29 Março 2016
Uma vida dedicada à luta contra a corrupção. Magistrado desde 1974, Gherardo Colombo chegou, enfim, em 2005 à Corte de Cassação, a suprema corte italiana. O antigo procurador e juiz de instrução trazia no currículo o trabalho em alguns dos maiores escândalos de corrupção da Europa, da loja maçônica P2 – que inspirou parte da trama de O Poderoso Chefão 3 – à Operação Mãos Limpas e aos casos que envolviam o grupo do ex-primeiro-ministro Silvio Berlusconi. Em 2007, Colombo renunciou à magistratura porque entendeu que não era possível combater a corrupção por meio da Justiça. Hoje, dirige uma editora e faz palestras, nas quais ensina a obediência às leis. Nessa semana, estará em São Paulo, no Centro de Debate de Políticas Públicas (CDPP), para um debate sobre a Mãos Limpas, que serviu de modelo para a Lava Jato, e suas lições para o Brasil.
A entrevista é de Marcelo Godoy, publicada por O Estado de S. Paulo, 27-03-2016.
Eis a entrevista.
A investigação em 1981 sobre a P2 foi uma ancestral de Mãos Limpas?
Eu creio que sim. Quando descobrimos as cartas sobre a P2, achamos uma série de envelopes lacrados que continham informações sobre crimes que tinham relação também com quantias recebidas ilegalmente por personagens políticos.
Há mais de 20 anos a Mãos Limpas pôs de cabeça para baixo a política italiana. Qual é, para o senhor, a herança dela para os italianos?
A herança desse caso está no fato que pudemos constatar que, por meio de uma investigação judiciária, não se pode enfrentar a corrupção, quando ela é tão difusa como na Itália. Eu creio que hoje a corrupção não seja menos espalhada do que então. Investigamos por seis, sete anos. Fizemos processos até 2005 e, porém, a corrupção não diminuiu.
Como fica a cidadania quando as coisas terminam assim?
Para mim, a cidadania, os cidadãos comuns tiveram uma parte importante na decretação do fim da Mãos Limpas porque, no início, eram todos entusiastas na Itália das investigações, pois elas nos levavam a descobrir a corrupção de pessoas que estavam lá em cima. Mas, conforme elas prosseguiram, chegamos à corrupção dos cidadãos comuns: o fiscal da prefeitura que fazia compras de graça, que não fiscalizava a balança do vendedor de frios, que continuava a vender apresuntado como se fosse presunto...
Começaram a pensar que os senhores eram Savonarolas (Girolamo Savonarola, dominicano que governou Florença, na Itália, no século 15 e dizia que a moral dos cidadão devia ser regenerada)?
Sim, pensaram isso: ‘Mas esses magistrados, o que querem fazer? Querem saber o que nós estamos fazendo?’
Para lutar contra a corrupção, é preciso também uma mudança nas pessoas?
Da educação, da cultura, seguramente. Eu estou convencido disso. Eu me demiti da magistratura por isso.
No Brasil, dizem que a eleição de Berlusconi é um produto da Mãos Limpas. O que o senhor pensa disso?
Não penso assim. As modificações políticas que se verificaram na Itália são consequência em grande parte da queda do muro de Berlim.
Berlusconi, dizem, firmou-se no poder deslegitimando a magistratura. Houve na Itália uma estratégia consciente da classe política, do establishment, para acabar com a Mãos Limpas?
Sim. Isso pode ser. É preciso considerar que tudo isso começou após 1994, isto é, quando a Mãos Limpas havia começado a espraiar-se. O problema é que medidas relacionadas à prescrição dos crimes (diminuição do tempo de prescrição), à falsificação de balanço de empresas (que deixou de ser crime) e outras foram aceitas pelos cidadãos. Exceto no caso do decreto Biondi (conhecido como ‘salva ladrão’, ele acabava com a prisão preventiva nos casos de corrupção, mas acabou rejeitado pelo Parlamento), os cidadãos progressivamente se desinteressaram dessas coisas, pois começamos a incomodar também as pessoas comuns.
Para deslegitimar a Mãos Limpas, dizia-se que os juízes eram ‘togas vermelhas’. É possível ser magistrado em um país tão dividido politicamente, como a Itália? Como conservar a independência?
