando o jogo democrático. Por isso, torço contra minha própria observação enquanto sociólogo.
IHU On-Line – O que esperar do governo eleito?
Roberto Dutra – É uma pergunta muito difícil. Nós, cientistas sociais, somos famosos por nossa incapacidade de prever sequer o futuro adjacente. Isso é assim mesmo. Devemos aceitar e nos contentar com a construção de cenários possíveis. Para isso, o mais importante é saber se e quando Bolsonaro vai recalibrar as expectativas, apresentando concretamente o que vai fazer, quando e como. Lembremos que ele não foi a debates no segundo turno, se recusando a discutir suas intenções para o país. Pediu um cheque em branco e lhe foi dado. Agora nos resta ver como ele vai preencher este cheque e quem vai pagar a conta.
Precisamos saber duas coisas:
1) se ele vai aprender a jogar o jogo democrático ou vai continuar sendo o militar tosco que sempre foi. O poder corrompe, dizem. Mas quem sabe não seja capaz de dar alguma qualidade a uma pessoa já tão desqualificada? e
2) se ele vai mesmo adotar a política econômica e social ultraliberal de Paulo Guedes ou se vai inventar alguma gambiarra que não seja tão cruel como o prometido.
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A maior vitória da direita na história política brasileira. Entrevista especial com Roberto Dutra - Instituto Humanitas Unisinos - IHU