É muito importante ser absolutamente imparcial. Tratar todos os casos do mesmo modo, que é o que fizemos. Estávamos atentos e investigávamos cada notícia de crime que chegava. Sou muito tranquilo a respeito disso. Muitos nos acusaram de ser parciais, de favorecer algum expoente de uma força política em relação a outros ou de não investigar em um certo campo. Quando me perguntam sobre isso, eu respondo: se há alguém que conhece notícias de crime que não investigamos, diga-nos quais são. E ninguém jamais disse nada, salvo para falar de crimes já prescritos.
E o que deve fazer um magistrado quando se começa a discutir se ele, por acaso, não abusou do poder?
Continuamos a trabalhar tendo como ponto de referência a nossa Constituição e a nossa independência. Quer dizer que nós não nos deixamos influenciar por nada.
Antonio Di Pietro (magistrado que atuou com Colombo na Operação Mãos Limpas) disse ao Estado que há um paralelo entre Mãos Limpas e as investigações em curso no Brasil sobre a Petrobrás. O senhor crê que é possível comparar esses dois casos?
Eu conheço muito pouco a situação brasileira para poder responder a essa pergunta.
Di Pietro entrou na política – é líder do partido Italia Dei Valori. O que isso significou para a magistratura?
Quando ele entrou na política já se havia demitido da magistratura.
Qual o papel dos empresários na corrupção? Pode-se usar o conceito de corrupção por indução para explicar o papel dos empresários?
Geralmente não eram vítimas de extorsão. Algum deve ter sido, mas o que acontecia era outra coisa: os empresários, por meio da corrupção, obtinham recursos públicos que, sem isso, não teriam. A corrupção trazia vantagem, seja para o funcionário ou para o político, que recebia o dinheiro, seja para o empresário, que pagava. O custo da propina era sustentado pelos cidadãos, que pagavam impostos, porque os empresários incluíam isso no preço dos contratos com o governo.
Alguns investigados diziam que eram acusados com base na lógica e não de acordo com as provas. O senhor acredita que um líder político não pode não saber do que se passa no seu partido ou em seu governo?
Creio que há uma ideia pouco precisa sobre como o Ministério Público trabalha. Não é que um procurador acorda de manhã: ‘Ah, talvez, aquele ali corrompeu alguém. Vamos apurar’. Não é assim. É necessário a notícia de um crime. Jamais aconteceu de nós processarmos alguém dizendo: “Ele não podia não saber”. Existiam fatos. Quando alguém era processado, havia provas. Elas consistiam em movimentação de dinheiro, em testemunhos. Essas críticas eram feitas por quem não lia suficientemente os processos.
Que fim levaram as pessoas que apoiavam a Mãos Limpas e gritavam: Milano ladrona, Di Pietro non perdona? Votaram no Berlusconi?
Não sei. É preciso perguntar a elas. Existe ainda hoje quem se escandaliza por causa de propinas, mas, para mim, parece que o comportamento da opinião pública hoje é muito diferente em relação a 30 anos atrás. Continuam a dizer: ‘Esses políticos, são todos corruptos etc’. Mas a partir disso não surge um comportamento coerente. Talvez haja uma consequência: o abstencionismo nas eleições, porque na Itália o voto não é obrigatório.
Como se deve tratar as interceptações telefônicas? Pode-se divulgá-las se há interesse público, ainda que envolvam cargos altos da República?
Na Itália, nesse caso, há imunidade para quem está no Parlamento. O Ministério Público pode tornar público atos secretos só se são necessários à investigação. Basta um parecer. Pelo que me lembro, esse é um poder que nunca usamos. De resto, pode ser divulgado tudo o que chega ao conhecimento do investigado.
O senhor se demitiu da magistratura. Agora como luta contra corrupção?
Eu me demiti da magistratura em 2007, embora pudesse continuar a ser magistrado por mais 14 anos. Decidi isso porque, para mim, é impossível marginalizar o desrespeito à lei se não se muda a cultura. Sou agora um editor – penso que, por meio dos livros, é possível fazer isso. E, sobretudo, vou muito às escolas falar com os estudante. Tento comunicar a eles a importância das regras, quando elas vêm da Constituição, que, na Itália, parte da constatação de há igual dignidade de todas as pessoas. Isso quer dizer expulsar a discriminação. Vejo cerca de 50 mil estudante por ano. Eles reagem bem e são muito disponíveis para essa discussão.
E isso lhe dá esperança no futuro?
Se não a tivesse, não o faria.
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`Quem acabou com a operação mãos limpas foi o cidadão comum` - Instituto Humanitas Unisinos - IHU